45 ANOS | 1 MARÇO | IPDJ | 21H30


45 ANOS
Andrew Haigh
Reino Unido, 2015, 95’, M/12


FESTIVAIS E PRÉMIOS
Festival de Berlim - Urso de Prata (Melhor Actor)
Festival de Berlim - Urso de Prata (Melhor Actriz)
Lisbon & Estoril Film Festival - Selecção Oficial



FICHA TÉCNICA
Título original: 45 Years
Realização: Andrew Haigh
Argumento: David Constantine e Andrew Haigh
Interpretação: Charlotte Rampling, Tom Courtenay, Geraldine James, Dolly Wells
Fotografia: Lol Crawley
Montagem: Jonathan Alberts
Origem: Reino Unido
Ano: 2015
Duração: 95’


CRÍTICA
Dois septuagenários, em cujos rostos reconhecemos dois dos maiores atores britânicos das suas gerações, Tom Courtenay e Charlotte Rampling, vivem no remanso do lar no pacato condado de Norfolk, longe do reboliço. O quotidiano de Geoff e Kate Mercer parece condizer, de facto, com o conforto e as pantufas de um casal que já não tem muito mais a esperar do futuro. Enquanto ela passeia o teimoso cão naquela paisagem verdejante, aproveita ele para dar umas passas no teimoso cigarro que não consegue largar. Sabemos depois que, sobretudo por iniciativa dela, o casal se prepara, no final da semana, para celebrar 45 anos de casamento, em festa que não dispensará amigos chegados nem playlist de velhos êxitos, The Platters, sim, Elton John, nem por isso. O espectador começa a ver o filme, habitua- se ao ritmo das personagens, cadenciado com uma precisão e uma eficácia de relojoeiro, e desconfia. Habitua-se porque, apriori, esta terceira longa- metragem de Andrew Haigh — ele que já havia deixado bons sinais em “Weekend/ “Amor de Fim de Semana” — parece não passar do benigno drama britânico domingueiro a seguir fórmulas batidas da BBC. Mas desconfia porque, se nesses filmes não temos o hábito de encontrar Tom Courtenay, muito menos costumamos encontrar Charlotte Rampling, que detesta papéis de ramerrame e escolhe tudo o que faz a dedo. 
“45 Anos” não tarda nada a deixar-nos inquietos quando Geoff, ainda o filme mal começou, recebe aquela carta que é coisa de assombração, quase de ficção científica. Imagine-se que, cinco décadas antes, a primeira companheira de Geoff (ainda este não conhecera Kate) morreu soterrada numa avalanche e que o corpo, caprichosamente conservado pela neve dos Alpes, só agora foi encontrado. A ideia não lembra ao diabo. Nem nos interessa saber se é ou não plausível. Aliás, é melhor nem irmos por esse caminho, que certamente faria as delícias de um John Carpenter. Certo é que Geoff, mesmo a cair da tripeça, começa a considerar seriamente meter-se num avião para a Suíça, desatando a remexer nos velhos caixotes que há muito guardara no sótão. Subtilmente, apercebemo-nos de que o seu luto nunca foi inteiramente feito. Do mesmo se dá conta Kate que, sem perceber a absurda transformação emocional do marido, se deixa engolir na espiral de angústia que o filme já pôs a girar. Para Kate, a ideia de que o homem de quase toda uma vida amou outra mulher, provavelmente mais do que ela, é simplesmente infernal. Para que se compreenda o grau de subtileza com que Haigh gere estes cordelinhos, grau esse em que certos pormenores nos podem conduzir a emoções monstruosas de um momento para o outro (“out of the blue”, disse Rampling), dou um exemplo que talvez até passe desapercebido para a maioria mas que me parece capital: é quando Kate, roída pela curiosidade, sobe ao sótão para vasculhar, provavelmente pela primeira vez na vida, a tralha do marido. Kate repara então naquela foto em que, tanto quanto parece, a ex-companheira de Geoff estava grávida quando a avalanche a levou. Sabia Kate da existência dessa namorada? Sim, sabia. Contudo, talvez não soubesse que ela estava grávida. 
Acontece que a reverberação da descoberta, 45 anos depois, deixa-a destroçada, num estado só comparável ao da cena final. Agora, o que é espantoso nem é aquele pormenor que fica a trabalhar-nos como uma bomba-relógio. O que é espantoso é que Andrew Haigh jamais vai explicá-lo (como tanta coisa neste filme ficará por explicar...), nem sequer voltará a falar dele. 
É que, no fundo, quem vai decidir o futuro daquele casai, quem vai decidir se eles se separam ou ficam juntos, somos nós, espectadores: tudo depende da nossa própria perceção das coisas, da experiência de vida que acumulámos. Tudo depende do que conseguimos engolir, como Geoff, ou do que tmos mesmo que deitar cá para fora, como Kate. Deste ponto de vista, “45 Anos” parece-me o mais generoso dos filmes que se estrearam nos últimos tempos. Tão generoso como a sua impecável dupla de atores, em duas interpretações de altíssimo nível.

Francisco Ferreira, Expresso

ENTREVISTA
O que o atraiu neste conto e como foi o processo de o adaptar?
Para mim, havia algo de devastador numa relação que fraquejava perante o sue último obstáculo. Era como se esta recordação do passado, este corpo conservado em gelo, tivesse estado à espera do momento para lançar tudo no caos, num caos interno muito sossegado. Através das fendas na terra surgem todas as dúvidas e medos, todas as coisas por dizer ao longo dos anos, emoções reprimidas e escondidas. É como se toda a relação de Kate e Geoff, desde a sua fundação, fosse subitamente posta em causa por uma mulher que já não existe.
O conto original era maravilhosamente claro e conciso, mas para ser adaptado, tinha de ser expandido. Além de adicionar a festa do aniversário de casamento, a maior alteração foi a redução da idade das personagens para sessenta e muitos, setenta e poucos anos. O conto original passa-se nos anos 90 e a história de fundo decorre durante a II Guerra Mundial. Eu queria que a história de Kate e Geoff fosse muito presente. Não queria que tratasse das escolhas duma geração mais velha, agora desaparecida, mas sim a história das escolhas que todos temos de fazer. Também decidi contar a história unicamente da perspetiva de Kate, uma alteração em relação à história original. Há muitos filmes e trabalhos de ficção que lidam com a crise existencial masculina e eu queria ter uma perspetiva diferente da história.
Pode dizer algo acerca da relação deste filme e de Amor de Fim de Semana?
Há certamente uma correlação entre ambos. Ambos os filmes abordam a complexidade da intimidade entre duas pessoas; os riscos envolvidos em expormo-nos emocionalmente a outra pessoa; a dificuldade de sermos verdadeiramente honestos acerca dos nossos medos. Estou muito interessado em como as nossas relações românticas dizem mais sobre quem verdadeiramente somos e como queremos que o mundo nos veja.
A incapacidade de comunicar emocionalmente coisas sensíveis é muitas vezes encarada como particularmente britânica – acha que há alguma verdade nisso, sobretudo agora que tem trabalhado nos EUA?
Acho que há algo cultural e politicamente conservador acerca dos Britânicos, que encoraja muita gente a enterrar os seus sentimentos de modo a manter as aparências. Esse é o caso da classe média britânica. Dito isto, acho que é muito difícil para qualquer pessoa ser realmente aberta acerca dos seus sentimentos, porque na maior parte das vezes, não fazem sentido para nós. Podemos senti-los, mas é difícil para nós articularmos o que eles são. E também há um risco ao partilharmos os nossos sentimentos mais íntimos, isso vai ser sempre sentido como um risco.
O que trouxe a Charlotte para este papel e o que ela tem de especial para si, enquanto atriz?
A Charlotte é uma atriz ferozmente inteligente. Ela sabe o que é sentido como verdadeiro e o que não é. Quando a vejo no ecrã, vejo um furacão de emoções sob a superfície, por detrás daqueles olhos. Somos convidados a ver, mas também queremos manter a distância. Isso parece-me incrivelmente verdadeiro. Há coisas que todos nós devíamos guardar só para nós.
E quanto a Tom Courtenay?
Há uma certa vulnerabilidade no Tom e no seu desempenho. A última coisa que eu queria para este filme era um homem furioso e revoltado contra o mundo. Já vi isso demasiadas vezes no ecrã. Eu queria algo mais complexo, mas sensível. Aqui temos uma personagem em conflito com a sua própria identidade, não é o vilão da paz. Espero que em 45 Anos não haja vilões, apenas pessoas a tentar perceber as coisas.
As histórias deles enquanto ícones dos anos 60 assombraram os seus desempenhos, com os apontamentos da música pop dessa década a servir de lembrete. Isso é algo que queria que o público notasse?
Sempre esperei que as suas histórias fossem sentidas de forma menor e subtil. Este filme trata em parte da sensação de esperança do passado, o potencial da nossa versão jovem e conhecer estes atores em jovem ajudou imenso. Há uma certa melancolia nisso, que me interessa muito enquanto sentimento. Acho muitas vezes que a melancolia que sentimos sobre o passado tem mais a ver com os fracassos e deceções do presente, do que com o próprio passado.
Há algo acerca da relação deles no ecrã que parece ser muito real, mas ao mesmo tempo é muito pouco convencional para um retrato de pessoas idosas. Parece que ainda estão a desenvolver-se enquanto pessoas. Tem uma noção de quanto disso está no guião, quanto disso transpareceu durante as filmagens e quanto se devia ao desempenho deles?
Essa era certamente a intenção. Não creio que as pessoas parem de procurar as respostas só porque estão mais velhas. Há esta crença de que quando chegamos aos 30 anos, já devíamos ter percebido tudo, ter descoberto quem somos. Mas tenho a certeza que para a maioria de nós, a vida não funciona assim. Estamos sempre em mudança, as nossas identidades estão sempre a evoluir e como tal, estamos sempre a fazer perguntas. Se não o fazemos, devíamos fazê-lo.
Qual é a sua perspetiva sobre a racionalidade ou sobre os sentimentos de ciúmes e rejeição por parte de Kate?
Tenho uma grande compaixão pela Kate. Há uma certa natureza irracional em relação aos seus sentimentos, e acho que ela está ciente disso, mas ao mesmo tempo, eles revelam algo mais profundo e desconcertante. É como se concentrarmo-nos na relação deles tivesse provocado uma náusea que Kate não consegue ultrapassar. Trata-se da sensação de rejeição e ciúme, mas também se trata do significado da sua vida. É como se sob o peso da inspeção, tudo o que ela construiu ao longo dos anos começa a perder o significado. Ruiu e ela não sabe se conseguirá reconstruí-la.
As referências à natureza adicionam uma dimensão poética – a terra que esconde segredos, coisas que se tornaram invisíveis, mas não desapareceram… há algo que quer juntar a isso?

Parece-me muito claro que o que acontece no nosso passado, o que fica enterrado sob a superfície permanece para sempre. E não me refiro apenas às coisas grandes, aos eventos dramáticos na nossa vida, refiro-me aos detalhes pequenos e mundanos que compõem a nossa existência. E muitas vezes tentamos ignorar isto, tentamos viver no presente, mas não é fácil; o sótão fica mais cheio e se não tivermos cuidado, as vigas podem partir-se e deixar uma grande confusão espalhada no chão do quarto.
A apresentação do filme é muito pacífica e sossegada, apesar da intensidade dos sentimentos. Pode falar-nos de algumas dessas decisões estéticas?
Era muito importante para mim que o filme começasse de forma tranquila e permanecesse assim. Não se trata de o trauma levantar a cabeça, trata-se das coisas mais pequenas. As escolhas e decisões, os sentimentos e emoções trancados, as coisas que não conseguimos expressar. Todos esses medos e dúvidas que vivem nessas pequenas fissuras e rachas. Por vezes penso que as nossas vidas giram em torno de não colocar demasiada pressão nessas falhas, esperando que o solo não se abra e não nos engula.
alambique

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