AS QUATRO VOLTAS, a melhor surpresa cinematográfica de 2011 chega na 2ªf! IPJ, 21h30.

Sócios - 2€ / Estudantes - 3,5€ / Restantes - 4€

COMENTÁRIO DO REALIZADOR
A Calábria exerce um fascínio arcaico. Ainda hoje, ela é palco de tradições ancestrais. Os seus carvoeiros, por exemplo, utilizam as mesmas técnicas nos mesmos materiais desde o início dos tempos.
O saber popular que sobreviveu até aos nossos dias nesta região revela a influência da escola pitagórica que se estabeleceu no local. Esta terra ensinou-me a colocar o papel do Homem em perspectiva e desviar o olhar dele.
Pode o cinema libertar-se do dogma que ordena que os seres humanos têm de ocupar o papel principal? LE QUATTRO VOLTE encoraja-nos a libertar a nossa perspectiva. Estimula o espectador a procurar a relação invisível que inspira vida em tudo aquilo que nos rodeia.
O filme começa de uma forma tradicional: focando-se num homem. De seguida, encaminha a atenção do espectador para aquilo que rodeia este homem: os objectos que habitualmente fazem apenas parte do cenário.
O ser humano é “removido” e relegado para segundo plano, e aquilo que se encontrava em segundo plano é passado para primeiro plano, dando lugar ao prazer de uma descoberta: os outros reinos – o vegetal, o animal e o mineral – ganham a mesma dignidade que o humano.
Para mim, o cinema é um instrumento que pode, mais do que qualquer outra forma de expressão, realçar a ligação entre estes domínios. Encontrar essa ligação foi uma verdadeira aventura cinematográfica.
Quando vejo um filme, tenho frequentemente a impressão de que aquilo que foi captado ultrapassa aquilo que a câmara filmou, como se a imagem fosse uma forma de acesso ao invisível.
Michelangelo Frammartino



LE QUATTRO VOLTE, um idiossincrático e fantástico novo filme de Michelangelo Frammartino, está tão cheio de surpresas – quase todos os planos contêm uma descoberta, sorrateira ou declarada, cósmica ou mundana - que basta descrevê-lo para arriscar revelar demasiado.

Ao mesmo tempo, o aviso de spoiler nunca pareceu tão irrelevante. Arruinaria o seu dia de amanhã ao dizer que o sol vai nascer? Estragaria a sua vida se o informasse de que ela irá terminar com a sua morte? A mortalidade paira entre as preocupações de Frammartino, mas não existe nada de desagradável ou sombrio sobre este filme, a sua segunda longa-metragem. Pelo contrário, LE QUATTRO VOLTE contém mais vida em 88 minutos do que em filmes com o dobro do tamanho, avaliando pacientemente as paisagens naturais e humanas de um vale remoto na região italiana da Calábria.

Em quatro capítulos, Framartinno regista sucessivamente o trânsito terrestre e a transmutação material de um velho pastor, um cabrito, uma árvore e um lote de carvão vegetal. Cada ser vivo ou coisa é examinado com tal cuidado e perspicácia que somos absorvidos pelo ritmo desta prosa cinematográfica.

Frammartino escolheu um local onde as incursões de modernidade são mínimas. Existem veículos a motor e postes de electricidade, mas por outro lado a existência humana parece seguir um padrão ancestral. E ainda assim, talvez paradoxalmente, essa sensação de antiguidade dá ao filme a sua frescura quase dissonante, a sua inquietante sensação de descoberta.

Não há diálogo, o discurso oral é irrelevante para as preocupações de Frammartino. Ouvem-se murmúrios humanos, mas são ininteligíveis e nem são legendados. Como também não o são o ladrar de um cão, o balir das cabras ou o vento suspirando nos ramos do gigantesco abeto que é o totem e o herói trágico do filme. E ainda assim, apesar do naturalismo observador e da indiferença às expectativas do enredo que o realizador demonstra, LE QUATTRO VOLTE não é um documentário.

Não tem nada de urgente a dizer sobre as condições sociais na Itália rural, sobre questões ambientais ou tradições locais, ao mesmo tempo que lança um olhar interessante sobre todos esses temas. Podemos aprender alguma coisa sobre remédios populares, superstições e práticas agrícolas, sobre como os habitantes da zona apanham caracóis, curam doenças respiratórias e fabricam combustível para aquecer as suas casas e cozinhar as refeições.

E esta informação é transmitida com uma clareza e objectividade tais que disfarçam a extraordinária sofisticação formal de Frammartino. Tirando partido das perspectivas radicais proporcionadas pelo terreno montanhoso, ele compõe quadros com a perícia de um pintor e o espírito de um mestre do cinema mudo.

O exemplo mais sustentado, dramático (e hilariante) é talvez a sequência que envolve um camião, um cão e as inevitáveis cabaras, cujas propriedades físicas e natureza animal se combinam num acidente complicado e elegantemente encenado. As operações de causa e efeito são tão herméticas quanto as suas consequências são absurdas, como se as leis do Universo fossem manipuladas para um fim cómico. E Frammartino observa-as e manipula-as tão habilmente – e de forma tão rigorosa – quanto Buster Keaton o fez em “Pamplinas Maquinista” (“The General”), a mais Newtoniana das suas farsas.

O humor – gerado pelas incongruências de escala, pelos desígnios da sorte e do azar e pelo despropósito intrínseco das cabras, dos caracóis e das pessoas – quase corresponde a uma estratégia filosófica, uma forma de explorar o funcionamento do mundo. Aquilo que é mais notável em LE QUATTRO VOLTE é o facto de ser, ao mesmo tempo, completamente acessível e infinitamente misterioso.

Se prestar atenção, apercebe-se do que acontece e cria as ligações entre as diferentes coisas, nenhuma delas terrivelmente desconhecida. Mas há algo de surpreendente, até mesmo chocante, acerca do ângulo que Frammartino impõe ao juntar elementos aparentemente diferentes e insistir em detalhes que, a princípio, parecem insignificantes. Nunca viu nada parecido com este filme, ainda que aquilo que ele lhe mostre tenha estado sempre por lá.
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A.O. Scott, The New York Times


Entremos. Procissão. "As Quatro Voltas" é zona de contacto.

Momento 2, no 2011 português, do percurso de libertação do espectador e de apuramento dos sentidos: depois de "O Tio Boonmee que Recorda as Suas Vidas Anteriores", do tailandês Apichatpong Weerasethakul, "As Quatro Voltas", do italiano Michelangelo Frammartino. Onde somos também cabra ou mineral, onde não há diálogos e onde a figuração humana é empurrada para fora de campo por um cão, Vuk, e pelas suas estratégias terroristas pendulares ao longo da rua de uma aldeia da Calábria. Há neste filme hipóteses para várias vidas de um espectador.

Antes da encenação da Via Sacra em procissão pela rua e que o cão vai sabotar, antes desse extraordinário plano-sequência (onde não há um grama de exibicionismo), morreu um pastor. Depois dele, e depois do cão, nasce uma cabra, e as cabras invadem o ecrã, há uma árvore, que serve o ritual festivo e sacrificial da aldeia, e tudo acaba como carvão, exactamente por onde começara.

Do homem à cabra, desta à árvore e desta ao carvão, como se de estafetas se tratasse, uma vida sucedendo-se à anterior como outra possibilidade, juntando, e são as "quatro voltas" do título, o humano, o animal, o vegetal e o mineral. Parece a fixação artificial de uma narrativa de reencarnação, e é verdade que o realizador se tem referido às tradições animistas da Calábria ou à passagem por ali de Pitágoras, filósofo e matemático grego, autor de teorias sobre a transmigração das almas. Tem-se referido mas tem-se distanciado serena e humildemente - como, aliás, Apichatpong Weerasethakul em relação a reencarnação.

Do que se trata, então? Não da fixação de uma visão do mundo, mas de uma possibilidade de escuta. Até porque num filme sem diálogos ouve-se melhor - sobretudo quando esse filme se quer libertar daquilo que ensurdece e do que já não deixa ver: é a busca de outras vidas para o cinema, e não é por acaso que isso se faz (pensamos também no "Tio Boonmee...") varrendo a hierarquia que coloca o homem no topo da figuração - e é tão aventurosa, incerta a "performance" de uma cabra. (É, para além do mais, a busca de vidas alternativas para o cinema italiano, e calha "As Quatro Voltas" chegar na mesma semana que "A Solidão dos Números Primos": exemplar da "overdose" de redundância destes tempos.)

Não se trata da resposta a um segredo ou explicação de um mistério, mas da experiência do segredo e do mistério - a imagem cinematográfica como zona de contacto. Depois de anos de convívio com os pastores e com as cabras, Frammartino repõe a sua viagem sensorial através do seu filme (o cinema é a sua igreja, disse-nos em entrevista que publicamos neste suplemento). Muito menos documentário de observação, como pode parecer à primeira vista, e mais próximo até de uma recriação de uma experiência, "As Quatro Voltas" é, ele próprio, feito a partir da harmonização de diferentes naturezas, a documental e a ficcional. Como se só o cinema pudesse traduzir o invisível, torná-lo sensorialmente identificável, Frammartino faz-se realizador em comunhão: quer quando está à espera (a imprevisibilidade previsível dos animais dentro do enquadramento; mas que aventura nova para o espectador...), quer quando se faz de Tati/Keaton, coreografando uma procissão numa aldeia - o tal plano-sequência pendular, virtuoso, sim, mas humilde, atento à escuta da zona de contacto que pressente. Entremos no templo de Michelangelo Frammartino. Em procissão.
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Vasco Câmara, Ípsilon


Diferente (e bem mais estimulante) é a proposta que nos traz o novo filme de Frammmartino. Aqui, temos um olhar minimalista que, reduzindo ao mínimo os movimentos de câmara e os diálogos e movendo-se entre a ficção e o documentário, procura recriar à sua escala toda a espessura da vida, que revela como uma unidade orgânica de elementos que comunicam e se transformam entre si. De facto, embora confinado ao espaço de uma pequena aldeia na Calábria, o filme tratará de encadear – num círculo em que fim e princípio coincidirão – quatro quadros (as “quatro voltas” do título) que nos mostram uma única natureza a quatro dimensões: a humana (na figura do pastor), a animal (na figura de uma cabra), a vegetal (na figura de uma árvore) e a inorgânica (na figura do fumo). Entre elas, estabelece-se uma descontinuidade (assinalada pelos fundidos a negro que intervalam os quadros) mas, também e sobretudo, uma comunidade de vida (que entrelaça a morte do pastor com o nascimento da cabra, o desaparecimento da cabra com o aparecimento da árvore...). Trata-se, aqui, de uma ‘visão holista’ da vida que, espantosamente, consegue conciliar a mais profunda seriedade com o humor mais subtil. Prova disso será talvez aquela sequência da encenação da via sacra na aldeia, filmada num plano geral que dilui as personagens no décor e se abre a todo o tipo de apontamentos burlescos que o cinema de um Jacques Tati não desdenharia (o melhor dos quais é a invasão da aldeia deserta pelas cabras). No final, saímos da sala com uma certeza: a de que o filme de Frammartino é uma das melhores surpresas que o ano de 2011 terá para nos oferecer.
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Vasco Baptista Marques, Expresso


À CONVERSA COM MICHELANGELO FRAMMARTINO

GENEALOGIA
Filmei o meu primeiro filme, “Il Dono”, na Calábria em 2003. Desde aí, viajei bastante até esta região no Sul da Itália, onde a minha família tem as suas origens e com a qual me sinto muito ligado. Os amigos que fiz nestas ocasiões recomendaram-me a visita a alguns locais que desconhecia, ainda que tenha viajado pela região durante a minha infância. Um desses locais era Serre, a zona montanhosa na região de Vibo Valentia, onde vive e trabalha uma comunidade de pastores e carvoeiros.

O carvão vegetal é aqui produzido aplicando uma técnica que foi transmitida de geração em geração durante séculos. Fiquei fascinado pelo que vi e senti imediatamente um impulso para fazer um filme naquele local, mesmo não sabendo que filme seria.

Passar algum tempo com os pastores da Calábria permitiu-me observar de perto os animais. O mundo animal fascina-me. O seu desconhecimento da câmara levou-me a alcançar algo a que sempre tinha aspirado: transcender a fronteira entre documentário e ficção. Um amigo meu, Gigi Briglia, mais tarde trabalhou como fotógrafo de cena no filme, falou-me das festividades de “Pita”, uma tradição que remonta à presença dos Lombardos na região e que tem lugar todos os anos na aldeia de Alessandria del Carretto. Os habitantes saem da aldeia em direcção à floresta onde procuram um grande abeto, cortam-no e carregam-no de volta até à aldeia.

Assim, sem qualquer acção deliberada da minha parte, estes quatro reinos caíram nos meus braços: os pastores, que representam o reino humano; as cabras, o reino animal; a árvore, o reino vegetal: e o carvão, que apesar de derivado de matéria vegetal, é de facto transformado pelos carvoeiros em matéria mineral. Isto recordou-me uma frase de Pitágoras. Salvo erro, diz o seguinte:”Cada um de nós tem quatro vidas dentro de si que se encaixam umas nas outras. O Homem é mineral porque o seu esqueleto é feito de sal; o Homem é também vegetal porque o seu sangue corre como a seiva das plantas; é um animal porque se move e possui uma consciência do mundo exterior. Por fim, o Homem é humano porque tem os dons da vontade e da razão. Assim, temos de nos conhecer quatro vezes”. Pitágoras viveu em Croton, a actual Calábria, durante o século VI A.C. A sua escola ensinava a doutrina da metempsicose, ou da
transmigração das almas. Dizem que Pitágoras costumava ensinar atrás de uma cortina, longe dos olhares dos alunos.

À frente de uma tela (tal como à frente de um ecrã de cinema) os seus alunos escutavam a voz do seu mestre e descobriam os significados escondidos das coisas, o significado que está para além do véu que as oculta. Este manto pode obscurecer mas pode também ajudar-nos a perceber que o significado não é compreensível através do olhar. Porque é feito de número, alma e ideia. Em última análise é composto de poeira e partículas luminosas, como aquelas que vemos no cinema, quando nos viramos para trás e observamos a luz do projector.


A Calábria, onde a concepção animista encontra-se ancorada na cultura, ainda é, instintivamente e secretamente, influenciada pelos pensamentos do filósofo grego. De acordo com Whitehead, Pitágoras é o primeiro filósofo verdadeiro. O seu pensamento encontra-se presente na doutrina das ideias de Platão, podemos encontrá-lo no conceito de ciclos do céu de Kepler, na teologia geométrica de Galileu, na doutrina do eterno retorno de Nietzsche, na física de Einstein.

Influenciado pelos filósofos orientais, Pitágoras acreditava na transmigração e na reencarnação das almas. Ele julgava já ter vivido outras vidas, quer como animal quer como vegetal, e que o sentido da existência se encontrava no ciclo da natureza. Um ciclo que na Calábria faz todo o sentido, e se impõe ao espírito daqueles que nunca leram uma única linha de Nietzsche. Na Calábria, a natureza não tem hierarquia. Tudo possui uma alma. Podemos vê-lo ao olhar para os olhos de um animal. Podemos ouvi-lo através do som do carvão, que parece ter uma voz própria. Ou através dos abetos altos, dançando ao vento no topo do Monte Pollino, convocando-nos a todos para o seu lado. Ainda que nunca me tivesse sentido cativado por esta temática, ela impôs-se aos poucos. E eu rendi-me à força deste filme da mesma forma que alguém se renderia face à evidência de um enigma. O filme chegou até mim como um dom; não havia uma ideia pré-determinada.

Assim não me sinto o criador deste filme no sentido habitual. Fui apenas o intermediário entre matéria e forma num processo que pode ser comparado ao do Giuseppe Penone, um artista que esculpe formas de árvores na madeira, fazendo a vida e a forma emergirem do interior da matéria, que são os troncos que usa para esculpir. Para fazer isto é necessário renunciar à ideia de controlo.

O ASPECTO HUMANO
Evidentemente, envolvi os habitantes na realização do filme. O protagonista no primeiro episódio é um pastor. A partir daí, os humanos serão relegados para o segundo plano, até se camuflarem no cenário. Foi por isso que decidi ter os carvoeiros, que surgem no último episódio, vestidos com roupas da mesma cor da carvoaria. Nesse sentido, o único ser humano que realmente surge no filme é o velho pastor. E mesmo esta figura se mistura com aquilo que o rodeia. Os pastores são, muitas vezes, alvos das suspeitas dos habitantes nas aldeias. Em tempos antigos, eles não tinham direito a participar como testemunhas; eram considerados demasiado próximos do mundo animal para que as suas palavras fossem credíveis. A personagem do pastor no meu filme é uma figura solitária que segue o seu percurso e cruza repetidamente as portas da aldeia para mergulhar na natureza. O seu único contacto com a comunidade acontece apenas devido a uma crença que já foi muito comum na Calábria e que entretanto se perdeu: acreditava-se que a poeira das igrejas tinha propriedades terapêuticas.

Não só era administrada a pessoas e animais doentes, mas também para fertilização dos solos. Este velho pastor é uma das poucas pessoas que ainda acredita nos poderes mágicos da poeira. Abastece-se junto do responsável da igreja em troca de uma garrafa de leite. De noite, ele dissolve-a em água e bebe a solução como se fosse um medicamento. O mais interessante em relação a esta troca é o facto de estarem carregadas de secretismo e clandestinidade entre os dois. Tanto o pastor como o responsável da igreja sabem que este ritual pagão não é visto com bons olhos neste ambiente cristão.



TRANSMIGRAÇÃO
Uma noite, o pó “mágico” do velho pastor esgota-se e ela procura, em vão, obter mais. Regressa a casa desmotivado e desamparado e deita-se na sua cama. Na manhã seguinte, descobrimos que morreu durante o sono. A morte do pastor corresponde ao fim do primeiro episódio e dá início ao segundo. O seu rebanho reunira-se ao seu lado para o acompanhar no seu falecimento. O último ser vivo que o pastor vê antes de partir deste mundo é uma das suas cabras.

Assim, o segundo episódio começa com a transmigração desta alma. Na verdade, inicia-se com um nascimento, um acontecimento real e comovente que felizmente foi possível de filmar. O filme prossegue enquanto este animal, que ainda está a aprender a suster-se nas suas pernas, é deixado para trás pelo seu rebanho. Perde-se na floresta e procura abrigo numa árvore. O segundo episódio termina da mesma forma que o primeiro, através da transmigração. O abeto (uma espécie rara na Calábria) encontrado pelo cabrito será o protagonista deste terceiro episódio, que decorre ao mesmo tempo que as festas de “Pita”. O culto da árvore é outra tradição pagã que sobreviveu nesta comunidade cristã. Todos os anos, o padre de Alessandria del Carretto tenta assimilar esta tradição no ritual cristão, sem sucesso. No passado, era habitual içar cabras até ao topo da árvore e disparar contra elas até as matar. O sangue era pulverizado sobre todos os participantes deste intenso e colorido ritual de fertilidade. No final das festividades, a árvore é vendida aos carvoeiros de Serre, em quem reparamos no prólogo. O som é usado para evocar a sua presença ao longo do filme sob a forma de lembretes sonoros discretamente recorrentes.

A quarta e última parte tem início aqui. O tronco é cortado em cepos que são transportados para o local de trabalho dos carvoeiros. O seu trabalho será transformar este material vegetal em matéria mineral. O lento processo de mutação da forma e do estádio da matéria é, na minha opinião, um dos momentos mais intensos do filme. A história desta árvore parece ilustrar o conceito que está no cerne da escultura de Mario Merz: é o triunfo da matéria sobre o objecto, que não morre mas, pelo contrário, é continuamente transformado.

Estes quatro episódios não estão interrompidos por títulos na esperança de que a profunda unidade deste filme fale mais alto do que as suas partes. A sua unidade deve-se à presença de um protagonista invisível: um espírito que reside em todos estes quatro corpos materiais e que, passando de estado para estado e de esfera para esfera, cose todo o filme num só.

MISE-EN-SCÈNE
Um dos temas fundamentais deste filme é a relação entre personagem e cenário. Na nossa cultura, o homem está no centro do universo e todos os outros seres são relegados para segundo plano. Esse aspecto é mais evidente no cinema do que em qualquer outra arte. Na verdade, a sua linguagem técnica está completamente estruturada na presença da figura humana no plano. Um close-up é uma cara. Um close-up extremo filma os olhos, o nariz e a boca. Um plano americano enquadra um corpo acima dos joelhos. Mesmo um plano aberto é definido pela presença minúscula de um homem na paisagem. Tudo é definido pela sua presença. Estava interessado em encontrar uma relação mais equilibrada entre a figura humana e a vegetação, bem como com outros objectos e presenças. No início do primeiro episódio, o pastor está no centro enquanto os animais ocupam o segundo plano. A certa altura, o primeiro e o segundo planos fundem-se e os animais tornam-se os protagonistas. As passagens de um episódio para o seguinte são precedidos por momentos em que os seres, que anteriormente haviam sido relegados para segundo plano, começam a sobressair do cenário e a mover-se para o plano principal, quer sonora quer visualmente.

Tentei evitar que existissem personagens a entrar ou sair por fora do plano. Quis que eles aparecessem do c entro da imagem: o homem vai e vem entre portas, o cabrito surge do ventre da mãe, o pastor e o seu rebanho eclipsam-se por trás de uma colina. Gosto da ideia de o filme dar à luz as personagens, tal como no filme de 45 segundos dos irmãos Lumière, “A Saída dos Operários da Fábrica Lumière”. É uma forma de atenuar a separação entre exterior e interior, entre o que está ou não a ser filmado. Uma imagem prevalece acima das outras. Aparece repetidamente e prepara o filme para os momentos mais complexos do filme. É o plano da Porta de Santo António, a entrada secundária para a aldeia de Caulonia, que nos conduz até ao campo e que é usado principalmente pelos habitantes. Filmei-o apenas num take longo com uma distância focal muito curta, com uma lente de 16 mm. Isto tornou as panorâmicas complicadas por o movimento de rotação da câmara ultrapassou os 180º. Depois de inúmeros testes, demorámos dois dias para finalizar esta cena.


Nesta cena existe uma casa. Antes de ser coberta de cimento, era feita de rocha não polida, o mesmo material de que é feito a Porta. Como mais tarde descobrimos, esta é a casa do pastor, mas esse facto não é tão relevante quanto a sua localização: está na fronteira entre a aldeia e o campo envolvente. Tal como o pastor, pertence à comunidade mas ainda assim é-lhe alheio. Está demasiado próximo da localidade para os animais gostarem e demasiado marcado pela presença dos animais para estar integrado na comunidade.

SOM
O meu objectivo era usar a banda sonora para reforçar a ideia destas quatro vidas encaixando-se umas nas outras. Na fase de mistura, adicionei elementos sonoros para unir momentos diferentes do filme. Quis que o espectador tivesse a impressão de que o som por trás da imagem, tal como nas lições pitagóricas, onde o professor ensinava por trás de uma cortina. O som é o repositório do significado mais profundo do filme, dos seus segredos e de tudo aquilo que se esconde atrás do ecrã.

A TERRA
Calábria é um lugar maravilhoso. No entanto, é também marcado por fortes contradições. Este foi, algumas vezes, um tópico de discussão entre a equipa, uma equipa de profissionais com uma vasta experiência de trabalho em vários locais do mundo. Mais do que uma vez, após dias de filmagens nas colinas de Serre, ouvi-os comentar que nunca tinham visto paisagens tão belas. Filmar lá, por outro lado, pareceu-me muito natural. E isto deve-se, sem qualquer dúvida, ao meu passado pessoal; ainda que tenha nascido e sido criado em Milão, tenho origens calabresas. Mas essa não foi a única razão. No meu trabalho como cineasta e na minha pesquisa estética em geral, sou atraído para um certo tipo de imagem que chamo de “aporética”, que vem da palavra grega aporia, e que significa literalmente “impossível de atravessar”, e consequentemente, indicando dúvida. No trabalho de Tarkovsky, por exemplo, há espaços interiores onde chove, o que compromete a “interioridade” desses espaços. A Calábria é rica em locais aporéticos. Ao contrário de Milão, onde as fronteiras entre o que é público e privado estão sempre bem definidas, as portas da frente nas casas Calabresas estão sempre abertas. Podemos assim dizer que aqueles locais são osmóticos. Na verdade, não é invulgar que um pastor leve as suas cabras para o interior de sua casa para as ordenhar.

Algumas profissões que já desapareceram noutros locais continuam a sobreviver hoje em dia na Calábria, embora também já se encontrem em declínio. Os carvoeiros que filmei fazem parte da última geração a praticar este ofício ancestral.

AS QUATRO VOLTAS é, de alguma forma, a representação de uma terra que se divide nos limites entre o presente e o passado, entre crenças modernas e ancestrais, entre a aldeia e o campo. Os personagens deste filme são como que fantasmas cinemáticos, atravessando a ponte em direcção ao seu próprio desaparecimento. Estes limites são ao mesmo tempo tangíveis e metafísicos. A aldeia de Caulonia situa-se bem alto nas colinas e está circunscrita pelas suas muralhas. Os pastores vivem habitualmente nas proximidades das Portas junto das muralhas. Habitam no interior das muralhas, mas os seus animais são mantidos no exterior.

Mas os pastores são também considerados intermediários entre o domínio humano e o divino, pelo menos segundo a tradição literária. Segundo o Evangelho, foram os primeiros a saber do nascimento de Cristo.



INSPIRAÇÃO
AS QUATRO VOLTAS não faz qualquer referência directa a outros filmes. No entanto, a minha forma de realizar é habitualmente inspirada pelos maiores cineastas. O primeiro de que me lembro é o Béla Tarr; a presença de animais é crucial no seu cinema. Do meu ponto de vista, Damnation é a história de um homem que se transforma num cão. Também penso muito em Bresson e no seu “Peregrinação Exemplar” (Au hasard Balthazar”). Agradam-me estes cineastas cujo passado profissional não estava alicerçado na indústria cinematográfica. Admiro Michael Snow e o seu filme “La région centrale”. Outra influência é Samuel Beckett, que apenas escreveu um filme, uma curta-metragem intitulada “Film”, filmada por Alain Schneider em 1965. Ambos estes filmes propõem pontos de vista nos quais o Homem não é a figura central. Referi exemplos monumentais mas não desejo comparar-me a eles. O meu trabalho é de natureza artesanal. Não uso estes autores como referências intelectuais, mas recorro a eles para superar algumas dificuldades, tais como o obstáculo da página em branco – um tema tão pertinente na literatura como na arquitectura.

HABITAR A IMAGEM
Apaixonei-me pelas imagens e pelo desenho enquanto crescia. Sou licenciado em Arquitectura. Estas disciplinas convergiram em instalações vídeo, que requerem uma concepção simultânea dos espaços cinemáticos e arquitectónicos, e das imagens e do contexto arquitectural nas quais a imagem será vista. As instalações representam talvez as minhas primeiras meditações acerca da imagem e acerca daquilo que lhe permanece alheio. Dediquei me primeiramente a instalações interactivas, trabalhos nos quais a participação do espectador era essencial para a sua realização. A narração não existe se o espectador não tomar parte activamente e interagir com as imagens. O meu objectivo é transportar esta experiência para o cinema. AS QUATRO VOLTAS é um trabalho incompleto no sentido em que cada uma das suas partes está separada das outras por um vazio, um intervalo em que o espectador se tem de apressar a preencher usando a sua própria imaginação. Este espaço vazio é um convite e uma oportunidade para os espectadores assumirem responsabilidade criativa e fazerem parte da concretização do filme. A interpretação do público dá forma ao filme e tornam-no vivo.
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Declarações recolhidas por Eugenio Renzi




Título original: Le Quattro Volte
Argumento e Realização: Michelangelo Frammartino
Director de Fotografia: Andrea Locatelli
Montagem: Benni Atria, Maurizio Grillo
Som: Paolo Benvenutti, Simone Paolo Olivero
Interpretação: Giuseppe Fuda, Bruno Timpano, Nazareno Timpano
Origem: Itália/Alemanha/ Suiça
Ano: 2010
Duração: 88’
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