O PAÍS DAS MARAVILHAS | 26 JULHO | Q- ESPAÇO CULTURAL | 21H30

A OLHAR PARA CIMA
 João Figueiras, Portugal, 215, 15’, M/6

Pedro observa escondido na igreja as raparigas a vestirem fatos de anjo para a procissão.

Escondeu-se para que não lhe vistam aquela fatiota ridícula. 
Pedro deseja que a procissão não aconteça. 
Deseja que chova, que caia um temporal sobre a ilha.
Pedro começa a acreditar que a procissão não vai acontecer.

O PAÍS DAS MARAVILHAS
Alice Rohrwacher
Itália/Suíça/Alemanha, 2014, 111', M/12






FICHA TÉCNICA
Título Original: Le Meraviglie
Escrito e Realizado por Alice Rohrwacher
Música Original: Piero Crucitti
Montagem: Marco Spoletini
Fotografia: Hélène Louvart
Interpretação: Maria Alexandra LunguSam Louwyck,Alba RohrwacherSabine Timoteo e Monica Bellucci
Origem: Itália/Suíça/Alemanha
Ano: 2014
Duração: 111' 

FESTIVAIS
Festival de Cannes - Grande Prémio do Júri

CRÍTICA
Há algum tempo que não víamos “o campo”, a ruralidade, a entrarem num filme de maneira tão expressiva e tão palpável, a ponto de se tornarem a sua matéria.
Ainda sem sabermos que família protagonista de O País das Maravilhas se dedica à apicultura já estamos a pensar em abelhas ou, vá lá, em insectos: aqueles planos iniciais, os faróis de um automóvel a iluminarem a noite e a sugerirem um bicho alado, suspenso no ar.
Não é que seja um pormenor especialmente significativo, mas indicia qualquer coisa: a enorme intenção, e a enorme atenção, que a jovem realizadora italiana Alice Rohrwacher pôs neste filme que é a sua segunda longa-metragem de ficção.
O País das Maravilhas é um relato de inspiração auto-biográfica, a história de uma família que vive um modo de vida “alternativo”, com uma certa rigidez ideológica (a personagem do pai), algures na paisagem rural da Toscana. O pai, a mãe e as crianças formam uma espécie de pequena “comuna”, partilhando as responsabilidades do trabalho diário e da condução da família, a ponto de a filha mais velha, com nome de personagem de Fellini (Gelsomina), se vir investida da liderança familiar. A questão da autoridade é um dos temas do filme, dada, como muita coisa em O País das Maravilhas, em tensão e em contraste. Tensão e contraste, nesse caso, entre o fundamento ideológico – a recusa teórica de uma autoridade absoluta e “natural” por parte do pai – e a autoridade efectiva, e efectivamente paternal, que ele revela ao proibir a miúda mais velha de concorrer a um concurso televisivo sobre “maravilhas rurais” (a televisão também é uma entidade pouco grata naquela família). Se este é o conflito subjacente à narrativa, ele vem lançar, ou servir de diapasão, outro conflito essencial, que seria resumidamente o que opõe a “natureza” e o “espectáculo”. O filme de Rohrwacher tem a subtileza e a inteligência suficientes para também virar esses termos do avesso, e conter tanto uma reflexão sobre o “espectáculo da natureza” – todas, e são muitas, as cenas em que o que está em causa é a relação entre aquelas pessoas e o ambiente em que vivem, o campo, os lagos, as abelhas e os outros animais – e a “natureza do espectáculo”, as cenas de rodagem do tal programa televisivo (onde pontifica a maior vedeta do elenco, Monica Bellucci), dadas desde o primeiro momento a partir do seu carácter artificial e artificioso (todo o aparato da produção). Será este, porventura, o ponto em que o filme, depois de chamar Gelsomina (que, recorde-se, era o nome da personagem de Giulietta Masina em A Estrada) à sua protagonista, mais entra dentro dum território aparentado ao fellinianismo, mas que também convoca – a partir da reconstituição do tempo dos Etruscos – uma espécie de subconsciente telúrico, como que uma assombração cultural daquelas terras.

Mas ainda assim, notável é o modo como Rohrwacher filma o “espectáculo da natureza”, a presença dos elementos, o calor do Verão e a humidade da chuva súbita, o à-vontade dos miúdos (e dos adultos) a fazerem “corpo” com o ambiente natural. Lembramo-nos de um texto de Serge Daney, ainda nos anos 80, a comentar a tendência para a desaparição do campo no cinema contemporâneo, cada vez mais urbanizado (e se isto era verdade nos anos 80, mais o será nos anos 2010) – e lembramo-nos disso porque, de facto, há algum tempo que não víamos “o campo”, a ruralidade, a entrarem num filme de maneira tão expressiva e tão palpável, a ponto de se tornarem a sua matéria. Não exclusiva, claro: a festa não fica completa sem os humanos, sem a profunda impressão de realidade exalada por aquela família, as cenas de conjunto, em paz ou em tensão mas sempre cheias de souplesse, e a forma como daqui se vai recortando uma protagonista, Gelsomina, que atravessa o filme a crescer e, sem nunca verdadeiramente se rebelar, a encontrar-se enquanto criatura autónoma, dotada de vontade e... autoridade.
Luís Miguel Oliveira, publico.pt/


ENTREVISTA À REALIZADORA
A sua trajectória pessoal já passou por Portugal?
É verdade. Comecei por viver em Portugal como aluna do programa Erasmus; depois, estudei documentarismo na Videoteca Municipal de Lisboa e trabalhei como assistente de montagem de Luciana Fina, uma italiana, realizadora de documentários, que vive em Lisboa. E era frequentadora regular da Cinemateca.
Esta sua segunda longa-metragem de ficção, O País das Maravilhas [depois de Corpo Celeste, 2011], quase começa como um documentário sobre uma família no campo — o projecto envolvia essa vontade de documentar uma determinada realidade?
Em boa verdade, no filme tudo é falso, no sentido em que nada funciona num plano documental. Ao mesmo tempo, gosto de dizer que inventámos um mundo e, depois, de certa maneira, fizemos um documentário sobre esse mundo. Tudo é fabricado, estava tudo escrito, mas devido à consistência dessa fabricação, pode parecer um documentário.
Por exemplo?
Por exemplo, quando num filme há necessidade de ter uma horta, ou um jardim com plantas, muitas vezes compram-se as plantas já crescidas e colocam-se na terra — o que se procura é “aquela” imagem das plantas. No nosso caso, plantámos mesmo uma horta, ou seja, cinco meses antes da rodagem definimos que plantas queríamos, semeámo-las, tratámos delas e, no fim, tínhamos uma verdadeira horta. E durante a rodagem consumimos aquilo que tínhamos criado na horta.
Que efeitos esse processo teve no trabalho dos actores?
Sempre me interessou um cinema em que o método, a maneira de chegar a determinadas coisas, acaba por ser mais importante que as próprias coisas. Nesse sentido, os actores acabaram mesmo por viver naquele mundo, a ponto de todos acreditarmos profundamente naquela família — afinal, os seus membros existiam ali mesmo, à nossa frente.
E até que ponto os actores marcaram as personagens com elementos do seu próprio mundo interior?
Marcaram mesmo para além do próprio filme. Há até casos, como o de Cocò, interpretada por Sabine Timoteo, em que a personagem acabou por existir mais para nós do que na montagem final.
 certa altura, algo muda no filme quando chega uma equipa de televisão para fazer um programa mais ou menos poético sobre aquela região — é um reflexo da própria televisão que existe hoje em Itália?
Não, não é. Aquela televisão aparece antes como produto da imaginação de uma criança, como qualquer coisa de pré-histórico. A televisão que se faz em Itália é horrível, está muito comprometida com a política.
Vimos outros filmes italianos, por exemplo de Nanni Moretti ou Matteo Garrone, que nos levam a pensar que a discussão do cinema, hoje em dia, em Itália, passa necessariamente pela discussão do poder da televisão.
Por um lado, podemos falar de cinema sem falar de televisão. Por outro lado, é um facto que, trabalhando nós sobre o presente, não podemos esquecer que é da televisão que provém a maior influência sobre a consciência política.
Pode dizer-se que, em Itália, como noutros países europeus, há muitos espectadores que abandonaram as salas de cinema e apenas consomem televisão?
É um problema, sem dúvida — tem a ver com a abandono dos rituais colectivos. E escusado será dizer que o cinema, a ideia de sair de casa e participar colectivamente na visão de um filme, é um desses rituais que pode estar a desaparecer. Em todo o caso, creio que algo mudou nos últimos dois ou três anos: há uma disponibilidade maior para ir ver determinados filmes, digamos filmes algo especiais.
E Rossellini, Fellini, Antonioni... existe alguma memória dos grandes clássicos?
Digamos que há uma parte de memória inconsciente, porque esses grandes cineastas mudaram o imaginário colectivo. Ao mesmo tempo, há uma enorme ignorância, já que muito poucos viram os seus filmes. Temos a sorte de, em Itália, existirem entidades como a Cinemateca de Bolonha que têm desenvolvido um trabalho importantíssimo de restauro e apresentação pública de filmes antigos. Em Itália, também existe a televisão de Berlusconi, mas é mais interessante falarmos da Cinemateca de Bolonha...
João Lopes, sound--vision.blogspot.pt

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