MR. TURNER de Mike Leigh | 23 JULHO |Q - Espaço Cultural | 21h30


MR. TURNER
Mike Leigh, Reino Unido, 2014, 150’, M/12


FICHA TÉCNICA
Título original: Mr. Turner
Realização e Argumento: Mike Leigh
Montagem: Jon Gregory
Fotografia: Dick Pope
Música: Gary Yershon
Interpretação: Timothy Spall, Paul Jesson, Dorothy Atkinson, Karl Johnson, Marion Bailey, Paul Jesson, Ruth Sheen, Sandy Foster
Origem: Reino Unido
Ano: 2014
Duração: 150’






CRÍTICA

Uma interpretação extraordinária de Timothy Spall transporta um filme inteligente sobre as contradições entre o artista e a sua arte.
Costuma dizer-se de alguém que está a fazer “figura de urso” quando se está a comportar de modo estranho ou caricato ou excêntrico. É, de caminho, a melhor definição para o que o grande Timothy Spall faz na pele do pintor britânico do século XIX J. M. W. Turner: dá-lhe qualquer coisa de animal não inteiramente domesticado, um urso que procurasse encaixar-se na sociedade civilizada do melhor modo possível, mas incapaz de esconder a sua natureza selvagem, comunicando por grunhidos e rosnados, mesmo quando articula frases rebuscadas e elaboradas como se esperaria da Inglaterra vitoriana. Turner é uma figura de urso de cujas patas saem quadros de uma beleza delicadamente poderosa, explorações impressionistas de cor, luz e textura que compõem uma imagem. É esse o segredo da arte: como transmutar o banal em transcendente, como colocar emoção numa sucessão de traços e pinceladas. 
Mike Leigh, o resmungão cineasta inglês que tem passado toda a carreira a transmutar os metais aparentemente pobres da vida quotidiana no ouro precioso de uma série de retratos de gente normal que tem tudo de excepcional, pode muito bem estar a falar de si quando está a contar a história dos últimos anos de vida e obra de Turner. Mr. Turner gira todo à volta da aparente contradição entre a transcendência gloriosa da arte e a banalidade e fragilidade do artista, do divórcio entre aspiração e realidade, inspiração e transpiração. Não há melhor exemplo para isso do que a espantosa cena em que o que parece ser uma “provocação” ao colega e rival Constable se revela ser uma pequena inspiração que dá uma dimensão adicional a um quadro que pareceria acabado – momento que também diz como inspiração e transpiração, petulância e talento são indissociáveis.  
É por aí que percebemos como Mr. Turner encaixa na filmografia mais tradicionalmente “socio-realista” de Leigh, mais atenta à Inglaterra contemporânea e que só no magistral Topsy-Turvy(1999) se arriscara pelos caminhos do filme de época: tal como a pintura de Turner, também o seu cinema se constrói numa metódica abordagem de preparação e trabalho de casa que permite, depois, que tudo floresça frente à câmara. E, por muito que não pareça ser um dos filmes maiores de Leigh – é um tudo nada mais pesadão e flácido do que o seu habitual - , a riqueza de pormenores, a inteligência da abordagem e o rigor da reconstituição tornam Mr. Turner num dos melhores filmes que se podem ver agora por aí. Com o bónus da interpretação absolutamente extraordinária de Timothy Spall, cúmplice de longa data de Leigh que parece habitar a complexidade e as contradições de Turner como se não fossem nada de mais. É uma figura de urso que merece ser vista e aplaudida.
Jorge Mourinha, publico.pt


ENTREVISTA AO REALIZADOR
Interessa menos a Mike Leigh seguir as convenções do filme biográfico (que ele habilmente contorna), sublinhar a excentricidade do homem que homenageia, do que interrogar o mistério intemporal da criação
— afinal, o verdadeiro tema do seu último trabalho, “Mr. Turner”.
Timothy Spall, um dos seus atores prediletos [e que sairia de Cannes 2014 com o Prémio de Melhor Ator], ‘apodera-se’ da figura do pintor numa encarnação que está muito longe do retrato caricatural deste género de filmes. Este é o ‘seu’ Turner? E interessou-lhe distinguir o homem do artista?
Espero que essa distinção se note no filme, francamente. Aliás, foi esse contraste que me fascinou. Estamos perante um pintor extraordinário mas também um homem conflituoso, complexo, vulnerável. Quando me comecei a interessar por Turner [1775-1851], dei-me conta de que a sua vida qualificava muito a ousadia dos seus quadros. “Mr. Turner” nasce, portanto, da soma destes elementos. Da minha curiosidade pelo gesto criativo unida à minha curiosidade pela biografia. E, sim, este é o ‘meu’ Turner.
Quais foram os perigos que um flime destes, raro na sua carreira, lhe levantou?
Ficar cercado por um tema e ao mesmo tempo sentir que não podia sair dele, que era preciso ‘meter as mãos na massa’. Ficar à superfície da história, do biografado, do seu trabalho. Quis que Turner - e digo-o com a maior modéstia possível - entrasse na minha circulação sanguínea. Esta é a melhor resposta à sua pergunta.
Acha que o trabalho de Turner lhe exigiu uma distância necessária face à realidade do seu tempo?
O que é que lhe parece?
Acho que sim. Mas os seus filmes sempre precisaram da realidade, do presente, de um aqui e agora...
Não discordaria da observação...
Pensou ou reviu outros filmes sobre pintura antes de realizar este?
Vi vários, mas não para procurar uma inspiração. Sabe como é, os filmes levam a outros, influenciam-nos quase sempre mal. É claro que há bons filmes sobre pintura, mas não sobre Turner. Eu queria que ele entrasse nessa galeria.
Van Gogh”, de Pialat?
Seguramente é um dos melhores, sim. Estou a lembrar-me de um bom filme de Alexander Korda, “Rembrand”, feito em 1936, com Charles Laughton. Por outro lado, e embora eu tenha sido um grande amigo de Derek Jarman, acho o seu Caravaggio” muito aborrecido.
Porque é que não há filmes sobre Turner?
Foram feitas, no Reino Unido, algumas dramatizações televisivas sobre ele. Todas péssimas... Não lhe sei responder. O que é espantoso é que a vida de Turner é muito cinematográfica.
A última linha do filme está documentada ou foi uma criação sua?
O quê: “The sun is God”? Foram as últimas palavras de Turner no leito da sua morte. Não me parece que seja uma frase que possa ter sido inventada... Os biógrafos, é claro, disputam estas coisas. Eu li essas biografias... para melhor me conseguir desembaraçar delas.. Por exemplo, um dos episódios mais célebres sobre Turner é esse, lendário, em que ele se terá feito amarrar ao mastro de um navio para contemplar, lá de cima, uma grande tempestade em pleno mar alto. Pintou essa tempestade depois. Biografias recentes salientaram contudo que essa aventura nunca aconteceu. Mas nós estamos a fazer um filme. Não podíamos evitar esse episódio.
Coleciona pintura?
Quem me dera... Vivo num apartamento. Com muitas janelas... Não sou muito rico. Não tenho um Turner em casa... Acho que me está a perguntar isso por saber que eu venho da pintura, que estudei numa escola de arte... O meu avô foi pintor. Considero-me apenas um entusiasmado cineasta de 70 anos, 100% dedicado à minha profissão.
 Durante o filme, pensou no sofrimento que Turner teve de atravessar para realizar o trabalho? “Mr. Turner” sublinha-o. È um sofrimento inerente a qualquer artista?
Se mudarmos ligeiramente a direção dessa pergunta podemos pensar nisto: não é o sofrimento necessário a tudo o que vale a pena? O trabalho exige sofrimento. As coisas não aparecem do nada. E há coisas que nos exigem muito mais do que uma rotina de trabalho das 9h às 17h; um filme, por exemplo. O sofrimento não é uma necessidade, é uma inevitabilidade.
Pensei também no momento em que o filme incide um foco sobre a crítica - que Turner, então
incompreendido, teve de enfrentar com particular acidez...
O que esse foco nos diz é que haverá sempre uma ideia preconcebida, tão elitista quanto académica, em relação à arte que, no meu filme, John Ruskin [escritor e crítico de arte britânico, 1819-1900] representa. lsto é muito claro no momento Ruskin surge a contemplar aquele célebre quadro de Turner em que os escravos africanos se estão a afogar durante um naufrágio [“Slave Ship (Slavers Throwing Overboard the Dead and Dying. Typhoon Coming On)”, de 1840]. Turner explica o dramatismo desse episódio. mas Ruskin responde-lhe friamente em termos formalistas, desprovidos de qualquer substância emocional. Era com isto, com estas atitudes, que eu estava preocupado, não com um ataque à critica... Se quer que lhe diga, estou à espera que me caiam agora em cima pelas liberdades que tomámos... Mas “Mr. Turner” não é um documentário.
Há uma momento em que Turner se pergunta - e numa altura em que, economicamente, podia permitir-se esse ‘conforto’ se deve vender ou não os seus quadros, ‘entrar no sistema’. Esta questão já se atravessou ao longo do seu percurso de cineasta?
É muito difícil comparar os casos. Não nos podemos esquecer que, no tempo do Turner, o canal de saída da arte estava na mão de meia dúzia de privados. Quase não havia galerias nacionais em Londres. Paris já tinha as suas, mas Londres não. Turner deu-se conta disso. O seu trabalho salvava-se ou morria às mãos daquela meia dúzia... Acontece que ele tinha outra ambição, e também aqui estava à frente do seu tempo: libertar os seus quadros, mostrá-los a quem os quisesse ver. Não há paralelo com aquilo que faço. Agora, se me perguntar se eu quero fazer filmes em Hollywood... A resposta é NÃO! Seria um desastre!
O facto de ter feito um filme de época condicionou de alguma maneira o seu trabalho de direção de atores - aspeto que sempre considerou ser o mais primordial no seu trabalho?
De modo algum. O trabalho é o mesmo. Pode investigar Turner durante cem anos, ler mil livros, que isso jamais o ajudará quando os atores estão em frente à câmara.
Continua a ensaiar imenso com os atores antes da rodagem?
O mais possível, não sei fazer filmes de outra maneira.
Os conflitos entre homens e mulheres, rodeados por contextos sociais específicos, sempre foram importantes no seu trabalho, desde “Bleak Moments” [1971]. Gostava de pedir-lhe um comentário sobre a relação de Turner com a governanta e o modo como essa relação evolui no filme.
Sabemos que Mrs. Booth existiu, que Turner teve uma relação muito especial e eventualmente viveu com ela, mas não sabemos muito mais. Não se provou que essa relação fosse sexual, por exemplo, mas pareceu-nos muito natural explorar isso no filme. Porquê? Turner era um homem dado a vidas duplas. Gostava do anonimato. Viajava e instalava-se com nomes falsos nos albergues. Escondia que tinha família e filhos. Refugiava-se nisso, e eu acho que era uma defesa para conseguir estar a sós com o seu trabalho. Decidimos pois dar à governanta uma maior importância. Aparentemente, ela tinha uma doença rara que lhe desfigurava a cara, ninguém sabe ao certo o que era, estávamos no século XIX...
Timothy Spall tem muitos momentos divertidos no filme. Também o escolheu pelo seu sentido de humor?
Ele é mesmo muito divertido, não é? E este filme pouco tem de comédia... Não, além do facto de trabalhar com ele há muito tempo, o Timothy está familiarizado com Turner, estudou pintura e é um Iondoner puro, conhece a cidade como ninguém e é um apaixonado pelo século XIX. Estudou Dickens profundamente. Eu sabia que ele podia carregar essa sensibilidade para a personagem. Compreender o pano de fundo daquela classe operária e cockney, muito presente em Dickens.
Já se pensou em retirar do cinema, agora que o Ken Loach disse em Cannes que o novo filme dele será o último?
Bom, ainda bem que o Ken Loach é mais velho do que eu... Eu tenho adotado esta rotina de fazer um filme a cada dois anos, se tudo correr bem cá estaremos em 2016.

Se tivesse tido mais dinheiro, “Mr. Turner” seria um filme diferente do que é?
Seria, porque teria ido filmar a Veneza. São famosas as suas viagens a Itália e os quadros que ele lá pintou. Mas tínhamos um orçamento para cumprir. E algum trabalho informático para fazer em CGI, na cena da tempestade, que ficou muito bem. Eu desconfio da tecnologia. Este é apenas o meu segundo filme em digital. Pensando agora, acho que “Mr. Turner” não precisava assim tanto de Veneza: o homem já é enigmático que baste.
Francisco Ferreira, Expresso, 27/12/14

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