SOLVEIG NORDLUND EM FARO! 2ªf, dia 5.

BIBLIOTECA MUNICIPAL, 14H, entrada livre
CONVERSA/DEBATE – dirigido a alunos de 3º ciclo e ensino secundário

IPJ, 21H30, entrada paga (sócios 2€, estudantes 3,5€, restantes 4€)
A MORTE DE CARLOS GARDEL, Portugal, 2011, 87’, M/12

BLOG DO FILME


Solveig Nordlund atreveu-se adaptar António Lobo Antunes ao cinema. Ou melhor, afeiçoou a si própria o romance “A Morte de Calos Gardel” e fez um filme visceral e emocionante.

Ponhamos as coisas no ponto certo. É impossível transpor António Lobo Antunes para cinema. A exploração espaciotemporal continuada que ele usa, desde há aos, como estrutura encantatória e carceral não tem equivalente cinematográfico possível.

O mais perto que se pode chegar, sem se vaguear no acronismo, é o que fez a realizadora deste filme, salteando sequências temporalmente disjuntas, num processo que não sinaliza as transições mas que o espectador avisado decifra sem problemas. O leque factual do romance também é largo de mais para os propósitos do filme. Solveig Nordlund restringe-o, fecha-se em torno do casal separado com um filho no hospital em risco de vida induzido pela toxicodependência, numa cunhada médica e em mais duas breves personagens adjacentes. A tragédia é aquele abeiramento da morte e a memória, o estraçalhamento interior, o acordar da culpa que vem atrás. Pela escada abaixo, como se a vida tivesse tropeçado e tudo viesse a desabar em catadupa, são histórias de adultos desencontrados nos egoísmos dos seus mundos autocêntricos. Mas ao contrário do universo do romance, não é gente para execrar. Solveig gosta deles. Lobo Antunes não. Tudo é embalado pelo tango – obsessão do protagonista masculino, herança de família, a única coisa certa na sua vida -, que o filme mostra ora como harmonia perfeita ora como sobrevivência patética. Tire-se o chapéu, a propósito, para saudar a generosidade com que Rui de Carvalho entrega a pungente dignidade do seu episódico personagem. Em “A Morte de Carlos Gardel” há muita coragem na exposição de sentimentos fundos. À flor da pele, vivida, surpreendentemente numa cineasta quem tendo nascido na Suécia, vivendo e trabalhando em Portugal há quase 50 anos, e com um lugar no cinema português desde a segunda metade da década de 70, nunca teve um empenhamento emocional tão direto. Agora é um processo de autoaniquilação e neles há quase um processo de culpabilidade dos adultos. “A Morte de Carlos Gardel” é sobre pais, não sobre filhos perdidos, uma autoanálise adulta, olhos nos olhos. Com um toque de melodrama – e desespero. Rui Morisson, Celia Williams, Teresa Gafeira e o estreante Carlos Malvarez dividem, entre si, os papéis principais de um filme a que uma competente produção de Luís Galvão Teles deu condições de visibilidade. Pudera que isto bastasse para o merecido sucesso do público.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso



INCLUI DECLARAÇÕES DA REALIZADORA
Anda com o livro debaixo de olho desde que foi publicado, em 1994, história próxima de um autor próximo sobre quem se debruça, entretanto, em 1998 e 2009, em dois documentários. "Mas só há cinco anos é que decidi transpô-lo para filme", afirma Solveig Nordlund. De António Lobo Antunes não foi difícil obter os direitos de "A Morte de Carlos Gardel" nem escrever a adaptação, que empreendeu sozinha. "Reduzi a história. E acrescentei coisas minhas. A segunda mulher do Álvaro, por exemplo, é diferente, no livro ela até é uma ternura, eu trato a personagem um bocadinho pior. Depois, até fiquei com alguma má consciência..." É certo, todavia, que no filme o tango está muito mais presente, "talvez porque o livro não tenha banda sonora".

Solveig não concorda comigo quanto ao olhar diverso com que romancista e cineasta olham os personagens: "Não acho que o António despreze os personagens, ele gosta deles, gosta é de uma maneira diferente do que eu gosto - aliás, o Álvaro é um bocadinho o seu alter ego, e estou convencidíssima que ele gosta de si próprio." Mas assume que tem uma ligação forte com aqueles seres, ao ponto de dizer, face ao personagem de Cláudia: "Identifico-me com ela, as palavras dela podiam ser minhas."

Na altura em que nos encontrámos (Lobo Antunes ainda não vira o filme), quando lhe pergunto se lhe importa a opinião do escritor, Solveig é desarmante: "Agora não há nada a fazer." Logo acrescentando: "Mas claro que preferia que ele gostasse." Nos intérpretes, a escolha primeira foi Rui Morisson e para o papel de Cláudia "pensei primeiro na Maria João Luís, que tinha que falar com sotaque, depois numa atriz sueca, mas acabei por escolher a Celia Williams, por casting. A 'Celia' mais nova é norueguesa [Ida Holten Worsoe] e decorou os diálogos em português foneticamente, com ajuda de auricular, pois não fala português. A Teresa Gafeira também foi uma escolha inicial, eu trabalho muito com o Teatro de Almada e conheço-a de lá. É um desperdício que o cinema português quase nunca a tenha utilizado.


Muito bem conseguida é a exequível transposição para cinema da mescla temporal de Lobo Antunes, "um trabalho de corta e cola, quer no argumento quer na montagem. No papel, os tempos já se entrecruzavam, mas depois verifiquei que nem sempre resultava. Desloquei algumas cenas de um sítio para outro", numa procura de rimas que acabaram irrepreensíveis, digo eu. E houve material que se filmou e acabou fora do filme: "Por exemplo, o livro começa com a chegada ao hospital e chove. Eu filmei a cena, só que não consegui que a chuva funcionasse bem. Então, decidi que o filme ia começar com o tango. Também filmei várias cenas que se passavam depois da morte, mas percebi na montagem que, depois daquele momento tão forte, os espectadores não iam querer saber mais nada. Ficou o final com o Rui de Carvalho", mas essa ¬é uma outra morte, uma espécie de suicídio existencial do protagonista.

"A Morte de Carlos Gardel" estreia em Portugal sem ter feito um périplo por festivais. "Não quisemos adiar a estreia para 2012. E fiz bem. Está a agradar às pessoas que já o viram, é um filme português com condições de conquistar o público. Isso é o essencial. As vendas, nos festivais, hoje em dia, não existem. Mas apostámos na Argentina, espero que o filme vá ao Festival de Mar del Plata, em novembro."
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Jorge Leitão Ramos, Expresso



A obra de Solveig Nordlund, ainda que sofra com a intermitência que afecta a maior parte dos realizadores portugueses, está cheia de coisas singulares, e não se trata de uma cineasta que se deixe “apanhar” (quer dizer: “classificar”, “catalogar”) facilmente. O chamado “grande público” talvez guarde, sobretudo, a memória de “Dina e Django”, uma história de marginalidade lisboeta que foi um relativamente famoso sucesso (de estima, pelo menos) no princípio dos anos 80. Mas também se deve a Solveig um dos (apesar de tudo, raros) filmes “madeirenses” do cinema português, “Até Amanhã, Mário”, feito nos anos 90, ou, mais peculiar ainda, uma frágil mas feliz adaptação de J.G. Ballard, “Aparelho Voador a Baixa Altitude”, no princípio da década passada. Também filmou Richard Zimler, numa curta-metragem, “Espelho Lento”, com data do ano passado. Depois de 8 anos sem filmar longas-metragens (tínhamo-la deixado com “A Filha”, de 2003, talvez o mais indistinto dos seus filmes), ei-la de regresso com novo “aparelho” razoavelmente singular: uma adaptação de um livro de António Lobo Antunes, “A Morte de Carlos Gardel”, na primeira vez que o cinema português se aventura pela obra do escritor. Ajuda que se trate, como a própria Solveig sublinhou, do mais “linear” e mais “descritivo” dos relatos de Lobo Antunes, mas sobeja, ainda assim, complexidade suficiente para que o filme precise de ter uma estrutura intrincada, sobretudo na gestão dos diferentes tempos narrativos e dos pontos de vista das várias personagens. É uma história de impasse e introspecção: no tempo presente há um miúdo que está no hospital entre a vida e morte, e segue-se a ansiedade dos seus familiares e amigos (pai e mãe, separados, a tia, a madrasta, a namorada), um frenesi que se confunde com um estado de “suspensão”, uma “paragem no tempo” que implica um mergulho na revisão das várias biografias em causa. A estes “flash backs” e alternâncias temporais acresce uma espécie de tempo “imaginário”, nascido da fixação do protagonista masculino (Rui Morrison, no registo impecavelmente seco que lhe é habitual) pelas canções de Carlos Gardel, simultaneamente um bálsamo e uma maldição (ou pelo menos ele assim o sugere). As cenas que directamente exploram esta fixação são as melhores, as mais assombradas: “el dia que me quieras”, com certeza, mas sobretudo o ambiente irreal do cabaret aonde Morrison vai ouvir um “impersonator” de Gardel (Rui de Carvalho), em “playbacks” que, todas as devidas diferenças consideradas, não deixam de evocar, em registo menos alucinado, o “playback” de Dean Stockwell (uma canção de Roy Orbison) no “Blue Velvet” de Lynch. Em todo o caso, o efeito pretendido, narrativa e poeticamente, não anda longe, e é crucial. Crucial para introduzir um negrume, uma perturbação, que vem interromper o registo “claro” com que Solveig conta a sua história, uma “clareza” que tem virtudes (por exemplo, uma certa aspereza na introdução dos “flash-backs”) mas também se deixa cair, porventura demasiadas vezes, num naturalismo que parece excessivamente casual, perigosamente próxima da “espontaneidade” banal da “ficção televisiva” (a iluminação, a ausência de espessura da fotografia digital, ajuda a que se fique com essa sensação). Dentro destes limites e desequilíbrios, é proposta digna e séria, que acerta no que para Solveig talvez fosse o essencial: embeber o quotidiano comum da carga fantasmática e nocturna do “espírito” de Gardel. Semanas depois de visto o filme, essas cenas aindas nos permanecem vívidas na memória.
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Luís Miguel Oliveira, Ípsilon



ENTREVISTA A SOLVEIG NORDLUND
Onde começa esta relação com a obra de António Lobo Antunes que a levou agora a escolher esta obra em particular?
Em 1997, fui convidada pela SVT - a televisão sueca - para fazer uma introdução à obra de Lobo Antunes, que nessa altura era uma dos candidatos mais falados para o Prémio Nobel. E comecei a ler António Lobo Antunes. Li todos os seus livros e tornei-me fã da sua forma impressionista de escrever. Gostei sobretudo de "Os Cús de Júdas", "Fado Alexandrino" e "A Morte de Carlos Gardel". Com os anos fui ampliando e completando o documentário até acabá-lo em 2010 com o título "Escrever, Escrever, Viver". Entretanto tinha falado com António sobre a possibilidade de adaptar " A Morte de Carlos Gardel" para o cinema e ele deu-me carta-branca para escrever o guião.

Já trabalhou no cinema muitas obras literárias, o que a cativa neste processo de compor imagens em cima das palavras?
Já fiz várias adaptações de obras literárias para o cinema – “Até Amanhã, Mário” (de Grete Roulund), “Comédia Infantil” (de Henning Mankell), “Aparelho Voador a Baixa Altitude” (de J.G. Ballard), “O Espelho Lento” (de Richard Zimler) e agora “A Morte de Carlos Gardel” de António Lobo Antunes. Não sei porque prefiro adaptar uma obra já existente em vez de escrever uma história de raiz, que também fiz várias vezes – “Dina & Django”, “A Filha”. Penso que me considero mais protegida quando houve outra pessoa antes de mim a pensar na história e nas suas implicações. E é também um desafio traduzir uma obra de que se gosta muito para uma outra linguagem.


Onde acaba a obra de António Lobo Antunes e começa a de Solveig Nordlund?
"A morte de Carlos Gardel" é um exemplo disto. Gostei muito do livro e da emoção que transmitia. O desafio a adaptá-lo ao cinema foi tornar a história compreensível sem perder a respiração e a emoção do livro. O livro estende-se no tempo e no espaço, tive que reduzir as personagens e centrar a história ao essencial - a morte do filho toxicodependente e como esta morte transforma as pessoas à sua volta.

Qual o aspecto que a atraiu mais nesta história?
O que me atrai nesta história é a grande culpa que as personagens sentem. Não sabem agir perante os acontecimentos e procuram desesperadamente algo que dê sentido e que lhes possa fazer•perdoar. O pai procura um falso Carlos Gardel para dar sentido à sua vida depois da morte do filho.



Título Original: A Morte de Carlos Gardel
Realização: Solveig Nordlund
Direcção de Fotografia: Acácio Almeida
Montagem: Paulo MilHomens
Música original: Pedro Marques
Interpretação: Rui Morisson, Teresa Gafeira, Celia Williams, Carlos Malvarez, Miguel Mestre,
Joana de Verona, Elmano Sancho, Ida Holten Worsøe, Albano Jerónimo, Maria João Pinho.

Participação especial: Ruy de Carvalho
Origem: Portugal
Ano: 2011
Duração: 87’
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Também programamos terror - quando é do bom. ZONA DE PERIGO, CRONENBERG. 4ªf, Sede, 21h30, entrada livre.

Partindo de um romance de Stephen King, autor entre outros, das obras de onde partiram os argumentos de Carrie, de Brian De Palma, Shinning, de Stanley Kubrick, Christine, de John Carpenter, Creephshow, de George Romero, Dead Zone tem a característica de se integrar harmoniosamente no universo de dois dos grandes mestres do fantástico moderno: King e Cronenberg. Do escritor, prolonga as suas obsessões que integram o fantástico numa base realista e sociológica de indesmentível interesse.

Mas não é só ao nível das personagens que se procura essa base realista. A descrição de uma pequena cidade da provincial é notavelmente dada, nos seus circuitos familiares, na análise dos mecanismos de pressão económica e política, no retrato preciso das etapas de uma campanha eleitoral. Tudo isto parte em muito do talento narrativo de Stephen King, mas é habilmente prolongado e desenvolvido pela argúcia de David Cronenberg. Zona de Perigo assinala até outro dos grandes momentos da carreira deste realizador, tendo ganho o Prémio da Crítica no Festival de Avoriaz de 1984.
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Lauro António, Se7e, 14/9/88


Cronenberg, de um ponto de vista estilístico, é um "clássico". A linearidade das suas intrigas, a sua montagem fluida, invisível, confortam a fé do espectador naquilo que vê. Nada de magia ou atmosferas góticas; a presença e os comentários nos filmes de médicos e de sábios reforçam ainda mais a nossa “credulidade". A alucinação é uma figura central do cinema de Cronenberg, onde o olho da câmara nunca é para o espectador o dum Deus que siga, passo a passo, um herói privilegiado. São a estrutura narrativa e, mais ainda, as imagens, que levam o espectador à inquietude fundamental do observador que já não sabe se as peripécias que lhe mostram são "verdadeiras" (em sentido quase documental) ou se a intriga não lhe chega doutro lado, de uma personagem secundária por exemplo.

Em The Dead Zone, Johnny Smith (Christopher Walken), na sequência de um acidente de automóvel, cai num longo coma ao fim do qual descobre ter-se tornado capaz de, tocando as pessoas, ver o seu futuro, ou mais exactamente as potencialidades da sua existência. Confrontado com um candidato demagogo numa eleição local, descobre ao apertar a mão de Greg Stillson (Martin Sheen) que este se pode vir a tornar um presidente fascista e originar uma guerra nuclear. O próprio Cronenberg insistiu no paradoxo do espectador dos seus filmes: consideramos, de facto, essas visões como verdadeiras! Presos pela narração e pelo aspecto patético de uma personagem "vinda dos mortos", nunca duvidamos das suas visões! E quando Johnny se decide a assassinar o candidato "seguimo-lo" totalmente, esperando que a bala da sua carabina despedace o crânio deste perigoso paranóico (o médico de Johnny, um judeu que conheceu a guerra, diz-lhe a que ponto teria sido desejável o assassínio de Hitler - diabolização clássica do maniqueísmo hollywoodiano) Ora, diz Cronenberg, “se encararmos o filme como narrado do ponto de vista de Johnny, como de facto é, não podemos estar seguros de que não se trata de outro tarado que diz ter visto o futuro e saber o que deve ser feito. Deste ponto de vista, The Dead Zone é moralmente... ambíguo...” . Assim, num dos poucos filmes cujo argumento não escreveu inteiramente - linear e hollywoodiano, com um fim "moral" e relativamente "positivo" - o próprio Cronenberg nos coloca face ao paradoxo do seu sistema. Desejamos a morte do demagogo sem sermos persuadidos por mais nada do que aquilo que nos é mostrado (o sindroma da desinformação, de alguma maneira), convencidos de que ele é mesmo um Hitler em potência.

Sabemos, é certo, através da vertente "naturalista" do filme que este indivíduo medíocre é um demagogo. Mas que sabemos nós das visões de Johnny? Que é que nos faz pensar que elas são verdadeiras? Muito simplesmente, o facto de acreditarmos nas imagens, e estarmos, desde há muito tempo, contaminados pelo vírus hollywoodiano (a luta do Bem e do Mal que desculpa e justifica as piores respostas) e por uma moral saída dos talk-shows televisivos que, efectivamente, nos investe de uma missão tão temível como derrisória: baixar o polegar, como a plebe romana no circo, e decidir a vida e a morte de personagens na maior parte das vezes imaginárias; tornámo-nos juízes, prontos para a primeira sondagem telefónica.

Ironicamente, mas também por uma espécie de masoquismo, Cronenberg conseguiu penetrar, como um vírus, no universo hollywoodiano e contaminá-lo no interior. Fazendo The Dead Zone passar por mais ambíguo do que Videodrome, trai indubitavelmente aquilo que faz a originalidade do seu projecto: uma desestabilização do cinema vinda do próprio interior da gramática fílmica; insuflar no espectador uma dúvida mortal sobre a imagem, sobre a continuidade, sobre a incarnação, ou mesmo sobre a verdade.

The Dead Zone é o único filme para o qual David Cronenberg não escreveu o argumento. Tem personagens reais e nomes reais: simples como Johnny Smith e Sarah Bracknell. Cronenberg reagiu de forma positiva porque, como canadiano, se sentiu em sintonia com as pessoas simples do interior rural do “set” da história em Nova Inglaterra. Era uma oportunidade de abordar, noutro prisma, o tipo de temas que o interessam.
The Dead Zone resulta, quanto mais não seja pelas excelentes actuações de Christopher Walken, Brooke Adams a Martin Sheen. E o filme levanta questões intrigantes acerca da existência de limites na santidade da vida humana. Que se teria feito a Hitler nos anos 30 se se soubesse o que se sabe hoje?
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Cinemateca Portuguesa, David Cronenberg: a expressão nua



Título original: The Dead Zone
Realização: David Cronenberg
Argumento: Jeffrey Boam, baseado no romance de Stephen King
Fotografia: Mark Irwin
Montagem: Ronald Sanders
Música: Michael Kamen
Interpretação: Brooke Adams, Christopher Walken, Herbert Lom, Tom Skerritt, Anthony Zerbe,
Colleen Dewhurst, Martin Sheen
Origem: EUA
Ano: 1983
Duração: 103’

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projeto financiado por
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HADEWIJCH - a mais perturbadora "Pietà" de que há memória nos últimos anos. 2ªf, IPJ, 21h30.

Sócios 1€, Estudantes 3,5€, Restantes 4€

FESTIVAIS E PRÉMIOS

Prémio da Crítica Internacional – Toronto International Film Festival
Festival de Cinema Sans Sebastián – Selecção Oficial
Festival de Cinema de Nova Iorque - Selecção Oficial
Festival de Cinema de Londres - Selecção Oficial

"Hadewijch" é o primeiro filme de Bruno Dumont comercialmente estreado em Portugal. Alguns leitores lembrar-se-ão de que se falou muito dele por ocasião do "escândalo" de Cannes 1999, quando o júri presidido por David Cronenberg teve a bizarra ideia de premiar filmes que não caiam no goto de toda a gente - a Palma foi para a "Rosetta" dos Dardenne, Dumont levou o Grande Prémio do Júri por "L''Humanité".

Francês flamengo, Dumont trabalha com motivos culturais oriundos da sua região (tem até um filme chamado "Flandres"), e neste caso convoca a recordação da misteriosa Hadewijch, escritora religiosa medieval. Não é uma biografia nem um filme de época, contudo, antes uma história contemporânea (que nalguns passos rimará a história da verdadeira Hadewijch) que segue o fervor religioso de uma miúda parisiense de boas famílias. O fervor levou-a ao convento onde o filme principia, o excesso de fervor potencialmente danoso (a rapariga leva o jejum e a abstinência demasiado a peito) pôe-a cá fora, quando as madres decidem que ela deve encontrar o seu caminho para Cristo no mundo exterior. É esse percurso, tão obstinado quanto propício a equívocos e a crises de fé, que o filme segue.

Dumont filma com austeridade e pudor, e digamos que segue o princípio certo quando se trata de filmar a religião dos outros - filma-a como um facto, que não é matéria de julgamento nem de comentário. Interessa-lhe filmar a ansiedade fundamental da sua personagem, que espera ardentemente pela confirmação da sua fé, por uma manifestação de que a sua fé é, digamos, correspondida (e correspondida, justamente, como Amor). Há momentos muito calmos, muito pacíficos (as cenas com música: Bach, que como se diz noutro filme, veio "interromper o silêncio de Deus"), mas o frenesim interior da personagem vai-se intensificando (rebeldia com ou sem causa, "Hadewijch" também é uma história, "clássica" no seu esqueleto, de afirmação adolescente) até ficar madura para o radicalismo (é toda a história do seu encontro com os terroristas islâmicos, que não tem valor "político", antes funciona como expressão de um excesso - de devoção, de ansiedade - que transborda como violência e em violência).

Qualquer coisa parecida com a graça surgirá no fim, inesperadamente, quando tudo parece perdido. Não é bem um "milagre", ou consoante o ponto de vista, é um milagre. No plano da "escrita" não há muita coisa que realmente aproxime Dumont de Robert Bresson, mas de facto "Hadewijch" é a história de um "drôle de chemin", onde se circula por alguns elementos caros ao cineasta de "Pickpocket" (o crime, a prisão, os "párias") para chegar ao mesmo tipo de "elevação" final (e aqui, é realmente de uma "elevação", em todos os sentidos, que se trata). Dumont já fez filmes mais bizarros, mais intrincados, mais chocantes - nada há em "Hadewijch" de particularmente escabroso (nem "graficamente"). O despojamento, quase linear, de "Hadewijch", e a espécie de sinceridade muito simples que exala, fazem dele uma variação, no mínimo curiosa, sobre temas e formas que não estão propriamente na moda entre o mais badalado cinema contemporâneo.
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Luís Miguel Oliveira, Ípsilon


Há um momento em "Hadewijch", ainda os seus mistérios vão a meio, em que Céline e Nassir (Karl Sarafidis) caminham numa floresta. Céline já abandonou há muito o convento em que a vimos pela primeira vez, e o jovem casal, enquanto marcha, discute o valor da religião e procura nela um sentido. Afirma-se que Deus é verdade e justiça, "ou uma espada contra a injustiça", como Nassir conclui. Ninguém está a brincar aqui. Amor e violência, como o próprio Dumont o diz, são indissociáveis do seu cinema e da sua visão do mundo, e aquela espada, comum a todos os livros sagrados, é a história da Humanidade e do Ocidente. Céline, profundamente católica, e Nassir, profundamente muçulmano, formam um 'casamento' espiritual improvável, irrealista, um desafio político que incomoda, pois coloca-se num patamar acima das convenções. É um casal que vai unir-se na mesma decisão tácita, na mesma atração pelo martírio. Sem o esperarmos (falamos ainda da sequência da floresta), chegamos com as personagens a Hadewijch, o convento em que Céline nasceu para a fé e cujo nome se confunde com o nome da protagonista (o título refere-se a Hadewijch de Antuérpia, religiosa mística do século XIII, autora de um "Livro de Visões" mergulhado em hermetismo medieval). Depois, há um daqueles momentos que são da ordem do milagroso: Julia Sokolowski olha para o céu e, como em certos planos de John Ford, do céu vem um rasgo de luz natural que a ilumina. Tudo evoluirá depressa a partir dessa luz. Céline deixará o convento, o apartamento parlsiense, a amizade fraterna com Yassine, irmão de Nasslr, e parte de repente com este último, já vestida de branco, para o Líbano e para o terreno da luta armada, onde um encontro com a Jihad a espera. Voltamos ao plano do céu. Não é a primeira vez que as personagens de Bruno Dumont, a um dado momento, levantam a cabeça e olham para cima à procura de um guia que as salve (do niilismo?). Dumont sempre perseguiu figuras que têm 'acesso ao invisível' através do mundo visível, pessoas com vontade de ver o que está mais além, mas nunca o cineasta francês tinha ido tão longe nesta demanda do ascetismo e da recusa do corpo, através de uma mulher "que não precisa de um homem, mas de Deus". Perante Deus, Céllne/Hadewijch engana-se, escolhe o caminho errado e suicida-se. Morre de amor por Deus e pela sua falta - e o amor, no cinema de Dumont, é uma transmissão quase impossível. Mas Céline, naquele final apaziguador que parece resgatado do Apocalipse, morrerá também, para renascer como Fénlx das cinzas nos braços do homem (David) que sempre esteve perto dela. A revelação, afinal, estava mesmo ao lado e, como no cinema de outros místicos, foi longo o caminho que Céline teve de percorrer para encontrá-lo. Dumont acredita nesse caminho e no desejo de uma mulher em ser possuída pelo que não conhece - e esse desejo não é impermeável ao erotismo. Acredita no interior de um corpo e na experiência física da presença de Deus, no sentido do infinito que define os místicos: passamos o filme todo 'no coração' de Céline. Do que falamos? De um delírio? Em todo o caso, o delírio, que não se escreve por linhas direitas, é difícil de filmar e não convence assim do pé para a mão. Mas a mise en scéne de Dumont a isso convida: e é um triunfo absoluto. Recusa o julgamento. Impressiona pela serenidade e pelo equilíbrio. Sldera pela sua humilde procura do sagrado - e depois diz-lhe adeus, aqui na Terra. Dumont pode não ser um cineasta crente, mas, no magnífico gesto estético de "Hadewijch", acreditou numa coisa preciosa - no poder do cinema e soube inventar a mais perturbadora "Pietà" de que há memória nos últimos anos.
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Francisco Ferreira, Expresso


Bruno Dumont proporciona-nos um olhar sobre o sentimento religioso moderno sem julgamentos prévios ainda que se cruze com a ardência da juventude que exige uma certeza.

Céline é uma rapariga de Deus lançada ao mundo pelas freiras do convento em que se encontrava depois destas se aperceberem que o grau de abstinência e sacrifício a que se submetia era demasiado severo.

A ideia é que ela, pelo menos, vislumbre outras forma de viver a sua devoção. Formas que as próprias freiras encaram como mais saudáveis.

A partir daí a sua disponibilidade para com o mundo parece de uma totalidade ingénua - aceita os convites que lhe fazem sem se questionar ou constranger - como se ela não ousasse fazer uma decisão própria não fosse Deus estar a chamá-la nesse momento.

Nem esse contacto tão aberto com a realidade a consegue atrair para uma vivência de religiosidade inserida no quotidiano. Pelo contrário, leva-a a sentir um vazio maior, como se fora do convento estivesse abandonada.

O seu progresso na procura do regresso de Deus ao seu contacto termina na exigência da confirmação do Amor correspondido. Todo o adolescente acaba por confrontar o objecto do seu desejo, mas ela não tem mais do que um local representativo para onde correr e mesmo esse lhe está, muitas vezes, inacessível.

Ao cruzar-se com uma outra religião hesita em aceitar que esta esteja a um passo de comunicar com ela. A sua dúvida cresce e com ela a afirmação da sua entrega a Deus, etapa de negação da realidade de Céline.

A tese do filme surge então: a proximidade de todos os sentimentos de exasperação religiosa. A mesma necessidade de Deus, exigida com fúria, surge seja quem for que a sente: mulher ou homem, rico ou pobre, francês ou árabe, cristão ou islâmico.

E conclui com a certeza de que busca tão severa é sempre feita pela violência. Uma violência que pode estar confinada e ser dolorosa apenas para quem busca (como Céline no início do filme) ou que, como vemos mais adiante, pode exteriorizar-se e afectar todos.

Isto diz-nos (por vezes pela via da demonstração do seu oposto) o simbolismo de Dumont - seja a música de Bach ou a luz que surge e desaparece no rosto de Céline - que sobressai no filme porque a sua forma de filmar não procura artifícios.

Há uma inflexibilidade no percurso da protagonista a que Dumont corresponde, como se ele estivesse a submeter a câmara à realidade e não a representação ao realismo.

Daí que também os seus actores sejam imperfeitos mas admiráveis pela astúcia desse realismo.

Um filme admirável para o qual me resta agora descobrir a história de Hadewijch e, espero, compreender num próximo visionamento que significados ainda existirão para retirar do paralelo que Dumont terá estabelecido. Assim possa sentir que a minha percepção está à altura do que o filme tem a dizer.
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Carlos Antunes, splitscreen


INCLUI DECLARAÇÕES DO REALIZADOR

"A religião contém a violência porque essa foi a sua tarefa primitiva", diz-nos Bruno Dumont. "Hadewijch" é o quinto filme, e o primeiro a estrear-se comercialmente em Portugal, deste cineasta laico.

A quinta longa-metragem de Bruno Dumont, "Hadewijch", é a primeira a estrear-se em Portugal. Com data de 2009, é o penúltimo filme do cineasta, que já neste ano de 2011 apresentou em Cannes o seu mais recente opus, "Hors Satan". Religião e metafísica, sem aspas nem desculpas, são terrenos frequentes de Dumont, que não fazendo a coisa por menos começou logo por filmar uma "vida de Jesus" ("La Vie de Jesus", de 1997, primeira obra) e, depois, "a humanidade" ("L´Humanité", de 1999, um dos "filmes escandalosos" do Palmarés do Festival de Cannes desse ano).

Oriundo da Flandres francesa, nascido (em 1958) a poucos quilómetros da fronteira com a Bélgica, são nele comuns as referências e as inspirações de origem flamenga (o filme anterior a "Hadewijch" chamava-se mesmo "Flandres"). É o caso deste, claro, que traz logo para o título a lembrança da homónima escritora "mística" que viveu na Flandres do século XIII, depois prolongada numa personagem que usa Hadewijch como nome eclesiástico, e numa narrativa onde haverá alguns pontos de contacto (ou a imaginação de alguns pontos de contacto) com a vida da Hadewijch medieval. É um filme que trata, com uma força peculiar, a possibilidade contemporânea de um tipo de devoção "mística", menos para criar ou explorar um mero anacronismo, e mais para construir um grau de abstracção a partir das tensões geradas pelo que é, ou parece que pode ser, anacrónico.

A potência e a violência
Mas deixemos que Bruno Dumont, em resposta a uma meia-dúzia de perguntas que lhe enviámos por e-mail, nos fale do que viu e do que trouxe da Hadewijch histórica: "[nos seus escritos] cultivou um Amor Puro por Cristo seu Amante, que me inspirou a uma meditação contemporânea sobre a potência e a violência de que este amor tomado pelo absoluto é capaz".

No filme, estes dois termos - amor e violência - são indissociáveis, evoluem em paralelo, crescem como um mesmo tronco, explodem (com e sem jogo de palavras: o apogeu é um atentado terrorista no metro parisiense) ao mesmo tempo. Dumont, outra vez: "A coexistência paradoxal do amor e da violência desenvolvidos por Hadewijch - nas suas Visões, Cristo aparece como um guerreiro - é uma questão perturbante em termos de julgamento moral porque faz coincidir dois contrários que são hoje apanágio do terrorismo contemporâneo, onde a violência é um meio de atingir a plenitude em Deus". Dumont refere-se obviamente aos "mártires" do terrorismo islâmico, que no filme jogam um papel de confluência com esta Hadewijch ficcional.


Mas também é aí que entra o cinema, como modelo catártico: "As tragédias gregas, Shakespeare, Corneille, Racine, dão ao espectador a possibilidade de se purgar desta violência residual confrontando-o com personagens onde estes contrários coexistem, tomando-os não como um exemplo mas como uma prova". É este tipo de catarse que Dumont procura, e a sua Hadewijch "é esta parte absoluta da nossa alma de que é preciso fazer o luto: tanto o amor de Deus como a sua violência punitiva". A Hadewijch de Dumont "não é uma pessoa, é uma representação, uma representação de uma parte interior e primitiva de nós próprios".

Dumont reclama uma perspectiva "laica", acrescentamos nós que teórica e distanciada. Afinal de contas, Hadewijch é tanto uma "representação de nós próprios" como as personagens dos terroristas o são. "A religião contém a violência porque essa foi a sua tarefa primitiva". A sua Hadewijch, diz, "denuncia este arcaísmo revelando-o: o Amor Puro, que ela encarna, transporta os germes da morte e do extermínio, porque levando este amor ao absoluto estabelece-se a concidência dos contrários: Amor Puro e Pura Violência". O que se passa nas cenas finais, depois do atentado, é portanto uma superação desta equivalência? "É um renascimento, um renascimento para o amor humano como uma nova via espiritual, fora de Deus, numa refundação do Sagrado". Que o agente deste "amor humano" seja um homem vulgar, marginal, ex-presidiário, apenas circunstancialmente "providencial", constitui um "clou" tingido de ironia? "Antes uma impassibilidade [de Dumont] perante o destino trágico da personagem, de que me cumpre, fazer, sem vacilar, a representação".

Esta personagem masculina cuja função dentro do filme só se ilumina nos planos finais, acentua a possibilidade de se encontrarem pistas em comum entre um filme como "Hadewijch" e certos elementos caros ao universo bressoniano, cineasta de quem Dumont é frequentemente aproximado. Queremos saber, em primeiro lugar, o que pensa ele dessas associações: "Seria mais justa a referência a Jean Epstein, que se inscreve num realismo mágico, ou mesmo num simbólico, que para mim foi mais marcante". Prefere ir direito a Georges Bernanos [autor do "Diário de um Pároco de Aldeia" e da "Mouchette" que Bresson adaptou, e do "Sob o Sol de Satanás" que serviu de base ao filme de Pialat], à ideia de "um Mal recluso na natureza ordinária dos seres e das coisas e a procura da Salvação", que ele, Dumont, trata "a partir de uma leitura laica".
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Luís Miguel Oliveira, Público



ENTREVISTA AO REALIZADOR

"Hadewijch" - abram alas para um filme magnífico - acompanha o percurso de uma jovem devota que vai levar a sua fé em Deus ao extremo.

"É uma 'trip' mística" - palavras do cineasta francês Bruno Dumont.

Perante "Hadewijch", folheamos calendários passados: a quinta longa-metragem de Bruno Dumont chega a Portugal um ano e sete meses depois da sua estreia no hexágono. Chega tarde, dada a sua importância, mas não tarde de mais, pois este foi um dos filmes magistrais de 2009, de longe o mais conseguido no forte trajeto do cineasta francês. Recordamos que este ex-professor de Filosofia feito realizador no fim dos anos 90 ("La Vie de Jésus", "L'Humanité"...) é uma voz dissonante, revoltada, violenta contra a norma corrente do cinema do seu país. Dumont filma habitualmente na província, com atores não profissionais. Anda à procura das caves mais obscuras do âmago do ser humano. Realizou entretanto "Hors Satan", apresentado há semanas no Un Certain Regard de Cannes. A conversa que se segue foi gravada em Paris naquele ano de 2009. Em causa está Céline/Hadewijch (sublime aparição de Julie Sokolowski), devota adolescente a viver num convento. A madre superiora, temendo o fanatismo religioso, lança-a para o mundo exterior. Parisiense e filha de um diplomata, rapariga siderada por crucifixos, Céline não se adaptará a esse mundo. Conhecerá Yassine e Nassir, dois irmãos muçulmanos, encontrando em seguida uma desesperada forma de expressar a sua fé em Deus. É uma figura perplexa, meio humana, meio crística, solitária; quase louca.

O que procurou na personagem?
Um apelo à Graça e a história de um sacrifício. Céline sacrifica-se por todos nós. Põe um fim a tudo. Este filme quer recuperar a figura e a postura de uma religião, neste caso a cristã, levada ao seu apogeu, isto é, à sua própria demência.



Como assim?
Eu acho que o ser humano tem necessidade da vida espiritual e da vida sagrada, mas fora do cartão postal religioso e institucional das igrejas. Uma espiritualidade sem transcendência. "Hadewijch" não é um ato de fé. E se estou interessado no misticismo é porque ele também nos leva para além da filosofia, para além das questões da razão, da palavra e da nossa compreensão do mundo. O olhar místico não é intelectual, e o cinema para mim não é nenhuma igreja. Mas o cinema pode ser um lugar de experiência do sagrado. Julgo por isso que misticismo e cinema estão muito próximos, há entre ambos uma circulação possível. Ao mesmo tempo, descubro-me metido num terreno difícil de descrever. Não sou religioso, não sou crente, mas acredito na Graça e no valor do sagrado. Vejo-os como valores humanos.

Mentes mais 'clínicas' poderão ver em Céline outra coisa: o retrato de uma histérica. Em tempos idos, mais sensíveis às questões da fé que o mundo atual, essa histeria seria sinónimo do que outrora se chamava uma vida de santa. Concorda?
É evidente que estamos perante uma histérica, mas sobre isso tenho algo a dizer: o que está em jogo neste filme é a parte de histeria que existe em nós próprios. A visão do filme está condicionada por essa camada residual de espiritualidade que existe em nós e que pode tomar formas absolutamente monstruosas. Céline caminha para isso. Ela possui uma santidade laica. É atraída pela santidade, que tende a tomar a forma de uma elevação poética comum aos seres humanos. Qualquer pessoa que esteja apaixonada é atraída por essa força, e Céline está apaixonada por Deus, pelo seu mistério. Quanto mais ele se esconde, mais ganha presença. E sem privação não há regozijo. Amar alguém é ser capaz da privação. Mas quando se ama o espírito, como lhe dar forma? Este é o meu maior problema enquanto cineasta, porque o espírito não se filma, é invisível, e eu só consigo filmar o que está à minha frente.

Céline é uma personagem consciente do seu destino, coisa rara num filme de Bruno Dumont. E a mise en scène de "Hadewijch" é a mais clássica de todos os seus trabalhos.
Há uma tradução do classicismo do pensamento e do corpo da protagonista, e o facto de ela ser mulher tem também importância para mim. Era preciso filmar Céline pelo seu modo de expressão mais puro, num formato 16:9, sensível a questões de luz, porque Céline é, também ela, uma personagem iluminada. Tentei que os aspetos técnicos se aproximassem da humildade da personagem. Também fiz as misturas de som em mono para que o som ficasse o mais fixo possível ao enquadramento. "Hadewijch" está fatalmente preso a uma expressão de cinema que tem os seus rituais, aspetos que pertencem a uma história iconográfica do religioso.

Uso da elipse?
A matéria de "Hadewijch" encontrou essa escolha. O tempo racional não se coaduna com o filme. O apartamento de Céline, o concerto rock, a própria cidade de Paris: nenhum desses elementos é aqui racional. No argumento havia noções de casualidade muito precisas que a montagem depois anulou: a elipse aumenta a natureza do poético, recusa a explicação racional, e Céline não se explica. Nem é racional o que ela acaba por fazer no fim. A elipse permitiu-me erguer a trip 'mística' da personagem e, justamente, unir os dois polos de "Hadewijch" comuns a todos os meus filmes: o amor e a violência.

Porque desaparece o pai de Céline?
Ele é inexistente. Um homem da política, incapaz de acompanhá-la. Nassir, o seu irmão espiritual, talvez a compreenda. Já Yassine é uma personagem fundamental, pois é o único que mantém contacto com a realidade.

Como encontrou Julie Sokolowskl?
À saída de uma projeção do meu filme "Flandres", numa sala da Normandia. Gostei da sua presença. Ela não tinha vontade nenhuma de fazer filmes, mas eu já estava à procura de uma atriz e convidei-a para o papel. Julie não se deixou deslumbrar pelo cinema um único segundo.

Houve algum debate especial em França em tomo de questões religiosas devido ao desfecho do filme?
Não. "Hadewijch" foi feito contra a religião. Se Céline se convertesse ao Islão, isso seria um problema, uma provocação inútil e estúpida. Não é o caso. Ela permanece cristã do início ao fim. O seu ato extremista é indissociável da sua fé. O problema de Céline é só um: onde está Deus? No amor? Na contemplação? Ou na luta armada? A fé é uma alienação - é o que eu quero dizer. Seja cristã, muçulmana ou outra qualquer. O crente é um ser alienado.
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Francisco Ferreira, Expresso




Título original: Hadewijch
Realização e Argumento:Bruno Dumont
Director de Fotografia: Yves Cape
Montagem: Guy Lecorne
Interpretação: Julie Sokolowski, Yassine Salime, Karl Sarafidis, David Dewaele, Brigitte Mayeux-Clerget, Michelle Ardenne, Sabrina Lechêne, Marie Castelain
Origem: França
Ano: 2009
Duração: 120’
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O filme mais sombrio de Woody Allen. 4ªf, 21h30, sede. (perante ele, Match Point é joguinho de cabra-cega)

UM dos filmes vividos por David Gilmour e o seu filho em Clube de Cinema (livro que foi apresentado por Graça Lobo).

CRIMES E ESCAPADELAS (Crimes and Misdemeanors), EUA, 1989, 104’

Um filme sombrio ou um reflexo de sombras? Não interessa. É o regresso de Woody Allen, genial, como é costume.

Woody soma e segue. Novo filme obra grande do cinema americano. Sem grandes alardes, sem o apoio das fortes baterias publicitárias que pontuam a estreia dos megafilmes dos seus colegas de Hollywood. «Crimes e Escapadelas» é a habitual visita anual do nosso amigo americano.

Desta vez Woody traz algumas novidades na bagagem. Começam no elenco, passando ainda pelas tonalidades com que pinta a história, terminando com a inserção de um elemento até agora inédito no cinema de Woody. Mas fica já um aviso à navegação: desiludam-se os que vão procurar comédia em «Crimes e Escapadelas». O filme não é para rir e Allen parece cada vez menos interessado em regressar às gargalhadas. «Crimes e Escapadelas» é mesmo o mais sombrio filme de Woody, pintado com os já habituais tons outonais que definem o «deserto de almas» que as suas personagens atravessam. Drama, cada vez mais complexo, onde Allen continua a questionar a possibilidade de felicidade e o significado da vida. A herança de Bergman nota-se cada vez mais.

«Crimes e Escapadelas» coloca os seus protagonistas face a dilemas com a dimensão da vida. As questões morais e éticas que presidem à sua resolução é o objectivo cinematográfico de Allen. Não há bons nem maus, apenas pessoas enfrentando problemas de importância vital num dado momento da sua existência.

Temos pois uma narrativa montada como um castelo de cartas onde cada elemento segura e dá consistência aos outros. No início são duas histórias contadas em paralelo, aparentemente sem ligação. Temos os problemas de Judah Rosenthal, um oftalmologista famoso, a braços com uma situação complicada: leva uma vida dupla (família e amante). Com a sua imagem oficial de grande humanista, indivíduo devotado a nobres causas, chefe de uma família modelo a ser posta em causa pela face escondida, pelos acessos de histerismo da amante farta de permanecer na sombra. Temos ainda o caso de Cliff Stern, um documentarista de meia idade, apanhado numa encruzilhada da vida, tanto no aspecto intímo (um casamento que se apaga, com amor-afecto a ser canalizado para uma sobrinha) como no foro profissional.

Em «Crimes e Escapadelas» Woody reforça a sua família cinematográfica com uma série de nomes sonantes. A juntar aos «habitués» Mia Farrow (décimo filme com Allen) e Sam Waterstorb (quarta participação depois de «Intimidade», «Ana e as Suas Irmãs» e «Setembro»), surgem Martin Landau, excelente na sua composição de Judah Rosenthal, um dos personagens centrais do filme, Anjelica Huston, Alan Alda, Claire Bloom, Jerry Orbach, Caroline Aaron e mesmo, de forma episódica, Daryl Hannah. Se Martin Landau merece destaque maior, pelo seu peso no filme, pela sua nomeação para o Oscar de melhor secundário, pelo segundo fôlego da sua carreira, a participação de Alan Alda é, do ponto de vista cinematográfico, mais estimulante.
Uma obra brilhante, excelentemente fotografada pelo sueco Sven Nikvist, onde Allen reforça e apura a sua tendência para um cinema romanesco e intimista.

M.P., Se7e, 26/4/90


Para um crime perfeito «à la Hitchcock», aliás explicitamente citado no filme, Woody Allen faz um filme quase perfeito.

Se em UMA OUTRA MULHER se tratava da escuta, em CRIMES E ESCAPADELAS é o olhar que ocupa obviamente a atenção de Woody Allen. A esse respeito o argumento do filme é extremamente hábil. Desde logo na plateia que aplaude Judah (Martin Landau), o oftalmologista publicamente distinguido no auge da sua carreira. Virtudes públicas, vícios privados. Ele que trata dos olhos vive a situação de conflito entre o modo como é visto e aquilo que oculta (eventuais fraudes económicas, uma vida amorosa clandestina e finalmente um crime). Os olhos de Deus, retomados da educação religiosa hebraica da sua infância, são a metáfora do papel que assume perante si próprio, da forma como se vê. A consciência moral identifica-se com a capacidade de enfrentar um olhar exterior, em certa medida o olhar dos outros.

Lester (Alan Alda) é um personagem de alguma maneira semelhante. Ele é produtor de televisão mas não goza do prestígio de Judah. Por isso mesmo empenha-se num documentário a seu respeito. Para Lester trata-se ainda de ser visto, de através da plateia electrónica dos «mass-media» que ele controla, criar uma imagem positiva de si próprio.

No pólo oposto há os personagens que vêem. Ben (Sam Waterson) é um rabi, logo alguém que vê os outros através de referências morais que não dependem de momentos circunstanciais.
Progressivamente fica cego. Cliff (Woody Allen) é um documentarista empenhado naquilo que dá a ver. Acaba despedido, e o seu melhor material filmado é posto em causa pela morte do filósofo protagonista do documentário que procurava realizar.

Mas CRIMES E ESCAPADELAS não é apenas um filme sobre o visto. Woody Allen preocupa-se também com o dito não apenas nos discursos (do oftalmologista, do produtor, do Filósofo) mas também no relato do que de certo modo é inconfessável (a experiência sexual da irmã de Cliff com um desconhecido), ou na quase compulsão da confissão que parece assaltar Judah (mas a dado momento quando numa reunião familiar exclama «fiz uma coisa horrível» o que o move é o pretexto para uma melhor dissimulação do seu envolvimento com a amante assassinada).

A própria palavra se liga à culpa. Afinal o crime fora tão fácil como um simples telefonema. O crime perfeito de Judah pode ser só uma excelente ideia para um argumento cinematográfico, de que ele próprio pode dividar-se entre o desejo e a culpa, como o desejo de Cliff se pode identificar com o crime perfeito nesse excelente diálogo equívoco da cena final entre ambos.

Das palavras parece ainda desconfiar Woody Alllen quando contrapõe o discurso humanista e optimista do filósofo, ainda a palavra pública submetida ao efeito de plateia, com a resolução do homem consigo próprio no gesto suicida.

O que Woody Allen reflecte é talvez uma realidade nova resultante duma mutação cultural do mundo moderno televisual onde o que é visto tem uma importância primordial mas a própria multiplicação quase infinita de pontos de vista torna-os cada vez mais relativos. Woody Allen interroga os fundamentos da consciência moral num mundo que se tem de habituar a uma certa dose de incerteza que em última análise destrói a visão global necessária ao desenvolvimento que qualquer ideologia ou mundividência que dê suporte a uma moral.

O que não é visto, a mais obscura zona da intimidade, pode ainda ser motivo de um sentimento de culpa na medida em que pode ser revelada. Mas haverá um limite para o que pode ser contido? Aparentemente é a distância que vai entre a vida e a morte, entre o oftalmologista que sobrevive, que consegue conter a culpa de uma carga que vai acumulando na luta pela sobrevivência até ao limite do crime, e o filósofo que se suicida (como a mãe de INTERIORS),que não consegue suportar a vida provavelmente em contradição com o discurso que produz. Crimes maiores e menores (parece ser o sentido do título original CRIMES AND MISDEMEANORS) são a carga escondida, não vista, de uma humanidade que deseja a perfeição, a harmonia, a beleza. Sobreviver é em certa medida a negação desse absoluto, mas paradoxalmente também a sua condição de existência.
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A. Roma Torres, Grande Ilusão, n. 11, Dezembro 1990



Título original:
Crimes and Misdemeanores
Realização: Woody Allen
Argumento: Woody Allen
Fotografia: Sven Nykvist
Música: Bach e Schubert
Montagem: Susan E. Morse
Intérpretes: Martln Landau, Claire Bloom, Alan Alda, Woody Allen, Anjellca Huston, Sam Watterson, Mia Farrow, Carollne Aron, Joanna Gleason, Jenny Nlchols
Origem: EUA
Ano: 1989
Duração: 104’
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projeto financiado por
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projeto financiado por
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AS QUATRO VOLTAS, a melhor surpresa cinematográfica de 2011 chega na 2ªf! IPJ, 21h30.

Sócios - 2€ / Estudantes - 3,5€ / Restantes - 4€

COMENTÁRIO DO REALIZADOR
A Calábria exerce um fascínio arcaico. Ainda hoje, ela é palco de tradições ancestrais. Os seus carvoeiros, por exemplo, utilizam as mesmas técnicas nos mesmos materiais desde o início dos tempos.
O saber popular que sobreviveu até aos nossos dias nesta região revela a influência da escola pitagórica que se estabeleceu no local. Esta terra ensinou-me a colocar o papel do Homem em perspectiva e desviar o olhar dele.
Pode o cinema libertar-se do dogma que ordena que os seres humanos têm de ocupar o papel principal? LE QUATTRO VOLTE encoraja-nos a libertar a nossa perspectiva. Estimula o espectador a procurar a relação invisível que inspira vida em tudo aquilo que nos rodeia.
O filme começa de uma forma tradicional: focando-se num homem. De seguida, encaminha a atenção do espectador para aquilo que rodeia este homem: os objectos que habitualmente fazem apenas parte do cenário.
O ser humano é “removido” e relegado para segundo plano, e aquilo que se encontrava em segundo plano é passado para primeiro plano, dando lugar ao prazer de uma descoberta: os outros reinos – o vegetal, o animal e o mineral – ganham a mesma dignidade que o humano.
Para mim, o cinema é um instrumento que pode, mais do que qualquer outra forma de expressão, realçar a ligação entre estes domínios. Encontrar essa ligação foi uma verdadeira aventura cinematográfica.
Quando vejo um filme, tenho frequentemente a impressão de que aquilo que foi captado ultrapassa aquilo que a câmara filmou, como se a imagem fosse uma forma de acesso ao invisível.
Michelangelo Frammartino



LE QUATTRO VOLTE, um idiossincrático e fantástico novo filme de Michelangelo Frammartino, está tão cheio de surpresas – quase todos os planos contêm uma descoberta, sorrateira ou declarada, cósmica ou mundana - que basta descrevê-lo para arriscar revelar demasiado.

Ao mesmo tempo, o aviso de spoiler nunca pareceu tão irrelevante. Arruinaria o seu dia de amanhã ao dizer que o sol vai nascer? Estragaria a sua vida se o informasse de que ela irá terminar com a sua morte? A mortalidade paira entre as preocupações de Frammartino, mas não existe nada de desagradável ou sombrio sobre este filme, a sua segunda longa-metragem. Pelo contrário, LE QUATTRO VOLTE contém mais vida em 88 minutos do que em filmes com o dobro do tamanho, avaliando pacientemente as paisagens naturais e humanas de um vale remoto na região italiana da Calábria.

Em quatro capítulos, Framartinno regista sucessivamente o trânsito terrestre e a transmutação material de um velho pastor, um cabrito, uma árvore e um lote de carvão vegetal. Cada ser vivo ou coisa é examinado com tal cuidado e perspicácia que somos absorvidos pelo ritmo desta prosa cinematográfica.

Frammartino escolheu um local onde as incursões de modernidade são mínimas. Existem veículos a motor e postes de electricidade, mas por outro lado a existência humana parece seguir um padrão ancestral. E ainda assim, talvez paradoxalmente, essa sensação de antiguidade dá ao filme a sua frescura quase dissonante, a sua inquietante sensação de descoberta.

Não há diálogo, o discurso oral é irrelevante para as preocupações de Frammartino. Ouvem-se murmúrios humanos, mas são ininteligíveis e nem são legendados. Como também não o são o ladrar de um cão, o balir das cabras ou o vento suspirando nos ramos do gigantesco abeto que é o totem e o herói trágico do filme. E ainda assim, apesar do naturalismo observador e da indiferença às expectativas do enredo que o realizador demonstra, LE QUATTRO VOLTE não é um documentário.

Não tem nada de urgente a dizer sobre as condições sociais na Itália rural, sobre questões ambientais ou tradições locais, ao mesmo tempo que lança um olhar interessante sobre todos esses temas. Podemos aprender alguma coisa sobre remédios populares, superstições e práticas agrícolas, sobre como os habitantes da zona apanham caracóis, curam doenças respiratórias e fabricam combustível para aquecer as suas casas e cozinhar as refeições.

E esta informação é transmitida com uma clareza e objectividade tais que disfarçam a extraordinária sofisticação formal de Frammartino. Tirando partido das perspectivas radicais proporcionadas pelo terreno montanhoso, ele compõe quadros com a perícia de um pintor e o espírito de um mestre do cinema mudo.

O exemplo mais sustentado, dramático (e hilariante) é talvez a sequência que envolve um camião, um cão e as inevitáveis cabaras, cujas propriedades físicas e natureza animal se combinam num acidente complicado e elegantemente encenado. As operações de causa e efeito são tão herméticas quanto as suas consequências são absurdas, como se as leis do Universo fossem manipuladas para um fim cómico. E Frammartino observa-as e manipula-as tão habilmente – e de forma tão rigorosa – quanto Buster Keaton o fez em “Pamplinas Maquinista” (“The General”), a mais Newtoniana das suas farsas.

O humor – gerado pelas incongruências de escala, pelos desígnios da sorte e do azar e pelo despropósito intrínseco das cabras, dos caracóis e das pessoas – quase corresponde a uma estratégia filosófica, uma forma de explorar o funcionamento do mundo. Aquilo que é mais notável em LE QUATTRO VOLTE é o facto de ser, ao mesmo tempo, completamente acessível e infinitamente misterioso.

Se prestar atenção, apercebe-se do que acontece e cria as ligações entre as diferentes coisas, nenhuma delas terrivelmente desconhecida. Mas há algo de surpreendente, até mesmo chocante, acerca do ângulo que Frammartino impõe ao juntar elementos aparentemente diferentes e insistir em detalhes que, a princípio, parecem insignificantes. Nunca viu nada parecido com este filme, ainda que aquilo que ele lhe mostre tenha estado sempre por lá.
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A.O. Scott, The New York Times


Entremos. Procissão. "As Quatro Voltas" é zona de contacto.

Momento 2, no 2011 português, do percurso de libertação do espectador e de apuramento dos sentidos: depois de "O Tio Boonmee que Recorda as Suas Vidas Anteriores", do tailandês Apichatpong Weerasethakul, "As Quatro Voltas", do italiano Michelangelo Frammartino. Onde somos também cabra ou mineral, onde não há diálogos e onde a figuração humana é empurrada para fora de campo por um cão, Vuk, e pelas suas estratégias terroristas pendulares ao longo da rua de uma aldeia da Calábria. Há neste filme hipóteses para várias vidas de um espectador.

Antes da encenação da Via Sacra em procissão pela rua e que o cão vai sabotar, antes desse extraordinário plano-sequência (onde não há um grama de exibicionismo), morreu um pastor. Depois dele, e depois do cão, nasce uma cabra, e as cabras invadem o ecrã, há uma árvore, que serve o ritual festivo e sacrificial da aldeia, e tudo acaba como carvão, exactamente por onde começara.

Do homem à cabra, desta à árvore e desta ao carvão, como se de estafetas se tratasse, uma vida sucedendo-se à anterior como outra possibilidade, juntando, e são as "quatro voltas" do título, o humano, o animal, o vegetal e o mineral. Parece a fixação artificial de uma narrativa de reencarnação, e é verdade que o realizador se tem referido às tradições animistas da Calábria ou à passagem por ali de Pitágoras, filósofo e matemático grego, autor de teorias sobre a transmigração das almas. Tem-se referido mas tem-se distanciado serena e humildemente - como, aliás, Apichatpong Weerasethakul em relação a reencarnação.

Do que se trata, então? Não da fixação de uma visão do mundo, mas de uma possibilidade de escuta. Até porque num filme sem diálogos ouve-se melhor - sobretudo quando esse filme se quer libertar daquilo que ensurdece e do que já não deixa ver: é a busca de outras vidas para o cinema, e não é por acaso que isso se faz (pensamos também no "Tio Boonmee...") varrendo a hierarquia que coloca o homem no topo da figuração - e é tão aventurosa, incerta a "performance" de uma cabra. (É, para além do mais, a busca de vidas alternativas para o cinema italiano, e calha "As Quatro Voltas" chegar na mesma semana que "A Solidão dos Números Primos": exemplar da "overdose" de redundância destes tempos.)

Não se trata da resposta a um segredo ou explicação de um mistério, mas da experiência do segredo e do mistério - a imagem cinematográfica como zona de contacto. Depois de anos de convívio com os pastores e com as cabras, Frammartino repõe a sua viagem sensorial através do seu filme (o cinema é a sua igreja, disse-nos em entrevista que publicamos neste suplemento). Muito menos documentário de observação, como pode parecer à primeira vista, e mais próximo até de uma recriação de uma experiência, "As Quatro Voltas" é, ele próprio, feito a partir da harmonização de diferentes naturezas, a documental e a ficcional. Como se só o cinema pudesse traduzir o invisível, torná-lo sensorialmente identificável, Frammartino faz-se realizador em comunhão: quer quando está à espera (a imprevisibilidade previsível dos animais dentro do enquadramento; mas que aventura nova para o espectador...), quer quando se faz de Tati/Keaton, coreografando uma procissão numa aldeia - o tal plano-sequência pendular, virtuoso, sim, mas humilde, atento à escuta da zona de contacto que pressente. Entremos no templo de Michelangelo Frammartino. Em procissão.
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Vasco Câmara, Ípsilon


Diferente (e bem mais estimulante) é a proposta que nos traz o novo filme de Frammmartino. Aqui, temos um olhar minimalista que, reduzindo ao mínimo os movimentos de câmara e os diálogos e movendo-se entre a ficção e o documentário, procura recriar à sua escala toda a espessura da vida, que revela como uma unidade orgânica de elementos que comunicam e se transformam entre si. De facto, embora confinado ao espaço de uma pequena aldeia na Calábria, o filme tratará de encadear – num círculo em que fim e princípio coincidirão – quatro quadros (as “quatro voltas” do título) que nos mostram uma única natureza a quatro dimensões: a humana (na figura do pastor), a animal (na figura de uma cabra), a vegetal (na figura de uma árvore) e a inorgânica (na figura do fumo). Entre elas, estabelece-se uma descontinuidade (assinalada pelos fundidos a negro que intervalam os quadros) mas, também e sobretudo, uma comunidade de vida (que entrelaça a morte do pastor com o nascimento da cabra, o desaparecimento da cabra com o aparecimento da árvore...). Trata-se, aqui, de uma ‘visão holista’ da vida que, espantosamente, consegue conciliar a mais profunda seriedade com o humor mais subtil. Prova disso será talvez aquela sequência da encenação da via sacra na aldeia, filmada num plano geral que dilui as personagens no décor e se abre a todo o tipo de apontamentos burlescos que o cinema de um Jacques Tati não desdenharia (o melhor dos quais é a invasão da aldeia deserta pelas cabras). No final, saímos da sala com uma certeza: a de que o filme de Frammartino é uma das melhores surpresas que o ano de 2011 terá para nos oferecer.
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Vasco Baptista Marques, Expresso


À CONVERSA COM MICHELANGELO FRAMMARTINO

GENEALOGIA
Filmei o meu primeiro filme, “Il Dono”, na Calábria em 2003. Desde aí, viajei bastante até esta região no Sul da Itália, onde a minha família tem as suas origens e com a qual me sinto muito ligado. Os amigos que fiz nestas ocasiões recomendaram-me a visita a alguns locais que desconhecia, ainda que tenha viajado pela região durante a minha infância. Um desses locais era Serre, a zona montanhosa na região de Vibo Valentia, onde vive e trabalha uma comunidade de pastores e carvoeiros.

O carvão vegetal é aqui produzido aplicando uma técnica que foi transmitida de geração em geração durante séculos. Fiquei fascinado pelo que vi e senti imediatamente um impulso para fazer um filme naquele local, mesmo não sabendo que filme seria.

Passar algum tempo com os pastores da Calábria permitiu-me observar de perto os animais. O mundo animal fascina-me. O seu desconhecimento da câmara levou-me a alcançar algo a que sempre tinha aspirado: transcender a fronteira entre documentário e ficção. Um amigo meu, Gigi Briglia, mais tarde trabalhou como fotógrafo de cena no filme, falou-me das festividades de “Pita”, uma tradição que remonta à presença dos Lombardos na região e que tem lugar todos os anos na aldeia de Alessandria del Carretto. Os habitantes saem da aldeia em direcção à floresta onde procuram um grande abeto, cortam-no e carregam-no de volta até à aldeia.

Assim, sem qualquer acção deliberada da minha parte, estes quatro reinos caíram nos meus braços: os pastores, que representam o reino humano; as cabras, o reino animal; a árvore, o reino vegetal: e o carvão, que apesar de derivado de matéria vegetal, é de facto transformado pelos carvoeiros em matéria mineral. Isto recordou-me uma frase de Pitágoras. Salvo erro, diz o seguinte:”Cada um de nós tem quatro vidas dentro de si que se encaixam umas nas outras. O Homem é mineral porque o seu esqueleto é feito de sal; o Homem é também vegetal porque o seu sangue corre como a seiva das plantas; é um animal porque se move e possui uma consciência do mundo exterior. Por fim, o Homem é humano porque tem os dons da vontade e da razão. Assim, temos de nos conhecer quatro vezes”. Pitágoras viveu em Croton, a actual Calábria, durante o século VI A.C. A sua escola ensinava a doutrina da metempsicose, ou da
transmigração das almas. Dizem que Pitágoras costumava ensinar atrás de uma cortina, longe dos olhares dos alunos.

À frente de uma tela (tal como à frente de um ecrã de cinema) os seus alunos escutavam a voz do seu mestre e descobriam os significados escondidos das coisas, o significado que está para além do véu que as oculta. Este manto pode obscurecer mas pode também ajudar-nos a perceber que o significado não é compreensível através do olhar. Porque é feito de número, alma e ideia. Em última análise é composto de poeira e partículas luminosas, como aquelas que vemos no cinema, quando nos viramos para trás e observamos a luz do projector.


A Calábria, onde a concepção animista encontra-se ancorada na cultura, ainda é, instintivamente e secretamente, influenciada pelos pensamentos do filósofo grego. De acordo com Whitehead, Pitágoras é o primeiro filósofo verdadeiro. O seu pensamento encontra-se presente na doutrina das ideias de Platão, podemos encontrá-lo no conceito de ciclos do céu de Kepler, na teologia geométrica de Galileu, na doutrina do eterno retorno de Nietzsche, na física de Einstein.

Influenciado pelos filósofos orientais, Pitágoras acreditava na transmigração e na reencarnação das almas. Ele julgava já ter vivido outras vidas, quer como animal quer como vegetal, e que o sentido da existência se encontrava no ciclo da natureza. Um ciclo que na Calábria faz todo o sentido, e se impõe ao espírito daqueles que nunca leram uma única linha de Nietzsche. Na Calábria, a natureza não tem hierarquia. Tudo possui uma alma. Podemos vê-lo ao olhar para os olhos de um animal. Podemos ouvi-lo através do som do carvão, que parece ter uma voz própria. Ou através dos abetos altos, dançando ao vento no topo do Monte Pollino, convocando-nos a todos para o seu lado. Ainda que nunca me tivesse sentido cativado por esta temática, ela impôs-se aos poucos. E eu rendi-me à força deste filme da mesma forma que alguém se renderia face à evidência de um enigma. O filme chegou até mim como um dom; não havia uma ideia pré-determinada.

Assim não me sinto o criador deste filme no sentido habitual. Fui apenas o intermediário entre matéria e forma num processo que pode ser comparado ao do Giuseppe Penone, um artista que esculpe formas de árvores na madeira, fazendo a vida e a forma emergirem do interior da matéria, que são os troncos que usa para esculpir. Para fazer isto é necessário renunciar à ideia de controlo.

O ASPECTO HUMANO
Evidentemente, envolvi os habitantes na realização do filme. O protagonista no primeiro episódio é um pastor. A partir daí, os humanos serão relegados para o segundo plano, até se camuflarem no cenário. Foi por isso que decidi ter os carvoeiros, que surgem no último episódio, vestidos com roupas da mesma cor da carvoaria. Nesse sentido, o único ser humano que realmente surge no filme é o velho pastor. E mesmo esta figura se mistura com aquilo que o rodeia. Os pastores são, muitas vezes, alvos das suspeitas dos habitantes nas aldeias. Em tempos antigos, eles não tinham direito a participar como testemunhas; eram considerados demasiado próximos do mundo animal para que as suas palavras fossem credíveis. A personagem do pastor no meu filme é uma figura solitária que segue o seu percurso e cruza repetidamente as portas da aldeia para mergulhar na natureza. O seu único contacto com a comunidade acontece apenas devido a uma crença que já foi muito comum na Calábria e que entretanto se perdeu: acreditava-se que a poeira das igrejas tinha propriedades terapêuticas.

Não só era administrada a pessoas e animais doentes, mas também para fertilização dos solos. Este velho pastor é uma das poucas pessoas que ainda acredita nos poderes mágicos da poeira. Abastece-se junto do responsável da igreja em troca de uma garrafa de leite. De noite, ele dissolve-a em água e bebe a solução como se fosse um medicamento. O mais interessante em relação a esta troca é o facto de estarem carregadas de secretismo e clandestinidade entre os dois. Tanto o pastor como o responsável da igreja sabem que este ritual pagão não é visto com bons olhos neste ambiente cristão.



TRANSMIGRAÇÃO
Uma noite, o pó “mágico” do velho pastor esgota-se e ela procura, em vão, obter mais. Regressa a casa desmotivado e desamparado e deita-se na sua cama. Na manhã seguinte, descobrimos que morreu durante o sono. A morte do pastor corresponde ao fim do primeiro episódio e dá início ao segundo. O seu rebanho reunira-se ao seu lado para o acompanhar no seu falecimento. O último ser vivo que o pastor vê antes de partir deste mundo é uma das suas cabras.

Assim, o segundo episódio começa com a transmigração desta alma. Na verdade, inicia-se com um nascimento, um acontecimento real e comovente que felizmente foi possível de filmar. O filme prossegue enquanto este animal, que ainda está a aprender a suster-se nas suas pernas, é deixado para trás pelo seu rebanho. Perde-se na floresta e procura abrigo numa árvore. O segundo episódio termina da mesma forma que o primeiro, através da transmigração. O abeto (uma espécie rara na Calábria) encontrado pelo cabrito será o protagonista deste terceiro episódio, que decorre ao mesmo tempo que as festas de “Pita”. O culto da árvore é outra tradição pagã que sobreviveu nesta comunidade cristã. Todos os anos, o padre de Alessandria del Carretto tenta assimilar esta tradição no ritual cristão, sem sucesso. No passado, era habitual içar cabras até ao topo da árvore e disparar contra elas até as matar. O sangue era pulverizado sobre todos os participantes deste intenso e colorido ritual de fertilidade. No final das festividades, a árvore é vendida aos carvoeiros de Serre, em quem reparamos no prólogo. O som é usado para evocar a sua presença ao longo do filme sob a forma de lembretes sonoros discretamente recorrentes.

A quarta e última parte tem início aqui. O tronco é cortado em cepos que são transportados para o local de trabalho dos carvoeiros. O seu trabalho será transformar este material vegetal em matéria mineral. O lento processo de mutação da forma e do estádio da matéria é, na minha opinião, um dos momentos mais intensos do filme. A história desta árvore parece ilustrar o conceito que está no cerne da escultura de Mario Merz: é o triunfo da matéria sobre o objecto, que não morre mas, pelo contrário, é continuamente transformado.

Estes quatro episódios não estão interrompidos por títulos na esperança de que a profunda unidade deste filme fale mais alto do que as suas partes. A sua unidade deve-se à presença de um protagonista invisível: um espírito que reside em todos estes quatro corpos materiais e que, passando de estado para estado e de esfera para esfera, cose todo o filme num só.

MISE-EN-SCÈNE
Um dos temas fundamentais deste filme é a relação entre personagem e cenário. Na nossa cultura, o homem está no centro do universo e todos os outros seres são relegados para segundo plano. Esse aspecto é mais evidente no cinema do que em qualquer outra arte. Na verdade, a sua linguagem técnica está completamente estruturada na presença da figura humana no plano. Um close-up é uma cara. Um close-up extremo filma os olhos, o nariz e a boca. Um plano americano enquadra um corpo acima dos joelhos. Mesmo um plano aberto é definido pela presença minúscula de um homem na paisagem. Tudo é definido pela sua presença. Estava interessado em encontrar uma relação mais equilibrada entre a figura humana e a vegetação, bem como com outros objectos e presenças. No início do primeiro episódio, o pastor está no centro enquanto os animais ocupam o segundo plano. A certa altura, o primeiro e o segundo planos fundem-se e os animais tornam-se os protagonistas. As passagens de um episódio para o seguinte são precedidos por momentos em que os seres, que anteriormente haviam sido relegados para segundo plano, começam a sobressair do cenário e a mover-se para o plano principal, quer sonora quer visualmente.

Tentei evitar que existissem personagens a entrar ou sair por fora do plano. Quis que eles aparecessem do c entro da imagem: o homem vai e vem entre portas, o cabrito surge do ventre da mãe, o pastor e o seu rebanho eclipsam-se por trás de uma colina. Gosto da ideia de o filme dar à luz as personagens, tal como no filme de 45 segundos dos irmãos Lumière, “A Saída dos Operários da Fábrica Lumière”. É uma forma de atenuar a separação entre exterior e interior, entre o que está ou não a ser filmado. Uma imagem prevalece acima das outras. Aparece repetidamente e prepara o filme para os momentos mais complexos do filme. É o plano da Porta de Santo António, a entrada secundária para a aldeia de Caulonia, que nos conduz até ao campo e que é usado principalmente pelos habitantes. Filmei-o apenas num take longo com uma distância focal muito curta, com uma lente de 16 mm. Isto tornou as panorâmicas complicadas por o movimento de rotação da câmara ultrapassou os 180º. Depois de inúmeros testes, demorámos dois dias para finalizar esta cena.


Nesta cena existe uma casa. Antes de ser coberta de cimento, era feita de rocha não polida, o mesmo material de que é feito a Porta. Como mais tarde descobrimos, esta é a casa do pastor, mas esse facto não é tão relevante quanto a sua localização: está na fronteira entre a aldeia e o campo envolvente. Tal como o pastor, pertence à comunidade mas ainda assim é-lhe alheio. Está demasiado próximo da localidade para os animais gostarem e demasiado marcado pela presença dos animais para estar integrado na comunidade.

SOM
O meu objectivo era usar a banda sonora para reforçar a ideia destas quatro vidas encaixando-se umas nas outras. Na fase de mistura, adicionei elementos sonoros para unir momentos diferentes do filme. Quis que o espectador tivesse a impressão de que o som por trás da imagem, tal como nas lições pitagóricas, onde o professor ensinava por trás de uma cortina. O som é o repositório do significado mais profundo do filme, dos seus segredos e de tudo aquilo que se esconde atrás do ecrã.

A TERRA
Calábria é um lugar maravilhoso. No entanto, é também marcado por fortes contradições. Este foi, algumas vezes, um tópico de discussão entre a equipa, uma equipa de profissionais com uma vasta experiência de trabalho em vários locais do mundo. Mais do que uma vez, após dias de filmagens nas colinas de Serre, ouvi-os comentar que nunca tinham visto paisagens tão belas. Filmar lá, por outro lado, pareceu-me muito natural. E isto deve-se, sem qualquer dúvida, ao meu passado pessoal; ainda que tenha nascido e sido criado em Milão, tenho origens calabresas. Mas essa não foi a única razão. No meu trabalho como cineasta e na minha pesquisa estética em geral, sou atraído para um certo tipo de imagem que chamo de “aporética”, que vem da palavra grega aporia, e que significa literalmente “impossível de atravessar”, e consequentemente, indicando dúvida. No trabalho de Tarkovsky, por exemplo, há espaços interiores onde chove, o que compromete a “interioridade” desses espaços. A Calábria é rica em locais aporéticos. Ao contrário de Milão, onde as fronteiras entre o que é público e privado estão sempre bem definidas, as portas da frente nas casas Calabresas estão sempre abertas. Podemos assim dizer que aqueles locais são osmóticos. Na verdade, não é invulgar que um pastor leve as suas cabras para o interior de sua casa para as ordenhar.

Algumas profissões que já desapareceram noutros locais continuam a sobreviver hoje em dia na Calábria, embora também já se encontrem em declínio. Os carvoeiros que filmei fazem parte da última geração a praticar este ofício ancestral.

AS QUATRO VOLTAS é, de alguma forma, a representação de uma terra que se divide nos limites entre o presente e o passado, entre crenças modernas e ancestrais, entre a aldeia e o campo. Os personagens deste filme são como que fantasmas cinemáticos, atravessando a ponte em direcção ao seu próprio desaparecimento. Estes limites são ao mesmo tempo tangíveis e metafísicos. A aldeia de Caulonia situa-se bem alto nas colinas e está circunscrita pelas suas muralhas. Os pastores vivem habitualmente nas proximidades das Portas junto das muralhas. Habitam no interior das muralhas, mas os seus animais são mantidos no exterior.

Mas os pastores são também considerados intermediários entre o domínio humano e o divino, pelo menos segundo a tradição literária. Segundo o Evangelho, foram os primeiros a saber do nascimento de Cristo.



INSPIRAÇÃO
AS QUATRO VOLTAS não faz qualquer referência directa a outros filmes. No entanto, a minha forma de realizar é habitualmente inspirada pelos maiores cineastas. O primeiro de que me lembro é o Béla Tarr; a presença de animais é crucial no seu cinema. Do meu ponto de vista, Damnation é a história de um homem que se transforma num cão. Também penso muito em Bresson e no seu “Peregrinação Exemplar” (Au hasard Balthazar”). Agradam-me estes cineastas cujo passado profissional não estava alicerçado na indústria cinematográfica. Admiro Michael Snow e o seu filme “La région centrale”. Outra influência é Samuel Beckett, que apenas escreveu um filme, uma curta-metragem intitulada “Film”, filmada por Alain Schneider em 1965. Ambos estes filmes propõem pontos de vista nos quais o Homem não é a figura central. Referi exemplos monumentais mas não desejo comparar-me a eles. O meu trabalho é de natureza artesanal. Não uso estes autores como referências intelectuais, mas recorro a eles para superar algumas dificuldades, tais como o obstáculo da página em branco – um tema tão pertinente na literatura como na arquitectura.

HABITAR A IMAGEM
Apaixonei-me pelas imagens e pelo desenho enquanto crescia. Sou licenciado em Arquitectura. Estas disciplinas convergiram em instalações vídeo, que requerem uma concepção simultânea dos espaços cinemáticos e arquitectónicos, e das imagens e do contexto arquitectural nas quais a imagem será vista. As instalações representam talvez as minhas primeiras meditações acerca da imagem e acerca daquilo que lhe permanece alheio. Dediquei me primeiramente a instalações interactivas, trabalhos nos quais a participação do espectador era essencial para a sua realização. A narração não existe se o espectador não tomar parte activamente e interagir com as imagens. O meu objectivo é transportar esta experiência para o cinema. AS QUATRO VOLTAS é um trabalho incompleto no sentido em que cada uma das suas partes está separada das outras por um vazio, um intervalo em que o espectador se tem de apressar a preencher usando a sua própria imaginação. Este espaço vazio é um convite e uma oportunidade para os espectadores assumirem responsabilidade criativa e fazerem parte da concretização do filme. A interpretação do público dá forma ao filme e tornam-no vivo.
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Declarações recolhidas por Eugenio Renzi




Título original: Le Quattro Volte
Argumento e Realização: Michelangelo Frammartino
Director de Fotografia: Andrea Locatelli
Montagem: Benni Atria, Maurizio Grillo
Som: Paolo Benvenutti, Simone Paolo Olivero
Interpretação: Giuseppe Fuda, Bruno Timpano, Nazareno Timpano
Origem: Itália/Alemanha/ Suiça
Ano: 2010
Duração: 88’
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