Também programamos terror - quando é do bom. ZONA DE PERIGO, CRONENBERG. 4ªf, Sede, 21h30, entrada livre.

Partindo de um romance de Stephen King, autor entre outros, das obras de onde partiram os argumentos de Carrie, de Brian De Palma, Shinning, de Stanley Kubrick, Christine, de John Carpenter, Creephshow, de George Romero, Dead Zone tem a característica de se integrar harmoniosamente no universo de dois dos grandes mestres do fantástico moderno: King e Cronenberg. Do escritor, prolonga as suas obsessões que integram o fantástico numa base realista e sociológica de indesmentível interesse.

Mas não é só ao nível das personagens que se procura essa base realista. A descrição de uma pequena cidade da provincial é notavelmente dada, nos seus circuitos familiares, na análise dos mecanismos de pressão económica e política, no retrato preciso das etapas de uma campanha eleitoral. Tudo isto parte em muito do talento narrativo de Stephen King, mas é habilmente prolongado e desenvolvido pela argúcia de David Cronenberg. Zona de Perigo assinala até outro dos grandes momentos da carreira deste realizador, tendo ganho o Prémio da Crítica no Festival de Avoriaz de 1984.
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Lauro António, Se7e, 14/9/88


Cronenberg, de um ponto de vista estilístico, é um "clássico". A linearidade das suas intrigas, a sua montagem fluida, invisível, confortam a fé do espectador naquilo que vê. Nada de magia ou atmosferas góticas; a presença e os comentários nos filmes de médicos e de sábios reforçam ainda mais a nossa “credulidade". A alucinação é uma figura central do cinema de Cronenberg, onde o olho da câmara nunca é para o espectador o dum Deus que siga, passo a passo, um herói privilegiado. São a estrutura narrativa e, mais ainda, as imagens, que levam o espectador à inquietude fundamental do observador que já não sabe se as peripécias que lhe mostram são "verdadeiras" (em sentido quase documental) ou se a intriga não lhe chega doutro lado, de uma personagem secundária por exemplo.

Em The Dead Zone, Johnny Smith (Christopher Walken), na sequência de um acidente de automóvel, cai num longo coma ao fim do qual descobre ter-se tornado capaz de, tocando as pessoas, ver o seu futuro, ou mais exactamente as potencialidades da sua existência. Confrontado com um candidato demagogo numa eleição local, descobre ao apertar a mão de Greg Stillson (Martin Sheen) que este se pode vir a tornar um presidente fascista e originar uma guerra nuclear. O próprio Cronenberg insistiu no paradoxo do espectador dos seus filmes: consideramos, de facto, essas visões como verdadeiras! Presos pela narração e pelo aspecto patético de uma personagem "vinda dos mortos", nunca duvidamos das suas visões! E quando Johnny se decide a assassinar o candidato "seguimo-lo" totalmente, esperando que a bala da sua carabina despedace o crânio deste perigoso paranóico (o médico de Johnny, um judeu que conheceu a guerra, diz-lhe a que ponto teria sido desejável o assassínio de Hitler - diabolização clássica do maniqueísmo hollywoodiano) Ora, diz Cronenberg, “se encararmos o filme como narrado do ponto de vista de Johnny, como de facto é, não podemos estar seguros de que não se trata de outro tarado que diz ter visto o futuro e saber o que deve ser feito. Deste ponto de vista, The Dead Zone é moralmente... ambíguo...” . Assim, num dos poucos filmes cujo argumento não escreveu inteiramente - linear e hollywoodiano, com um fim "moral" e relativamente "positivo" - o próprio Cronenberg nos coloca face ao paradoxo do seu sistema. Desejamos a morte do demagogo sem sermos persuadidos por mais nada do que aquilo que nos é mostrado (o sindroma da desinformação, de alguma maneira), convencidos de que ele é mesmo um Hitler em potência.

Sabemos, é certo, através da vertente "naturalista" do filme que este indivíduo medíocre é um demagogo. Mas que sabemos nós das visões de Johnny? Que é que nos faz pensar que elas são verdadeiras? Muito simplesmente, o facto de acreditarmos nas imagens, e estarmos, desde há muito tempo, contaminados pelo vírus hollywoodiano (a luta do Bem e do Mal que desculpa e justifica as piores respostas) e por uma moral saída dos talk-shows televisivos que, efectivamente, nos investe de uma missão tão temível como derrisória: baixar o polegar, como a plebe romana no circo, e decidir a vida e a morte de personagens na maior parte das vezes imaginárias; tornámo-nos juízes, prontos para a primeira sondagem telefónica.

Ironicamente, mas também por uma espécie de masoquismo, Cronenberg conseguiu penetrar, como um vírus, no universo hollywoodiano e contaminá-lo no interior. Fazendo The Dead Zone passar por mais ambíguo do que Videodrome, trai indubitavelmente aquilo que faz a originalidade do seu projecto: uma desestabilização do cinema vinda do próprio interior da gramática fílmica; insuflar no espectador uma dúvida mortal sobre a imagem, sobre a continuidade, sobre a incarnação, ou mesmo sobre a verdade.

The Dead Zone é o único filme para o qual David Cronenberg não escreveu o argumento. Tem personagens reais e nomes reais: simples como Johnny Smith e Sarah Bracknell. Cronenberg reagiu de forma positiva porque, como canadiano, se sentiu em sintonia com as pessoas simples do interior rural do “set” da história em Nova Inglaterra. Era uma oportunidade de abordar, noutro prisma, o tipo de temas que o interessam.
The Dead Zone resulta, quanto mais não seja pelas excelentes actuações de Christopher Walken, Brooke Adams a Martin Sheen. E o filme levanta questões intrigantes acerca da existência de limites na santidade da vida humana. Que se teria feito a Hitler nos anos 30 se se soubesse o que se sabe hoje?
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Cinemateca Portuguesa, David Cronenberg: a expressão nua



Título original: The Dead Zone
Realização: David Cronenberg
Argumento: Jeffrey Boam, baseado no romance de Stephen King
Fotografia: Mark Irwin
Montagem: Ronald Sanders
Música: Michael Kamen
Interpretação: Brooke Adams, Christopher Walken, Herbert Lom, Tom Skerritt, Anthony Zerbe,
Colleen Dewhurst, Martin Sheen
Origem: EUA
Ano: 1983
Duração: 103’

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