«Um filme de passagem», Canijo dixit. Kitsch, carne, Bustorff. E chega.

4ªf, Sede, 21h30, Entrada livre

SAPATOS PRETOS, João Canijo, Portugal, 1998, 97’


PRÉMIOS
Globos de Ouro, Portugal (1999) – Melhor Actriz (Ana Bustorff)

Há dias em que o céu é de cinzas, mas não neste Alentejo de João Canijo, onde uns olhos femininos «atropelam as almas», seja a do protagonista seja a do desprevenido espectador, e breve torna indistintos os planos do que está «em cima» e do que está «em baixo».

Sapatos Pretos reenvia-me para um outro filme que também se abismava em todas as violências de que são receptáculo as almas quando empreendem a meio caminho uma mudança que as toma uma fonte de querer e desejo inescapáveis e que usava de forma semelhante a cor como o reflector emocional capaz de confundir todos os liames entre céu e terra: chamava-se Querelle (Rainer Werner Fassbinder, 1982). Porque aquilo que primeiro atinge o espectador nesta terceira longa-metragem do autor de Filha da Mãe é o modo como aquele Alentejo de securas insolúveis, esbraseado por mil anos de esperas e pelo mutismo do mar, ganha uma exaltação barroca na paleta do olhar de João Canijo. Como se alguém raspasse com a unha uma fotografia de tons sépia e as cores voltassem num feixe a ser o que o eram: intensas, de uma luminosidade tão contagiante que perturba o próprio contorno das coisas. «Heat» podia ser outro nome para este filme onde tudo transpira «para cima» do corpo alheio até as suas propriedades estarem misturadas. Mesmo no feroz jogo dos contrastes cromáticos as cores sangram, reverberam umas sobre as outras.

Sapatos Pretos parte de um «fait-divers» (a mulher do ourives ambulante, cumpliciada com o amante, mata o marido abalando a pacatez alentejana) e rabia numa deriva que desliza o melodrama (o permanente conflito conjugal) para o «road movie», o «thriller», não se esquecendo de namorar o «western-spaghetti» (como bem assinalou Vasco Câmara, no «Público»): de facto, ironicamente, a chave deste filme está na deambulação que caracterizava o malogrado marido.

O ouro muda em prata, o cancro muda em operação estética, o emigrante «fixa-se» numa paixão funesta; os sapatos pretos, indícios do crime, transfiguram-se em arma de desejo; a alavanca das mudanças converte-se nos dois canos de caçadeira que servirá para o assassínio; e mesmo a paisagem vaza-se por inteiro nos olhos de Dali¬Ia, quando, nos espantosos grandes planos no retrovisor, o fundo é uma consequência do seu olhar. Nada é o que parece e por isso o fetichismo é uma das portas para se entrar neste filme. Mesmo os grandes planos das nádegas de Dalila representam algo maior: a sua chocante realidade material desenha a aura onde se convoca toda a carne do mundo, o irreparável efeito da sua desmesura e embriaguês sobre a fraca vontade dos homens. Mais uma vez se plasma aqui o que está,«em baixo» com o que está «em cima».

E evidentemente um filme não naturalista, que tangencia a realidade para se projectar numa abstracção crescente, com a sua linguagem, regras e leis próprias. Quem for à procura de fiabilidades e referências engana-se, como se enganavam os que no Camilo Castelo Branco buscavam uma ancoragem sociológica. Basta atentar no modo como a beleza cromática que «esmalta» o filme está ao serviço de uma «sujidade» crescente dos personagens ou como, pelo contrário, numa das melhores cenas do filme - a «nega» de Femando Luís ao seu irmão Pompeu - um assomo de claridade e nobreza nasce no meio de um cenário escavacado e sujo. Ou reparar no balanceamento rítmico dos nomes: Mar-co-lino, Da-li-la, Pom-peu.

Em Sapatos Pretos buscam-se os movimentos das almas e a sua estranha, imparável marcha quando algo as põe em movimento. Neste sentido, os únicos planos realistas do filme são os da operação que, afinal, encenam outra mentira de Dalila. Porque o que «está dentro» é o que «está fora» e todos os cenários - os da cidade velha ou das condutas de gás que cercam a urbe – são outros modos de nomear a moradia dos corpos, o seu eminente enlouquecimento, a irrealidade desse grão de voz onde o desejo se deixa apanhar («Eu não sou uma mulher fria, senhor tenente Pinto»). Um filme que não se esgota na sua evidente comunicabilidade e que apesar de às vezes parecer desenhado a traço grosso nunca se deixa ver em sombra chinesa, superando em muito todas as promessas que os anteriores filmes de Canijo prefiguravam.
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António Cabrita, Expresso, 10/4/98


ENTREVISTA AO REALIZADOR

Confirma-se um olhar invulgar - um cinema impuro; Canijo, hipótese de cineasta-pop - que já se evidenciava em filmes, hoje injustamente subvalorizados, como "Três Menos Eu" e "Filha da Mãe".

O que é que procurou nesta história verídica passada em Reguengos...
Procurei a mulher... a situação limite da mulher e o excesso da solução que ela encontrou. Percebia-se logo, nas notícias dos jornais, pela idade dela, pela transformação que ela tinha feito a si própria - de pacata senhora a mulher fatal -, que havia uma situação limite. A vida estava-lhe a fugir, era uma mulher na mudança de idade.

A pesquisa serviu-me fundamentalmente para conhecer as pessoas, para ter uma base sólida, real, para as situar, para saber até que ponto elas existiam assim. No fundo, essa mulher é um paradigma daquela coisa do Aristóteles: é mais estranha do que a realidade. A partir daí, o resto não me interessou. Adaptei a intriga, e a partir daquela senhora criei outra que não tem nada a ver com ela.

Tem consciência de que, tratando-se de pessoas "reais", se o que aparece no ecrã não tem nada a ver com elas, isso não impedirá um choque no confronto com as imagens? Sendo a história deles, não é a história deles...
Não me interessava fazer "Casos da Vida" da TVI. Nesse sentido, o filme tem tanto a ver com a história deles como é a versão portuguesa de "O Carteiro Toca sempre Duas Vezes".

Porquê Sines?
Se fosse para Reguengos ou para uma vila qualquer do interior do Alentejo, tinha forço¬samente que caracterizar o lugar. Tinha de perder tempo de ficção, espaço e energias. Escolhendo um lugar anónimo, suburbano embora não o sendo - Sines - não perdi tempo nenhum.

É um espaço abstracto...
Tanto pode ser Sines como a Rinchoa. Não mostro sequer o lugar. Mostro as luzes, vagamente.

A personagem principal dos seus filmes ¬"Três Menos Eu" (1988), "Filha da Mãe" (1990), "Sapatos Pretos" - é sempre uma mulher em turbulência. Rita Blanco nos dois anteriores, Ana Bustorff neste. Será uma casualidade...
...não é casual.


...se parecer a mesma mulher em progressão?
Absolutamente. Nos dois primeiros filmes, a personagem da Rita é a mesma; num caso mais abstracto, mais adolescente - até porque eu era mais adolescente; no outro, "Filha da Mãe", a Rita está muito bem, o filme é que é falhado. Houve excesso de confiança, muita parvoíce infantil. Aquilo era demasiado ambicioso, era a adaptação da "Electra", houve coisas que achei que podia dominar. A ideia era começar como comédia e acabar em tragédia e ficou uma salgalhada. Mas a partir daí as coisas para mim partem sempre das tragédias gregas - "Sapatos Pretos" não, mas o próximo sim. E mesmo que não parta, quando estou a escrever um argumento, estou sempre a relê-las. Nunca li a Bíblia, mas já li várias vezes todas as tragédias e histórias da mitologia grega.
Funciono muito em função das mulheres. A Rita era a musa inspiradora...

Nunca mais ninguém olhou para ela dessa maneira.
Também nunca mais tive alguém como a Rita. Era evidente que a Rita não poderia fazer a personagem de "Sapatos Pretos", portanto a Ana é uma substituição da Rita. E é – não querendo pessoalizar - a transposição da minha vida sentimental pós-Rita. O cinema não pode ser outra coisa, acho eu.

"Sapatos Pretos" acentua, em cores saturadas, algo que já vinha de trás: um olhar negro sobre a conjugalidade e a família. Depois da operação ao peito de Dalila [Ana Bustorff], o cancro parece invadir a casa, como se estivesse figurado através de um candeeiro.
Se calhar esse é o problema que me interessa. "Três Menos Eu" já era a história de uma menina que tentava libertar-se da família. A partir daí centrei-me, de facto, na conjugalidade. São as relações potencialmente mais violentas que alguém pode ter. Os filhos estão fora disso, os filhos tornam tudo o resto relativo, porque com eles não há problemas de posse e de fidelidade.

Filmou “Sapatos Pretos” em vídeo. Numa cena de “Três Menos Eu”, aparecia Paulo Rocha a falar do vídeo:” Qualquer coisa nova que não sabemos onde é que vai levar”...
Não é premonitório, é um “private joke”.

Sim, mas no filme seguinte, “Filha da Mãe”, a relação entre Rita Blanco e José Wilker evoluía tendo a pintura como cenário – o trabalho sobre a cor é uma constante; é um cineasta pop? Agora em “Sapatos Pretos” junta as duas coisas: pinta com o vídeo.
Eu não quero fazer a preto e branco, e para fazer a cores só posso fazer mesmo a cores. Não é para ser natural.

Comecei a experimentar com vídeo quando comecei a trabalhar para televisão e em algumas coisas pude fazer o que me apeteceu sem responsabilidade nenhuma. Fiz coisas que nunca me atreveria a fazer. Antes, tinha a mania que a câmara não se podia mexer, só se podia mexer à Jobn Ford, com uma justificação forte. Agora as coisas não são tão rígidas. Para o próximo filme, sei que a câmara vai mexer dramaticamente - ou seja, não arbitrariamente -, mas vou escrever as cenas de modo a que ela não pare. O cinema tende para a abstracção, não há outra maneira de o fazer. E um filme tende a ser fragmentos de uma ficção. O Pedro Costa dizia que lhe interessa mais o que está entre os planos, o que não se vê, do que o que está nos planos. Concordo absolutamente - e os meus filmes não têm nada a ver com os do Pedro Costa -, e há duas maneiras de chegar a esses fragmentos: através daqueles murros terríveis do Costa que deixam o espectador de pantanas, que depois tem tempo para recuperar e levar o seguinte quando menos espera; e através do "kickboxing": não dar ao espectador tempo para nada.


É o que quis fazer com "Sapatos Pretos''?
É o que fazem o Cassavetes em "A Morte de Um Apostador Chinês" e o Wong Karwai. É aí que quero chegar, "Sapatos Pretos" ainda é um esboço. A câmara à mão foi uma defesa para tentar fazer uma coisa que não tinha a certeza de ser capaz de fazer. Porque com a câmara à mão eu sabia que existiria sempre pulsão.

Como é que aparece o vídeo?
Em termos de ficção televisiva, fiz o equivalente a 12 longas-metragens em vídeo, o que é muito. Por contingências de produção de "Sapatos Pretos", o Paulo Branco [produtor] propôs-me que filmasse em vídeo, já que conhecia os dinamarqueses da Zentropa [empresa de Lars Von Trier], e que depois se passava para 35 mm. A minha primeira reacção foi: "Não." Quinze segundos depois, foi: "Sim." Antes disso, eu sabia que queria fazer câmara à mão, queria fazer sujo. O vídeo era isso mesmo e houve uma altura em que eu queria que se vissem o grão e as linhas. Com o conhecimento do processo técnico, percebemos que se fizéssemos as coisas de forma normal quase não se notaria que era vídeo; sem o contraste e a saturação das cores ao limite, não se notaria nunca que era vídeo. Como testámos e verificámos que a passagem a película aguentava tudo o que quiséssemos - que, por exemplo, e ao contrário dos nossos receios, o preto não ficava cinzento -, a partir de então já não era necessário evidenciar o grão e as linhas, a cor podia explodir por todos os lados.

Este filme é vídeo, é cinema e é teatro - "Filha da Mãe" era teatro. O período de oito anos que se seguiu à sua anterior longa-metragem, e em que encenou peças com regularidade, não foi então apenas uma procura de alternativas à impossibilidade de filmar. O teatro está, afinal, no centro do seu cinema.
Dizem que as peças que faço são cinematográficas. O que me interessa numa coisa e noutra são as relações entre as personagens, que para mim passam pela marcação, pela "mise-en-scene". Sempre foi a marcação que levou a câmara; e sempre foi a marcação no palco que estabeleceu as relações de olhares entre os actores e entre espectadores e palco. E sempre procurei criar marcações que fossem dramáticas à partida; actores pouco precisavam de fazer, bastavam existir, para a relações entre eles serem muito fortes.

A teatralidade dos seus filmes passa também pela exibição do artifício da cenografia, dos figurinos, como propostas de cenários.
Isso é mais forte nos filmes do que no teatro. No teatro não existe. No teatro, os "décors" são completamente normais. São bons ou maus - gosto muito, por exemplo, do cenário de "Jogos de Praia" (1987) e de "Confissão ao Luar", de Eugene O'Neill (1995), a coisa melhor que fiz até este filme e que ninguém viu.

O seu cinema é impuro, mistura naturezas diferentes. Não se distingue o erudito do popular. Fala em tragédia grega, fala em Aristóteles, mas em "Sapatos Pretos" o que está é a televisão e a música "pimba".
Nada tem que aparecer como referência. Sempre me preocupou a concretização das personagens e do seu ambiente - e nisso ajuda-me muito o Pierre Hodgson, que é inglês, que escreveu comigo "Sapatos Pretos" e "O Curioso Impertinente", um excelente argumento que nunca foi feito, no qual perdemos três anos de vida e de paixão. E é o que gosto nos filmes americanos: em três pinceladas está a situação dada e estão as personagens caracterizadas. A partir do momento em que se tem a situação concreta, entendível pode-se brincar, tornar o concreto abstracto.

Um filme como gesto, traço, intuitivo.
Para poder ser abstracto e transmitir pulsões, tem que haver uma base muito concreta, senão fica tudo no ar, deixa de haver sensações. Podia fazer a cena do baile em "Sapatos Pretos" com os Xutos e Pontapés a tocar, ou com os Madredeus, ou com o Pedro Abrunhosa. Seria verdade alguma vez? Não, e obrigava-me a ser artista. Eu não quero ser artista. Não estou a fazer arte, estou a fazer um filme, algo que, como uma canção, transmite emoções imediatas; depois pode transmitir outras coisas, mas essas não tenho que as mostrar à evidência. O que tenho de mostrar à evidência são as sensações. Na tragédia grega, está lá tudo em bruto. É por isso que recorro à tragédia grega. Para não me enganar. As histórias foram todas contadas lá. Depois houve um senhor que contou as que faltavam, o Shakespeare. O resto é repetição.


Há um turbilhão apocalíptico em "Sapatos Pretos"; os ecrãs de televisão, a música...
Era essa a ideia... A televisão e as imagens interessam-me muito porque vivemos dominados por elas. Será horrível mas é assim. Os filmes de época têm uma lareira; agora temos a televisão. Em relação à música, sou surdo. Mas ao mesmo tempo escrevo com canções, com música. E oiço as coisas mais estranhas, desde que tenham uma pulsão, um batimento, que não me distraia muito. Com o Alexandre [Soares, autor da música do filme], foi um entendimento à primeira vista: eu sabia o que é que queria, mas não sabia como explicar. E ele explicou-me: não se pontua dramaticamente cada momento; mantém-se uma tensão permanente por baixo.

Como é que essa pulsão - musical - trabalha os diálogos e as vozes dos actores? Ana Bustorff mantém uma distância em relação à personagem, como se estivesse a vê-la.
Isso vem do treino do teatro: a relação do texto com o actor que o vai dizer. Um diálogo não pode ser naturalista; tem de ser elaborado literariamente parecendo que é naturalista. Portanto, funciona por rimas e por imagens. Tento sempre defender a interpretação dando diálogos muito estruturados. Depois, depende do actor. Não quer dizer que o siga vírgula a vírgula. Se trocar tudo, mas disser aquilo que quero, ou se a rima dele é melhor, tudo bem. O Vítor Norte, por exemplo, nunca diz o que foi escrito; nunca se sabe o que é que ele vai dizer. Mesmo quando os diálogos são escritos com ele - geralmente no cinema os ensaios são leituras em que troco diálogo com cada um dos actores.

Escreveu a pensar em Ana Bustorff?
A última versão sim. É uma mulher grande e forte, um excesso. Entrega-se de forma alucinada. Se a Rita Blanco é um Paganini, uma cantora de "lied" virtuosíssima, de "lieder" delicados - podendo chegar aos agudos e à histeria - a Ana é uma diva da ópera, daquelas óperas pesadas do Wagner. Só pode cantar coisas extremas, nunca é subtil, é sempre excessiva.

A Dalila é uma mulher na mudança de idade, está a perder a juventude, mas ainda é uma mulher apetitosa Numa história destas, em que se transcende o abstracto para o hiper-realismo e onde o tema central é o sexo, o sexo só podia ser cru e duro. O único cuidado que tive foi nunca fazer estético, plástico. Tudo menos o "Crash" [David Cronenberg], em que havia estátuas, pinturas, estava tudo composto. Quis ao contrário, horrível, sujo, cru.

No seu primeiro filme, via-se um cartaz de 'Francisca" ...
Isso era uma homenagem ao senhor Manoel de Oliveira.

Como em relação ao trabalho com materiais díspares, a cinefilia parece ser mais uma pulsão interior, menos uma consciência.
Completamente. Mas devo dizer que só com este filme é que me livrei da sombra do senhor Manoel de Oliveira. Tinha exigências para mim próprio sobre o rigor do enquadramento e o rigor das posições dentro do enquadramento que eram estudadas até ao milímetro – ficou-me da experiência de rodagem com o Oliveira, sobretudo "Soulier de Satin". Agora estou-me um bocado a borrifar.

A minha grande formação foram Oliveira e Wim Wenders. Com Wenders, era o improviso. No "Estado das Coisas", ele tinha três ou quatro linhas, a partir dela uma ideia de plano e depois metia os actores dentro do plano. Oliveira é o contrário: está tudo super definido desde o princípio e não há o mínimo de improviso. Mas a direcção de olhares que o senhor Oliveira marcava era fundamental para a cena existir. Era extremamente rigorosa - chegavam a ser espetados preguinhos na parede - e fazia com que houvesse uma separação entre o texto e o corpo do actor. As coisas assim ganham outra dimensão.

A cinefilia... esqueço-me muito dos filmes, mas ficam cá as coisas. Vi tudo do Ford e do Renoir. Depois esqueci. Agora não tenho paciência para os filmes americanos normais. Ainda vou ver quando metem porrada. E vou ver coisas que me cheiram. Cheirava-me que ia gostar do [Takeshi] Kitano ["Fogo-de-Artificio"], não tinha visto nada dele e neste momento é uma das minhas referências. Tem a ver com uma coisa que me interessa muito: a violência - o Wong Kar-wai também passa por aí. E um murro violentíssimo e depois pára, e depois há outro mu¬ro. Fascina-me a pureza daquela sobriedade. Cinefilia... conheço tudo, mas não quero andar a mostrar que conheço.

Fala em projectos... o seu primeiro filme estreou-se em 1988, dois anos depois a sua carreira parecia estar acabada. Oito anos depois voltou.
São oito anos muito bem contados.

Tem consciência de que há uma geração de espectadores em Portugal para quem João Canijo é nome sem obra? Os seus filmes não são visíveis - não estão na mostra de Cinema Português Contemporâneo a decorrer em Lisboa, por exempIo - e raramente há discurso sobre eles em textos sobre cinema português.
E eu que já existi internacionalmente...

O que é que aconteceu?
A culpa é minha. Juntou-se a fome à vontade de comer: João Canijo e Rita Blanco, um casal que se tornou insuportável para toda a gente. Éramos arrogantes, tínhamos a mania que dominávamos o mundo, não dávamos uma entrevista a sério, só dizíamos parvoíces. Criámos uma imagem antipática.

Isso explica a ausência?
São anos que correspondem também ao consulado Santana Lopes [como secretário de Estado da Cultura] e Zita Seabra [como presidente do IPACA]. Eu era mais fácil de eliminar do que os outros. A Zita Seabra achou que eu era reeducável e quis mandar-me para a América estudar argumento.


Não terá a ver também com o facto de o seu cinema cruzar de forma oblíqua...
Marginal.

Não tanto marginal, porque não corre ao lado. Cruza, não se misturando, não se fixando.
Não tenho família de cineastas portugueses. Reconheço-me no Costa - "Ossos" é absolutamente extraordinário – e não tenho nada a ver com o Costa; como na altura de "Três Menos Eu" me reconhecia no "Bobo" [José Álvaro Morais]; e como me reconheço na "Comédia de Deus" [João César Monteiro]. No quadro "As Meninas" do Velásquez, aparece um gajo ao fundo, na porta; se ele estivesse a gritar cá para dentro um grande palavrão, essa seria a imagem do cinema que eu gostaria de fazer: exigência de rigor formal – a sombra do senhor Oliveira -, mas dentro disso algo de dramaticamente chocante, vivo, para lhe dar outra dimensão.

Que projecto é "O Curioso Impertinente"?
É um projecto caríssimo, custa à volta de 500 mil contos. É a adaptação de uma novela do Cervantes que está no "D. Quixote", é a história de um senhor que quer ter a certeza do amor. É um pequeno D. Juan que se apaixona todos os dias, é uma necessidade que ele tem, mas um dia apaixona-se de maneira diferente e casa. E diz ao amigo que tem a certeza de que poderia amar muito mais se tivesse a certeza do amor da mulher e não tem porque o amor dela nunca foi posto à prova. Ele quer ter a certeza daquilo que é impossível ter: a certeza do amor. Passa-se no Porto, a única cidade que conheço em Portugal onde esses sentimentos podem existir. É uma cidade que nem é província nem é cidade. Todos os meus amigos do Porto são muito mais excessivos, nos gostos e nos ódios. Dizemos tudo da boca para fora; somos facilmente odiáveis. E sempre muito apaixonados.

"Sapatos Pretos" é a hipótese de renascimento?
Ainda está para se ver. Sei que é o melhor filme que fiz, não sei se isso será reconhecido e se posso dizer que a minha carreira recomeçou. Tenho muito medo que isso não seja verdade.

Próximo projecto...
Agora sei o que quero fazer em cinema. Por isso não posso fazer já o "Curioso Impertinente", não é uma história que entre na maneira como quero fazer filmes agora. É uma coisa para daqui a dez anos, e vou fazê-la porque é completamente autobiográfica: nasceu quando descobri que a personagem do Cervantes era eu. Mas agora quero pegar no que fiz em "Sapatos Pretos", tirar-lhe a câmara à mão e fazer uma coisa ainda mais violenta, mais fragmentada, que não pare e que se mantenha sempre lá em cima. Sem respiração. É a história de uma senhora, 35, 36 anos, emigrante em França há 20, que trabalha numa daquelas empresas que limpam escritórios; já é chefe de brigada, animadora da comunidade emigrante. Tem uma vida aparentemente feliz com o marido, taxista. De repente aparece uma paixão funesta, ela cai em desgraça e descobre na desgraça que a vida real é aquela e não a outra. E no fim, como a paixão funesta tem uma culpa, ela sacrifica-se para pagar a culpa dele. Implica um trabalho de investigação da vida dos emigrantes, um trabalho muito concreto para aquelas pessoas poderem existir e eu não ter que as mostrar tanto. É por isso que gosto tanto de "Ossos": mostrando imensamente aquelas pessoas, o Costa não as mostra.

Qual é o olhar que têm sobre si os seus colegas cineastas?
Sempre achei que era benevolente no mau sentido.
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Vasco Câmara, Público, 10/4/98




Realização: João Canijo
Argumento: João Canijo e Pierre Hodgson
Fotografia: Mário Castanheira
Montagem: Rudolfo Wedeles
Música: Alexandre Soares
Interpretação: Ana Bustorff, Vítor Norte, João Reis, Teresa Madruga, Adriano Luz, Márcia Breia, Fernando Luís
Origem: Portugal
Ano: 1998
Duração: 97’

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