O filme mais sombrio de Woody Allen. 4ªf, 21h30, sede. (perante ele, Match Point é joguinho de cabra-cega)

UM dos filmes vividos por David Gilmour e o seu filho em Clube de Cinema (livro que foi apresentado por Graça Lobo).

CRIMES E ESCAPADELAS (Crimes and Misdemeanors), EUA, 1989, 104’

Um filme sombrio ou um reflexo de sombras? Não interessa. É o regresso de Woody Allen, genial, como é costume.

Woody soma e segue. Novo filme obra grande do cinema americano. Sem grandes alardes, sem o apoio das fortes baterias publicitárias que pontuam a estreia dos megafilmes dos seus colegas de Hollywood. «Crimes e Escapadelas» é a habitual visita anual do nosso amigo americano.

Desta vez Woody traz algumas novidades na bagagem. Começam no elenco, passando ainda pelas tonalidades com que pinta a história, terminando com a inserção de um elemento até agora inédito no cinema de Woody. Mas fica já um aviso à navegação: desiludam-se os que vão procurar comédia em «Crimes e Escapadelas». O filme não é para rir e Allen parece cada vez menos interessado em regressar às gargalhadas. «Crimes e Escapadelas» é mesmo o mais sombrio filme de Woody, pintado com os já habituais tons outonais que definem o «deserto de almas» que as suas personagens atravessam. Drama, cada vez mais complexo, onde Allen continua a questionar a possibilidade de felicidade e o significado da vida. A herança de Bergman nota-se cada vez mais.

«Crimes e Escapadelas» coloca os seus protagonistas face a dilemas com a dimensão da vida. As questões morais e éticas que presidem à sua resolução é o objectivo cinematográfico de Allen. Não há bons nem maus, apenas pessoas enfrentando problemas de importância vital num dado momento da sua existência.

Temos pois uma narrativa montada como um castelo de cartas onde cada elemento segura e dá consistência aos outros. No início são duas histórias contadas em paralelo, aparentemente sem ligação. Temos os problemas de Judah Rosenthal, um oftalmologista famoso, a braços com uma situação complicada: leva uma vida dupla (família e amante). Com a sua imagem oficial de grande humanista, indivíduo devotado a nobres causas, chefe de uma família modelo a ser posta em causa pela face escondida, pelos acessos de histerismo da amante farta de permanecer na sombra. Temos ainda o caso de Cliff Stern, um documentarista de meia idade, apanhado numa encruzilhada da vida, tanto no aspecto intímo (um casamento que se apaga, com amor-afecto a ser canalizado para uma sobrinha) como no foro profissional.

Em «Crimes e Escapadelas» Woody reforça a sua família cinematográfica com uma série de nomes sonantes. A juntar aos «habitués» Mia Farrow (décimo filme com Allen) e Sam Waterstorb (quarta participação depois de «Intimidade», «Ana e as Suas Irmãs» e «Setembro»), surgem Martin Landau, excelente na sua composição de Judah Rosenthal, um dos personagens centrais do filme, Anjelica Huston, Alan Alda, Claire Bloom, Jerry Orbach, Caroline Aaron e mesmo, de forma episódica, Daryl Hannah. Se Martin Landau merece destaque maior, pelo seu peso no filme, pela sua nomeação para o Oscar de melhor secundário, pelo segundo fôlego da sua carreira, a participação de Alan Alda é, do ponto de vista cinematográfico, mais estimulante.
Uma obra brilhante, excelentemente fotografada pelo sueco Sven Nikvist, onde Allen reforça e apura a sua tendência para um cinema romanesco e intimista.

M.P., Se7e, 26/4/90


Para um crime perfeito «à la Hitchcock», aliás explicitamente citado no filme, Woody Allen faz um filme quase perfeito.

Se em UMA OUTRA MULHER se tratava da escuta, em CRIMES E ESCAPADELAS é o olhar que ocupa obviamente a atenção de Woody Allen. A esse respeito o argumento do filme é extremamente hábil. Desde logo na plateia que aplaude Judah (Martin Landau), o oftalmologista publicamente distinguido no auge da sua carreira. Virtudes públicas, vícios privados. Ele que trata dos olhos vive a situação de conflito entre o modo como é visto e aquilo que oculta (eventuais fraudes económicas, uma vida amorosa clandestina e finalmente um crime). Os olhos de Deus, retomados da educação religiosa hebraica da sua infância, são a metáfora do papel que assume perante si próprio, da forma como se vê. A consciência moral identifica-se com a capacidade de enfrentar um olhar exterior, em certa medida o olhar dos outros.

Lester (Alan Alda) é um personagem de alguma maneira semelhante. Ele é produtor de televisão mas não goza do prestígio de Judah. Por isso mesmo empenha-se num documentário a seu respeito. Para Lester trata-se ainda de ser visto, de através da plateia electrónica dos «mass-media» que ele controla, criar uma imagem positiva de si próprio.

No pólo oposto há os personagens que vêem. Ben (Sam Waterson) é um rabi, logo alguém que vê os outros através de referências morais que não dependem de momentos circunstanciais.
Progressivamente fica cego. Cliff (Woody Allen) é um documentarista empenhado naquilo que dá a ver. Acaba despedido, e o seu melhor material filmado é posto em causa pela morte do filósofo protagonista do documentário que procurava realizar.

Mas CRIMES E ESCAPADELAS não é apenas um filme sobre o visto. Woody Allen preocupa-se também com o dito não apenas nos discursos (do oftalmologista, do produtor, do Filósofo) mas também no relato do que de certo modo é inconfessável (a experiência sexual da irmã de Cliff com um desconhecido), ou na quase compulsão da confissão que parece assaltar Judah (mas a dado momento quando numa reunião familiar exclama «fiz uma coisa horrível» o que o move é o pretexto para uma melhor dissimulação do seu envolvimento com a amante assassinada).

A própria palavra se liga à culpa. Afinal o crime fora tão fácil como um simples telefonema. O crime perfeito de Judah pode ser só uma excelente ideia para um argumento cinematográfico, de que ele próprio pode dividar-se entre o desejo e a culpa, como o desejo de Cliff se pode identificar com o crime perfeito nesse excelente diálogo equívoco da cena final entre ambos.

Das palavras parece ainda desconfiar Woody Alllen quando contrapõe o discurso humanista e optimista do filósofo, ainda a palavra pública submetida ao efeito de plateia, com a resolução do homem consigo próprio no gesto suicida.

O que Woody Allen reflecte é talvez uma realidade nova resultante duma mutação cultural do mundo moderno televisual onde o que é visto tem uma importância primordial mas a própria multiplicação quase infinita de pontos de vista torna-os cada vez mais relativos. Woody Allen interroga os fundamentos da consciência moral num mundo que se tem de habituar a uma certa dose de incerteza que em última análise destrói a visão global necessária ao desenvolvimento que qualquer ideologia ou mundividência que dê suporte a uma moral.

O que não é visto, a mais obscura zona da intimidade, pode ainda ser motivo de um sentimento de culpa na medida em que pode ser revelada. Mas haverá um limite para o que pode ser contido? Aparentemente é a distância que vai entre a vida e a morte, entre o oftalmologista que sobrevive, que consegue conter a culpa de uma carga que vai acumulando na luta pela sobrevivência até ao limite do crime, e o filósofo que se suicida (como a mãe de INTERIORS),que não consegue suportar a vida provavelmente em contradição com o discurso que produz. Crimes maiores e menores (parece ser o sentido do título original CRIMES AND MISDEMEANORS) são a carga escondida, não vista, de uma humanidade que deseja a perfeição, a harmonia, a beleza. Sobreviver é em certa medida a negação desse absoluto, mas paradoxalmente também a sua condição de existência.
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A. Roma Torres, Grande Ilusão, n. 11, Dezembro 1990



Título original:
Crimes and Misdemeanores
Realização: Woody Allen
Argumento: Woody Allen
Fotografia: Sven Nykvist
Música: Bach e Schubert
Montagem: Susan E. Morse
Intérpretes: Martln Landau, Claire Bloom, Alan Alda, Woody Allen, Anjellca Huston, Sam Watterson, Mia Farrow, Carollne Aron, Joanna Gleason, Jenny Nlchols
Origem: EUA
Ano: 1989
Duração: 104’
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