EM SEGUNDA MÃO| Catarina Ruivo| 2012| 19.12.13| Auditório do IPDJ, 21:30h

19 DE DEZEMBRO
FICHA TÉCNICA
Realização: Catarina Ruivo
Argumento: António Pedro Figueiredo, Catarino Ruivo
Interpretação: Pedro Hestnes, Rita Durão, Luís Miguel Cintra, Vasco Apolinário, Marcello Urgeghe, Ricardo Aibéo, João Grosso, Joana de Verona ,António Pedro Figueiredo
Som: António Pedro Figueiredo
Montagem: Catarina Ruivo
Ano: 2012
Duração: 114’
Origem: Portugal
M/12

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SINOPSE
Jorge é um solitário escritor de romances de cordel. À noite olha através das janelas iluminadas as pessoas nas suas casas e pensa que elas, sim, são felizes.
Um dia o acaso, pensa ele, leva-o até à casa onde vive Laura com o seu filho André, e através das grandes janelas Jorge descobre a montra de uma vida perfeita.
Mas as vidas perfeitas só o são quando vistas de fora. De perto nada é o que parece: o anterior marido de Laura desapareceu misteriosamente e estranhos telefonemas perturbam a imperturbável Laura. Jorge não se assusta, quer protegê-la. Inventa um homem feito à medida de Laura, um homem para ela amar e consegue entrar naquele mundo maravilhoso que julga conhecer.

CRÍTICA
Jorge (Pedro Hestnes) vive só, no quarto de uma pensão obscura que tem um rececionista mais obscuro ainda. Ganha mal a vida, que estes são tempos de crise, a escrever romances de cordel. Recebe prostitutas no quarto, mas não estamos certos se a realidade foi substituída pela ficção do novelista, se o presente é passado e se a vida de Jorge, que neste filme está projetada num pretérito poético, também não foi já trocada pela morte — até porque Em Segunda Mão”, sem o desejar, ganhou carga testamentária com o desaparecimento do seu protagonista. Até que Jorge, homem pobre, peeping tom à sua maneira, conhece numa praia deserta Laura Castro Lima (Rita Durão), filha de homem abastado. Jorge sobe na vida. Tenta aprender a viver entre ricos. Confronta-se com as grandes janelas da casa de Laura, que para ele são paredes invisíveis. Há um momento em que a escala de planos de Catarìna Ruivo se altera, alterando também um flime que, até aí, nos seduzira a baralhar a nossa perceção da realidade: é quando, num jantar com o pai da nova namorada, Jorge, interrompido por um campo-contra- campo, se sente comprado — e Hestnes cora de vergonha. Com uma ironia subtilíssima (vejam-se os papéis de Ricardo Aibéo e de João Grosso, notáveis), Catarina Ruivo, através do seu herói desconfortável, sublinha a luta de classes e critica a violência do dinheiro, a perda de valores dos dias em que vivemos. “Em Segunda Mão” exige-nos tempo para chegar ao seu tempo fragmentado. Perde-se e reencontra-se. A nível de direção de atores, é um triunfo ganho pelo rosto extraordinário de Hestnes, com uma vulnerabilidade: capaz de devorar tudo o que o rodeia. Não a perca.
Francisco Ferreira, Expresso.
A terceira longa-metragem de Catarina Ruivo segue os passos de Jorge (Pedro Hestnes), um amargurado escritor de novelas eróticas de cordel, com vontade de mudar de vida e de personalidade. Um dia, Jorge conhece Laura (Rita Durão), que vive só, com o filho, após o abandono do marido. Jorge molda um homem para Laura amar. Sobe na vida, ganha acesso a outra classe social. Um mar de ilusões, já que esta é também a história de uma relação de amor em falência e de um homem insatisfeito e vulnerável que se engana a si próprio — o último composto por Pedro Hestnes, numa interpretação sublime.
Porquê este título, “Em Segunda Mão”? Faz-nos pensar que a vida de Jorge, o protagonista do filme, já foi vivida.
O Jorge é alguém que está fora do mundo. Não se atreveu ainda a entrar no turbilhão da vida. E, quando se atreve, é como se começasse a viver uma vida em segunda mão, a vida de outra pessoa.
Num diálogo lá para o fim, ele vai perguntar se ainda pode ter a sua vida de volta. Respondem-
-lhe que ela já está ocupada...
Como uma montra. Ele olha para as janelas como montras de vida perfeitas e escolhe uma, em segunda mão, através de Laura. No fundo, não chega a conhecê-la. Para mim era muito importante começar o filme dentro da cabeça do Jorge e do seu caos interior. Ele vive como um espectador. Além de que, depois, descreve as suas próprias fantasias nos romances de cordel. Só que não há vidas perfeitas. No outro dia li um texto de um sociólogo que dizia que não há regras para a felicidade porque a felicidade é uma coisa extremamente pessoal. Ou seja, se quisermos, podemos inventar um mundo perfeito para nós. O Jorge, além de passar o tempo a inventar mundos perfeitos nos seus livros, decide que se quer apropriar da felicidade através de outra pessoa. Vê em Laura algo que ele pensa que é a felicidade, e quer vestir essa vida, como um fato feito à medida. O problema é que os fatos dos outros raramente nos ficam bem.
Porque é que o Jorge escreve livros de cordel?
Deu-me muito gozo entrar nesse universo. Nessa literatura de ‘pronto a vestir’. Eu lembrava-me dessas revistas quando era miúda, “Sabrina” e a “Bianca”. Já não existem foram substituídas por livros de bolso, alguns best sellers. Li muitos antes de escrever o argumento, têm regras muito precisas e uma mecânica própria. 


Mas o Jorge por vezes tem tiradas poéticas que não têm nada desses livros...
Pois não, são excertos de poemas do António Botto.
“Em Segunda Mão” é um filme composto por muitos detalhes, vozes diferentes que serão provavelmente todas de Jorge: a voz que ele dita para o gravador que usa para trabalhar, por exemplo. O tratamento do tempo é singular, o passado e o presente confundem-se. Houve um investimento importante da sua parte na escrita do argumento. Como é que este se processou?
Eu queria estar sempre dentro da cabeça da personagem, na sua perceção da realidade e na sua perceção do tempo, que são ambas fragmentárias. O argumento que escrevi com o António Pedro Figueiredo, foi construído a partir de camadas. Começou por uma linha simplista, a de alguém que se engana na maneira com procura a felicidade, e depois foi recebendo personagens, que se tornaram mais densas e contraditórias. Foi um processo longo. Há outra coisa a salientar: todas as personagens foram escritas para os atores que as interpretam.
Escrever um filme também é escrever um pouco da nossa biografia? Estou a lembrar-me da personagem de Laura, que tem um filho chamado André. A Rita Durão ‘já foi mãe’ de um André num fllme seu, “André Valente”...
Acho que sim. “Em Segunda Mão” é o meu filme mais pessoal. Há esta coisa das janelas, por exemplo: desde miúda que adoro olhar para as janelas, como o Jorge. Às vezes tenho a ilusão de que, quando as coisas me estão a correr pior, poderia ser mais feliz se mudasse de casa. Isto tem também tudo que ver com o cinema. Está refletido no cinema que faço. Aquele prédio em que vive o Jorge tem janelas que parecem fotogramas, são como quadradinhos de luz em que se passam vidas e eu gosto muito disso, de olhar para a vida das pessoas. A autobiografia está presente. Antes de entrar na Escola de Cinema, trabalhei na Relógio d’Água. Foi nessa editora que filmei os encontros de Jorge com o editor dele, um papel que eu tinha pensado para o Paulo Branco, mas que ele recusou. A personagem do editor desenvolveu-se e foi João Grosso quem fez o papel, num trabalho que me deixou muito feliz. A relação de Jorge com o editor, essa sim, é quase uma relação de amor.
Jorge é uma personagem que vlve do fingimento enquanto escritor. Assina sob o pseudónlmo de uma mulher, Clarice B.
É uma mistura de Clarice Lispector e de Agnès B.
Por outro lado, Pedro Hestnes, ele que nos deixou algumas das personagens mais frágeis e inadaptadas do cinema português, era alguém com dificuldade ‘em fingir’, como se a interpretação fosse indissociável da vlda, da mesma experiência.
Por isso foi tão importante ter o Pedro Hestnes no papel. O Jorge é um vencido da vida e o Pedro, que sempre teve uma predileção pelos vencidos, traz-lhe outras coisas, uma adolescência tardia que inquieta, um desconforto permanente que comove. Antes da rodagem, tive longas conversas com o Pedro, sobretudo ao telefone, mas não falávamos do filme. Falávamos de livros, de outros filmes, do que pensávamos da vida. “Em Segunda Mão” foi feito assim. A direção de atores e a construção das personagens começaram fora do filme.
Como é que ele lidou com a personagem?
As coisas com o Pedro Hesrnes só se passavam através de uma relação pessoal — ou não se passavam de todo. Quanto maior era a intimidade, melhor as cenas resultavam. Uma das coisas que me impressionaram mais foi a sua relação com o texto — e a personagem de Jorge tem bastante para dizer neste filme. EÏe precisava de decorar o texto até à exaustão, mas isso significava não usar nada da sua livre vontade. “Porque as palavras contam”, disse-me. O seu processo de trabaçho era complexo: ele apropriava-se do texto até sentir que as palavras já faziam parte de si próprio. Quando fiz este filme o Pedro já estava muito frágil fisicamente. Ninguém tinha noção da sua doença. Foi tudo muito rápido. Durante a rodagem, ele estava muito feliz por trabalhar. terminámos o filme depois da sua morte. É para mim incontornável pensar agora que a personagem de Jorge foi escrita para um Pedro Hestnes que foi envelhecendo e que o seu corpo foi traindo.
Já me falou da relação de Jorge com o seu editor, talvez o único momento da vida do primeiro em que a razão predomina sobre o desejo. Nessa relação, há uma coisa em jogo: dinheiro. Gostava que me falasse deste elemento essencial no filme.
Volto à questão da felicidade. Da ilusão de felicidade que o valor do dinheiro cria e que a vida com Laura proporciona a Jorge. Lembro-me que o Pedro Hestnes me disse que estava muito contente com o argumento porque o achava antiburguês.
Há uma cltação de um filme de Fassbinder...
“O medo devora a alma...”
Há outros que a influenciaram?
Há momentos. Sem querer fazer um filme de género, não quis deixar de brincar com isso. “Em Segunda Mão” tem um potencial de thriller e de filme negro. A escuridão e a ameaça estão sempre presentes na fotografia. Há um plano do Jorge e da Laura na casa dela que ‘roubei’ do “Fallen Angel”, de Otto Preminger.
No travelling final, Jorge sai de campo — e não mais voltaremos a ver Pedro Hestnes,no clnema. Um plano de adeus?
Foi um plano que filmámos no início da rodagem. Não sei se é de adeus. Talvez o seja. Pode ter várias leituras. Também acho que é um plano de libertação.
Francisco Ferreira, Expresso.



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