5ªf, HOMENAGEM A ANGELOPOULOS - O PASSO SUSPENSO DA CEGONHA. 21h30, Sede

ENTRADA LIVRE.

Aqueles que viram "A Viagem dos Comediantes” ou "O Apicultor" poderão reconhecer a marca de Angelopoulos. Mas isso não chega para, conhecer este filme. Pelo contrário, reduzir "O Passo Suspenso da Cegonha" aos protocolos e códigos de um estilo seria a melhor forma de o perder.

Porque o essencial é exactamente o contrário: conseguirmos perceber como, através de um estilo que se reforça pela repetição, Angelopoulos consegue fazer passar o absolutamente inédito, o inteiramente outro, a novidade radical de uma experiência humana.

Dessa experiência, poderemos dizer que ela é de uma actualidade agudíssima. Em certa medida, é possível afirmar-se que nenhum filme contemporâneo se aproximou tanto, e com tal intensidade e inteligência, das questões fundamentais do nosso tempo. A primeira salta aos olhos, e tem a ver com o retorno das pulsões nacionalistas e o retraçar demencial e obsessivo de novas linhas de fronteira. Aqui, Angelopoulos, sempre mais complexo do que alguma vez poderíamos imaginar, diz-nos que a linha de demarcação é absurda, e é essa ideia que sustenta o absurdo do passo que se suspende sobre o arbitrário dessa linha (mais um centímetro e é o tiro que parte, a morte que irrompe, insensata); mas diz-nos também, no movimento doloroso da lucidez quase insuportável de toda a sua obra, que são os próprios homens, mesmo os mais miseráveis e desprotegidos, que continuam a traçar fronteiras, divisões e separações, redutos de sangue e de ódio, no interior das suas próprias e devastadas terras de exílio. Sublinhemos este ponto: “O Passo Suspenso da Cegonha” lança-nos num impulso de utopia, mas sem nunca rasurar o que de mais contraditório e trágico existe no coração dos homens.

Segundo tema fundamental: o desenraizamento que resulta dos percursos desesperados das massas em migração, a erosão dos critérios de referência que permitem desenvolver identidades colectivas e individuais. Nesse aspecto, o filme “começa” (que significa “começar”? – significa que este é o momento em que temos a certeza de estarmos a ver uma obra extraordinária) no espantoso “travelling” ao longo das carruagens de comboio imobilizadas no limiar da floresta, e onde se alinham, na mais violenta das resignações, com a dignidade de quem transporta toda a dor do mundo, os rostos endurecidos do exílio.

Terceiro tema: a história nuclear deste filme (mas são várias as histórias, todas se tocam, nenhuma prevalece) diz-nos que um conhecido e brilhante político abandonou tudo e todos, depois de um discurso no Parlamento em que apenas afirmou que era preciso criarmos um estado de silêncio que nos permitisse ouvir a música da chuva. E partiu, ninguém sabe para onde; partiu para outro lugar, mas sobretudo partiu de si mesmo, partiu-se da sua identidade congelada para afrontar a cisão, a deriva das fronteiras, o anonimato de cinza e frio matinal. Na figura admirável do Desaparecido (que poderá ser aquele que surge na representação perfeita de um Marcello Mastroianni), encontramos toda a problemática actual de uma vida política que, enovelada na sua própria lógica, acabou por se minar a si própria pela perda da transparência e verdade autêntica. O Desconhecido usa o silêncio, a cumplicidade tácita (talvez a Mulher o tenha reconhecido, mas reconheceu-o o bastante para o considerar definitivamente desconhecido – e esse pode ser o limite da paixão), a alegoria, a resposta pelo gesto (procurar um peixe dentro de água para não ouvir a sua própria voz na cassete). Em todos estes comportamentos, o Desaparecido tem como preocupação fundamental o apagamento sem falhas de todos os sinais da sua identidade – mas mais do que isso: o obstinado retorno ao estatuto do lugar-comum entendido como a matéria primordial do desejo democrático.


Outro tema ainda fundamental: o de um filme que tem como eixo narrativo o trabalho de um repórter da televisão, o que leva a que, em certas circunstâncias, se verifique uma duplicação dos níveis da imagem (vemos no filme a imagem filmada pela televisão). Mas este ponto, não empurra Angelopoulos para uma reflexão sobre os efeitos contemporâneos da hiper-realidade. Como escreveu Youssef Ishaghpour (na esplêndida crítica publicada em “Les Temps Modernes”), “como outrora para Tarkovsky, mas numa perspectiva diferente, Angelopoulos vem ainda dum mundo que existe, mesmo que seja como mundo do exílio e da nostalgia, e não foi transformado em hiper-realidade pela imagem e pelo simulacro".

Mas tudo isto passa por algo de decisivo e apaixonante: o modo de filmar de Angelopoulos. Os seus longos e deslumbrantes planos-sequência não são uma mera figura de retórica. São a expressão intensa e obsessiva de uma relação com o mundo. Filmando como filma, Angelopoulos dá-nos imagens que nos cortam a respiração. Que quer dizer este sentimento de uma respiração suspensa? Quer dizer que, no interior de cada um destes planos inverosímeis, encontramos sempre mais outra coisa, que já lá estava, desde sempre, fatal, inevitável, mas que, no entanto, é, no curso da lógica desse plano, a surpresa absoluta, a novidade inominável, o suplemento de sublime que desejávamos, o excesso imprevisível do real. Nenhum cinema dos nossos dias consegue ir tão longe nesta arte de produzir pelo movimento da própria imagem a sensação de que tudo existe, inevitável e incalculável, antes dessa mesma imagem: Uma representação que conduz o presente ao coração selvagem da origem, e o envolve, mesmo na sua forma mais modesta, rasteira e insignificante, de uma dignidade e de um respeito, de uma ternura e de um espanto, que, nos momentos mais fulgurantes, nos retiram toda a identidade, e nos precipitam, sem fôlego, para o interior da própria imagem.
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Eduardo Prado Coelho, Público, 17/4/92


Angelopoulos filma aqui uma espécie de desespero radical, de quem perdeu todas as ilusões diante de um final de século em que o mundo aparenta optimismo mas, na realidade, se encontra privado de todas as esperanças. A euforia demoliberal que atravessa o Ocidente, com o fim dos regimes ditatoriais da América Latina e África (mas outros nascem...), com o fim da divisão da Europa em dois blocos antagónicos, com a aparente «conversão» universal às virtudes de um único sistema económico e político, é orquestrada com fanfarras de unanimismo, como se o livre comércio e o parlamentarismo burguês fossem um ideal planetário e avançássemos para o melhor dos mundos possíveis. Mas não é assim, porque a História não pára, nem as contradições sociais e étnicas, nem os movimentos da Terra. E descobrimos, perplexos (?!), novas dobras de dor e sofrimento, pulsões que se julgavam erradicadas, intrincados nós no caminho da espécie humana. Com uma angústia porventura mais densa do que antes: é que as utopias morreram - e morreram a sangrar de vergonha...

O Passo Suspenso da Cegonha é um filme que respira essa angústia, esse vazio desesperado de horizontes, possíveis ou miríficos. Na sua imediata aparência fala de uma questão pontual, o problema dos refugiados à beira das fronteiras inultrapassáveis, divididos pelo absurdo de uma linha no solo, um risco na paisagem. Mas nas suas entranhas é algo muito mais vasto que palpita. É a suspensão da acção, a impotência de mudar, a resignação ao cinzento. É a descrença na política como fonte de alteração das coisas, é o alheamento. Se o personagem central de O Passo Suspenso da Cegonha abandonou tudo é porque só pode acreditar numa coisa pequena, palpável, directa: a partilha franciscana do sofrimento com os deserdados. Tudo o mais colapsou.

Muito bonito é que o desespero tenha notações que remetem também para a memória do cinema. Que outra leitura para a presença de Marcello Mastroianni e de Jeanne Moreau, num casal estraçalhado pelo vazio, senão uma reminiscência que poderá conduzir - em fim de caminho - a A Noite de Antonioni? Reminiscência que passa pelo que esses dois actores foram neste século em que os vimos envelhecendo connosco, à medida que o cinema europeu perdia a fé em si mesmo e perdia a cumplicidade do público. Não são eles, também, náufragos de qualquer coisa que o andar dos dias afundou?

Angelopoulos é o primeiro cineasta a captar algo que anda por aí a corroer-nos. Fá-lo no seu jeito calmo, um pouco formal, hierático, varrendo a paisagem a voos de plano-sequência, mais os silêncios que as falas, mais o tempo que a acção. Estaremos dispostos a deixarmo-nos possuir por este ritmo contrário ao frenesim com que o cinema costuma, hoje, agitar-nos? Estaremos disponíveis para um discurso que é tudo menos exaltante? Se o estivermos - mas O Passo Suspenso da Cegonha caminha contra-a-corrente - por certo que não receberemos «entertainment» e fogo de artifício, evasão e divertimento. Só seremos confrontados com o que não queremos ver. Mas desde quando o cinema serve apenas para fugir de casa, do quotidiano e dos calados medos?
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Jorge Leitão Ramos, Expresso, 17/4/92



E se estivéssemos a 31 de Dezembro de 1999? Enquanto se aproxima o fim do século, o filme de Angelopoulos fala-nos de uma Europa em que se multiplicam as fronteiras e os ódios. Como imaginar o futuro? O passado recorda-se como no reencontro dos protagonistas, e o presente é habitado por um silêncio doloroso, mas também belíssimo.

Tão incrível é o facto de "O Passo Suspenso da Cegonha" ser o primeiro filme de Theo Angeloupolos a estrear em Portugal que uma questão de informação não pode deixar de se pôr: como fazer um discurso sobre um filme para espectadores que eventualmente nada antes viram do realizador, não têm dele uma memória?

O espectador chega a um filme com um conjunto de expectativas, eventualmente de conhecimentos prévios. Algo dessas expectativa está implicitamente presente no filme. Quando reuniu Jeanne Moreau a Marcello. Mastroianni, Angelopoulos não estava apenas a escolher actores, mas também a convocar certas memórias cinematográficas. Quando se aproximam, após 90 minutos, 30 anos após "A Noite" de Antonioni, as expectativas são homólogas para os que no filme os observam e para os espectadores do filme: ela vai reconhecê-Io?


O exemplo, com origem exterior à obra de Angelopoulos, poderia ser transferido para o interior dela, notando a persistência de características pessoais inconfundíveis, a mestria dos planos sequências, antes de mais, mas também aspectos que de filme para filme podem suscitar um "acréscimo de reconhecimento", o receio de uma repetição do discurso.

Depois de uma trilogia em que foi narrando a história da Grécia, "Dias de 36/A Viagem dos Comediantes/Os Caçadores", prolongada em "O Megalexandros", a obra de Angelopoulos foi marcada por uma progressiva evacuação da política, instância até aí primordial nos seus filmes. A "Viagem a Cítera", em que a memória política era confrontada com a dificuldade de um discurso no presente, seguiu-se "O Apicultor", o seu filme mais tentado pelo silêncio. A personagem de Mastroianni, que parte em viagem sem motivo aparente, é o precedente óbvio daquela que o mesmo actor interpretará em "O Passo Suspenso da Cegonha". Uma viagem, uma viagem para o Norte, era a de dois irmãos que queriam ir ter com o pai, emigrante na Alemanha, em “Paisagem no Nevoeiro". Perguntava o miúdo: "o que é uma fronteira?".

Como no passo suspenso da cegonha, um homem pode ter um pé assente no limite de um país e o outro, levantado, na hesitação de pisar uma terra que já outra. "Sabe o que é uma fronteira? É nesta linha azul que acaba a Grécia. Se der um passo estou do outro lado", diz o militar, em resposta à pergunta do pequeno de "Paisagem no Nevoeiro".

Chame-se-lhe coerência, e por certo também o é, mas esta continuidade de motivos temáticos não poderá também ser reveladora de que o cinema de Angelopoulos está prisioneiro do seu passado? Quando essa hipótese se parecia desenhar eis que "O Passado Suspenso da Cegonha" nos coloca perante um estranhíssimo efeito de actualidade: pela primeira vez vimos um filme que enfrenta questões de que quotidiana¬mente vamos sendo informados, os dramas dos refugiados, dos curdos e dos albaneses, a paranóia do complexo identitário em que se traçam as de¬marcações entre "nós" e "eles", a demência nacionalista de uma Europa retalhada na multiplicação das fronteiras dos ódios (e durante a rodagem, o filme foi "excomungado" pelo bispo local).


Poderia recear-se que neste cenário de actualidade houvesse da parte de Angelopoulos uma lógica demonstrativa. A questão existe. Na trama ficcional há três níveis: o primeiro é o dos refugiados concentrados numa cidade junto à fronteira, "a sala de espera" em que aguardam pela possibilidade de partir para outras paragens; es¬ses refugiados, segundo nível, são objectos de uma reportagem televisiva, durante a qual o jornalista julga reconhecer um político misteriosamente desaparecido; para proceder à identificação do presumível desaparecido, o jornalista solicita a mulher daquele, terceiro nível. Agente da exposição do real, o jornalista acaba por ser como um alibi teórico que articula estes níveis. "A única coisa, que sei é filmar os outros, sem me importar com os sentimentos deles", diz; nesse momento haverá não apenas a auto-crítica da personagem mas também uma auto-crítica do autor pelo modo como manejou essa específica personagem. Só que quando a averiguação é orientada para confirmar a hipótese prévia (o homem é o desaparecido), tudo balança no momento em que aquele é "confirma¬do" como pai de uma refugiada. A dúvida não se esclarecerá.

Logo de seguida, pela primeira vez no filme, todos os três níveis do argumento estão simultaneamente presentes, um magistral plano-sequência que abre com um refugiado enforcado e se conclui com a chegada da senhora. Por marca estilística reconhecível que seja, o plano-sequência em Angelopoulos é sobretudo uma consciência histórica e uma ética do cinema. O plano-sequência é aquele que se nos exibe como tempo real (o tempo da percepção pelo espectador corresponde ao tempo das movimentações da câmara) e ao mesmo tempo aquele que mais insinua a transitoriedade, a passagem de um presente a passado. A passagem no tempo é concomitante em Angelopoulos com uma deslocação do espaço. Houvera "A Viagem dos Comediantes"; depois de "Táxi Para Cítera", todos os seus filmes se colocam sob o signo da viagem, de uma deslocação no tempo de um espaço para outro, em que eventualmente aquele mesmo que se desloca se torna um "outro", como o político que misteriosamente partiu.


Poderíamos então perguntar se neste constante trânsito entre passado e presente é possível induzir um futuro. Falarão alguns de projecto colectivo, de um horizonte social em que os direitos da Cidade sejam colectivamente assumidos, sobrepondo-se à lógica da exclusão. "Que deveria ser uma democracia? A iniciação permanente às ideias pluralistas. Que é na realidade? A aprendizagem constante do desinteresse pela cidade. Ela forma este sistema contraditório que permite não apenas ser combatido, mas mesmo a desviar-se dele, a esquecê-lo para velar pelos nossos próprios interesses. O direito de esquecer a política, um dos direitos fundamentais dos Modernos, tende a suplantar todos os outros. Cada um torna-se potencial¬mente um desertor da Coisa Pública, um exilado do interior" (Pascal Bruckner - "La Mélancolie Démocratique"). Os termos poderiam ser os do livro que o político escreva, "Melancolia, Fim de Século".

"O Megalexandros" iniciava-se a 1 de Janeiro de 1900. "Porque não imaginar que estamos em 31 de Dezembro de 1999?", pergunta por sua vez o político. Transcorrido o século, serão ainda possíveis as utopias, a possibilidade de um futuro que, como numa história contada no filme, a do Veado-Voador, fica por inventar? Ou restará o "exílio interno" e o silêncio?

Contador de histórias, Angelopoulos inventa, abre hipóteses, mas a sua matéria cinematográfica é cada vez mais habitada pelo silêncio, deixando o campo à respiração dos elementos. Sem uma única palavra, existe neste filme uma sequência, a do casamento, que expõe exemplarmente as preocupações ético-políticas do autor e se nos dá a ver como uma das mais magistrais sequências cinematográficas que a memória nos preserva.
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Augusto M. Seabra, Público, 17/4/92





Título original: To meteoro vima tou pelargou
Realização: Theo Angelopoulos
Argumento: Theo Angelopoulos, Tonino Guerra, Petros Markaris
Fotografia: Yorgos Arvanitis, Andreas Sinanos
Montagem: Giannis Tsitsopoulos
Música: Helena Karaindrou
Interpretação: Marcello Mastroianni, Jeanne Moreau, Gregory Karr, Dora Crysikou, Ilias Logothétis, Nadia Morouzi
Origem: Grécia/Framça/Itália/Suiça
Ano: 1991
Duração: 143’
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