De Israel à Roménia, ama-se incondicionalmente um cadáver. 2ªf, IPJ, 21h30.

DIA 14
A VIAGEM DO DIRECTOR, Eran Riklis, França/Alemanha/Israel/Roménia, 2010, 103’, M/12

NOTA DE INTENÇÕES
Todos temos uma missão na vida. Caso não a tenhamos, então devemos empenhar-nos, o mais determinadamente possível, para encontrar uma. Suponho que a minha missão seja tentar destacar as vidas das pessoas, acompanhar as mudanças da sociedade, estudar as velhas e as novas tendências, lançar um olhar duro – porém apaixonado – sobre a mente e o coração dos homens, colocá-los frente a um espelho, apresentar escolhas novas ou alternativas às tradições estabelecidas e às mentes estáticas. A minha missão é fazer filmes. A missão do gestor de recursos humanos atrai-me, porque a vi como uma missão de descoberta – muito à semelhança do que é fazer um filme. Foi por esse motivo que quis fazer um filme sobre ele e a demanda obscura que lhe é imposta, mas que acaba por se transformar numa parte dele: a sua missão é, simultaneamente, pública e privada, emocional e física, uma espécie de incumbência dramática à esfera grega ou shakespeariana.

O filme é também sobre a descoberta e de como lidar com a morte ou, melhor ainda, sobre a exploração e revelação da vida através da morte – um conceito que considero fascinante, mágico e um verdadeiro desafio. Neste caso, a morte assume o rosto de uma mulher impressionante com um indecifrável sorriso de Mona Lisa – e quem é capaz de resistir a isso? Seguramente nem o director de recursos humanos, nem eu próprio… Assim, embarquei nesta viagem com ele e com ela e com todos os outros viajantes que fazem parte do enredo, ansiando que no final da jornada pudéssemos chegar a um humilde, porém significativo, pensamento sobre a condição humana nos dias de hoje, no passado e no futuro.
Eran Riklis


Enquanto assistia a este filme, três palavras não paravam de ecoar na minha mente. Não porque considere que “A Viagem do Director” não seja original, mas porque a premissa da história conduz a uma inevitável comparação com “Little Miss Sunshine” (Uma Família à Beira de Um Ataque de Nervos). No entanto, enquanto o último se foca essencialmente no amadurecimento de uma personagem, sob uma sucessão de ridículos cenários; o primeiro estabelece a inabalável perseverança de homem por entre camadas sobre camadas… e o quão longe está ele disposto a ir para “Ser um homem e fazer a coisa certa”.

A narrativa é de tal forma poderosa que não são necessários nomes. O Director de Recursos Humanos de uma proeminente padaria em Jerusalém dá por si a ser culpabilizado – pelo patrão e pela opinião pública – pela morte de uma funcionária durante um atentado bombista.

(…) O mais impressionante no filme não é o facto de o Director de Recursos Humanos ser capaz de tomar a atitude certa e honrada. Se não o fizesse não existiria história, nem comédia no filme. O que é perturbador é o facto de todos terem sido tão negligentes até ao momento da morte desta mulher. Só depois da tragédia é que começam a tentar corrigir as suas acções – até completos desconhecidos, como o Director de Recursos Humanos, estão dispostos a chegar a situações extremas para evitar o sentimento de culpa. A filha do Director chega, inclusivamente, a perguntar-lhe: “Como é possível que não soubesses que uma das funcionárias da tua empresa morreu?”. Será possível imaginar o que aconteceria se ela se preocupasse o suficiente para perguntar: “Como é possível que não soubesses que uma das tuas funcionárias estava a morrer à fome?”. É esta a grande ironia no filme, uma ironia reflectida no facto de a única personagem referida pelo nome ao longo de todo o filme ser a vítima. Mais ninguém importa realmente. Há uma cena em que o filho da mulher tenta, desesperadamente, lidar com a perda e o Director de Recursos Humanos tenta reconfortá-lo. O jovem reage violentamente levando a que Director proteste: “Estou farto de todos vocês”. É esta a frase chave do filme. O Director de Recursos Humanos assiste ao que as pessoas (incluindo ele próprio) fazem e sente-se atormentado com isso.

O filme é um retrato áspero, sem recurso a artifícios de Hollywood.
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Toronto International Film Festival Review



No princípio de "A Viagem do Director" há uma padaria em Jerusalém, o seu diretor de recursos humanos e um problema de que não percebemos bem os contornos. Há que identificar uma pessoa a partir de um fragmento da ficha de vencimentos, depois descobrimos que é uma mulher e que foi despedida há mais de um mês sem que o diretor fosse informado. Sabemos a seguir que ela morreu - e há um escândalo público para rebentar num jornal. Vítima de um atentado suicida, o corpo está na morgue sem que ninguém tenha comunicado o seu desaparecimento. A padaria é acusada de desumanidade (uma trabalhadora desaparecida e a empresa não fez nada para saber o que ocorrera) - e o espectador português começa a interrogar uma realidade que lhe é exótica, mas cujos sinais permitem leitura, como quem tece, fio a fio, uma trama. É a primeira coisa notável deste filme israelita, a opção de nada nos dizer de forma direta, de se construir como uma sucessão de, não exatamente enigmas, descobertas que temos de fazer. Um argumento astucioso para um filme em surdina - tanto que, durante um bom par de tempo, a mulher, emigrante, ou mesmo a própria padaria, nos aparecem como possivelmente envolvidas em algo mais obscuro do que uma simples omissão de documentos que uma história de amor clandestino, às tantas, atrapalhadamente justifica.

Vamos, todavia, verificando um desenho social para uma sociedade em risco permanente que faz com que a teia que liga as pessoas umas às outras seja invulgarmente firme e as repercussões que uma falha nessa teia pode ter: a dona da padaria - a Viúva - não cessa de se preocupar quanto ao abandono de clientes. E determina que o diretor de recursos humanos acompanhe o caixão com o corpo da trabalhadora até à sua família no país de origem. E ele vai.


O filme transfere-se, então, para a Roménia, onde o protagonista se vai defrontar com sucessivos problemas, sempre de 'caixão às costas', a começar por encontrar um familiar adulto que possa legalmente assinar a receção do féretro. O tom aproxima-se da comédia negra, mas o que sobreleva no filme não é o fio dos acontecimentos que, todavia, diga-se já, vai desembocar numa conclusão inusitada.

O que destaca "A Viagem do Director" é a atenção realista, os detalhes, as significações que o espectador pode ler a partir de pormenores, tudo subtil, nada gritado. Já em Jerusalém assim era (atente-se na deambulação à procura da casa da funcionária falecida, nos particulares do seu interior ou na conversa com uma religiosa que nos faz perceber que a morta não era judia), mas, no espaço exógeno da Roménia, essa preocupação acentua-se. Exemplo: breve sucessão de planos da carrinha com o caixão, estrada fora; aqui um grupo de camponesas benze-se, de lenço e escuro vestidas, a seguir duas jovens de jeans caminham à beira da estrada, logo passa uma carroça de tração animal, depois um BMW topo de gama. Um esquisso social simples - e tudo quase impercetivelmente, contando com a atenção do olhar do espectador e não apenas com a sua vontade de saber o que acontece a seguir àquele homem encarregado de uma missão que não desejou e que só quer voltar a casa a tempo de cumprir a promessa de ir com a filha a um passeio de escola. Voto importante, a vida familiar está em estilhaços, parece que ele nunca cumpre o que promete...

"A Viagem do Director" é um filme tragicamente divertido. E possibilita vislumbrar um pouco de uma cinematografia - a israelita - de que a maior parte das pessoas conhece nada.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso



Título Original: The Human Resources Manager
Realização: Eran Riklis
Argumento: Noah Stollman (a partir do romance de A.B. Yehoshua)
Imagem: Rainer Klausmann
Montagem: Tova Ascher
Banda Sonora: Cyril Morin
Interpretação: Mark Ivanir, Guri Alfi, Noah Silver, Rozina Cambos, Julian Negulesco, Bogdan Stanoevitch
Origem: França/Alemanha/Israel/Roménia
Ano: 2010
Duração: 103’

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