pré ou anti-western, O ATALHO é pioneiro - primeiro olhar de uma mulher sobre a conquista do Oeste americano. Um olhar único.

BASEADO EM VIDAS REAIS

2ªf, 19 Set, 21h30, IPJ. Sócios 2€, Estudantes 3,5€, Restantes 4€


Mais uma vez, a realizadora Kelly Reichardt, já muito consagrada nos meios "indies" e seleccionada em importantes festivais internacionais, filma personagens errantes e passos em volta. Mas que, ao contrário das figuras de Tchecov, em estado de permanente e letárgica insatisfação, estas querem chegar a algum lado. Em Lucy &Wendy (um filme absolutamente encantador de 2008), uma rapariga (Michelle Williams), na companhia da sua cadela, "nomadiza" também pelo estado de Oregon à procura de um modo de subsistência. Em Old Joy (2006) dois amigos deambulam por umas montanhas à procura de um passado. O Atalho é outro on the road minimalista, nos tempos em que elas, as estradas, ainda estavam por trilhar. E estes primeiros colonos, e suas parelhas de bois, um burro e um canário também andam numa busca: a da terra prometida do Oeste. E a tenacidade e o tédio caminham lado a lado, os homens com a cara ensombrada pelas barbas, pelos chapéus, pela sede e pelo desespero. As mulheres, também pela sede e desespero e por aqueles gorros à Sarah Kay, que Hollywood tratou de remover da cabeça das suas estrelas para não estragar o visual nem o penteado nem o efeito da luminosidade nas caras. Todo o filme é visto na perspectiva feminina, na forma como elas escutam de longe as decisões dos homens sobre se devem ou não enforcar o guia, ou como tricotam afanosamente, e fazem pão, moem café, apanham gravetos para fogueiras e caminham, sobretudo caminham, com aquelas cabeças encafuadas nos chapéus de abas laterais que apenas a faz olhar em frente, obstinadamente em frente, como as palas nos cavalos, sem se deterem distracções contemplativas.

Não se espere nenhum heroísmo à John Wayne, nem os arrebatadores desfiladeiros de Monument Valley à Ford, nem duelos, nem escalpes arrancados, nem o Red River Valley cantado à volta da fogueira, nem caras sorridentes, já devidamente maquilhadas, que apareciam entre a lona das caravanas dos colonos. Aliás, em nenhum outro western é focado com tanta honestidade estes carroças precárias, encurvadas e tumulares, como botes de terra, de onde se vai largando o peso e os objectos, o relógio da mãe, a cadeira de baloiço, para aliviar o peso, em caso de naufrágio. Carregam fervor messiânico, bíblias e uma gaiola com um canário que, volta e meia, pia. Era isto que parece interessar mais a realizadora, o quotidiano. E o vento, e a sede, e as lagoas, alcalinas, e a roupa que se estende nos arbustos e o silêncio. Aliás, a primeira palavra, já vai o filme adiantado, nem é falada mas escrita, gravada num pedaço de madeira: "Perdidos". Apenas isto: sem barulhos nem adornos.
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Ana Margarida de Carvalho, Visão



A americana Kelly Reichardt assina um dos grandes filmes (americanos e não só) dos últimos tempos - e não, isto não é um western.

Convirá começar pelo aviso da praxe: por muito que "O Atalho" se inspire num "fait-divers" verídico da conquista do Oeste e traga todos os "sinais exteriores" de um western, que não se vá ver o novo filme da realizadora Kelly Reichardt ("Wendy e Lucy") como um western. Nem sequer como um western revisionista, porque o trabalho de Reichardt e do seu argumentista e habitual colaborador Jon Raymond reside mais dentro das convenções do "road movie". E lembramo-nos daquele célebre slogan com que o "Easy Rider" de Dennis Hopper e Peter Fonda foi lançado: "um homem foi em busca da América e não a encontrou em lado nenhum".

"O Atalho" é, de certo modo, isso: a história de uma busca da América num local onde ela ainda não existe. Estamos em 1865 e três casais religiosos e o seu guia fanfarrão separam-se da caravana principal em direcção ao estado do Oregon, mas dão por si perdidos e com a água a escassear. Reichardt pode filmar estas paisagens áridas e desoladas como Ford filmou o Monument Valley (no velho formato "quadrado" conhecido como "Academy ratio", em 1:1.33), mas tudo pára aí.

A identificação com o western desaparece aos poucos para dar lugar a um drama de câmara, um pequeno grupo entregue a si mesmo, uma história de sobrevivência. Tudo é contado numa espécie de animação suspensa: faz sentido, estamos no meio do nada, do desconhecido, num sítio que já não é a civilização e ainda não é a terra prometida. É um limbo, um purgatório onde a palavra-chave é comunidade mas onde a pequena comunidade, dividida entre homens e mulheres de acordo com os mandamentos bíblicos, se começa a fracturar.


Kelly Reichardt sempre olhou para a comunidade como foco ou núcleo da América, antiga ou moderna, e em "O Atalho" ela não hesita em confrontar-se com a dimensão mítica dessa América e dessa comunidade. Fá-lo de um modo simultaneamente celebratório e desarmante: a fé quase cega dos pioneiros que se atiraram ao desconhecido, o medo e a incompreensão que surgem quando o desconhecido ameaça subjugá-los. Se a Wendy de "Wendy e Lucy", por exemplo, era "o outro" perdido "fora da passadeira" de uma América fechada sobre si mesma, "O Atalho" regressa aos primórdios dessa comunidade e do modo como ela se define precisamente em função do "outro" - um guia que está longe de justificar a confiança, um índio que eles não compreendem - e do modo como a sobrevivência implica escolhas morais que não são minimamente lineares nem respondem a quaisquer escrituras ou preceitos.
Filmando de modo difuso, atmosférico, evocativo, com um olhar ao mesmo tempo alienígena e fascinado, Reichardt constrói o seu filme por texturas em vez de estruturas narrativas. Isso vai assustar todos aqueles para quem a "lentidão" ou a ausência de acção são uma falha, todos aqueles que não compreendem como a utilização judiciosa do silêncio e do espaço é o que dá força e energia a este cinema certamente exigente mas resolutamente atento. E quando damos por nós estamos no meio de uma meditação oblíqua sobre a comunidade, sobre o medo, a incompreensão, o outro, feita à medida dos nossos dias, confirmando como Reichardt e Raymond pensam na América (e pensam a América) para lá dos sonhos e das imagens, num trabalho de desconstrução e desmontagem que remonta à fonte desse país que o cinema ajudou a construir. Encontram-na? Cabe a cada espectador decidi-lo. Na certeza de que são raros os filmes que se entregam a essa busca como "O Atalho" o faz.
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Jorge Mourinha, Público


A consciência de um país (INCLUI DECLARAÇÕES DA REALIZADORA)

"O Atalho" é o segundo filme de Kelly Reichardt a estrear nas salas portuguesas, uma cineasta norte-americana que constrói um olhar sobre o presente político do seu país.

Depois da estreia de "Wendy and Lucy" (2008) e do lançamento de "Old Joy" (2006) em DVD, "O Atalho", último filme de Kelly Reichardt, chega agora ao nosso país depois de uma primeira exibição no IndieLisboa. A reaproximação entre o lançamento das obras da realizadora nos Estados Unidos e a sua exibição nas salas internacionais deve-se, para além do reconhecimento de uma autora central do cinema independente americano, ao que se situa no centro da sua criação: um olhar livre e poético feito a partir da realidade política norte-americana contemporânea.

"Old Joy", a fuga de dois amigos do rumo de um país para um escondido destino na paisagem americana, surgiu como sinal de uma geração sem representante na oposição à política belicista de um país. Já "Wendy and Lucy" filmou o encontro solitário de uma jovem, também em viagem, com a ausência de solidariedade social, sobrevivendo na pobreza e sem abrigo, em luta contra instituições que não reconhecem a sua condição. Aliada à escrita de Jon Raymond, autor dos contos dos quais ambos os filmes foram adaptados ("Old Joy" e "Train Choir"), a realizadora encontrou, nos traços da reclusa paisagem do escritor, o quadro ideal para criar, por um olhar naturalista, um sentimento sobre o caminho de uma nação. Em declarações recentes, Reichardt explicou o contexto em que os dois filmes se situavam: "'Old Joy' foi escrito antes da reeleição de George W. Bush, 'Wendy and Lucy' veio depois [do furacão] Katrina. Teve a ver com o desprezo pela pobreza e a presunção que as nossas oportunidades estão aos nossos pés, que tudo o que temos de fazer é baixar-nos e apanhá-las. E se não ficarmos com uma fatia do bolo, é porque somos demasiado preguiçosos. Será mesmo só disso que precisamos para chegar a algum lado?"

Em "O Atalho", Reichardt mantém o seu olhar sobre o mesmo território - o Estado de Oregon -, mas desloca-se no tempo para abordar a aparência de um género: o western. Situado em 1845, o filme recria uma verídica travessia de emigrantes norte-americanos no deserto, através de um traçado que ficou conhecido como "Oregon Trail". A viagem é liderada por Stephen Meek, um guia do território que, pelas suas extravagantes convicções, leva as famílias para um destino de incerteza e acaso, e que permaneceu na história como uma das mais mal-sucedidas etapas da descoberta do interior norte-americano. Mas apesar da distância temporal, o foco de Reichardt mantém-se no presente. "Na autobiografia de Meek de quatorze páginas, dez são uma verbosa anedota, e depois escreve: 'Liderei a primeira caravana pelo território de Oregon. Totalmente bem sucedido.' Provavelmente como no livro de George W. Bush: 'Tudo correu lindamente. Nenhuma preocupação.'"


Em "O Atalho", as analogias ao passado político recente dos EUA parecem ainda mais evidentes. Quando a viagem parece condenada ao fracasso, o teste estará em confiar, ou não, num elemento estrangeiro à cultura desta pequena comunidade: um índio que se cruza no seu caminho, mas cujo conhecimento nativo parece ser essencial para a ansiada rota da prosperidade. Reichardt reconheceu as comparações: "Enquanto montava o filme, a realidade política mudava. Percebi que tudo o que estava a acontecer [a eleição de Barack Obama] se podia projectar naquilo em que estava a trabalhar. E pensei que a história americana era repetitiva, que ainda temos toda uma discussão sobre conquistas e vidas que valem mais que outras - o que se resume ao racismo."

Contudo, se "O Atalho" dá continuidade à leitura sobre um país (o guião é uma criação original de Jon Raymond), Reichardt estende o seu trabalho a uma parte da história do cinema americano. Desconstruíndo a perspectiva masculina do western - lembramo-nos do contexto de "A Caravana Perdida" (1950) de John Ford, por exemplo -, Reichardt foca-se no olhar das mulheres, elementos normalmente distantes da acção física e das tomadas de decisão. O mote para o filme veio da leitura de diários pessoais escritos durante a viagem: Reichardt encontrou aí "um retrato diferente das viagens retratadas nos westerns convencionais, feitos de momentos masculinos de conflito e conquista." Aqui, "as mulheres encontram-se numa posição semelhante à do índio. No fundo, se não formos um homem branco, ficamos de fora do processo de tomada de decisão."

O formato em que "O Atalho" foi filmado respeita essa claustrofobia: o tamanho quase quadrado de 1.33:1 diz tanto respeito à perspectiva limitada dos chapéus usados pelas mulheres como a uma intervenção sobre a larga paisagem do deserto. "São suficientemente largos para cobrir os ouvidos e impedir uma visão periférica. O formato quadrado ajudou-me a que não se vislumbrasse o dia de amanhã ou de ontem no mesmo plano." E é na perspectiva que Reichardt toma sobre uma herança cinematográfica que "O Atalho" revela a sua maior riqueza: a extraordinária fotografia, construída não apenas pelo favorecimento dos seus luminosos detalhes e enquadramento (Reichardt e Raymond confessam-se admiradores do trabalho do fotógrafo Robert Adams, criador de um olhar essencial sobre o Oeste americano), mas também pela atenção dada aos detalhes da vida diária dos viajantes.

Assim, o tempo de observação, presente nas suas obras anteriores, contraria o "frenesim visual" de um cinema contemporâneo que deixa as suas personagens à mercê de uma ideia de distracção.

Mas o lugar ocupado por Reichardt no cinema americano não foi construído de forma fácil. À semelhança das suas personagens, o seu caminho não terá sido óbvio nos seus inícios, nem o seu lugar terá sido encontrado sem percorrer viagens prévias. Após o seu primeiro filme, "River of Grass" (1994), sentiu dificuldades em integrar uma indústria pouco dada a criadoras femininas, inclusivamente a sua esfera independente, assim como a projectos de suposta presunção política. Desapaixonada, levaria uma vida de constante deambulação pela paisagem americana, mudando de residência com frequência e sem estabelecer um rumo concreto, facto que não terá sido alheio àquela que foi a sua infância - viajava em longas viagens de carro com o pai (um investigador criminal que lhe ofereceu a sua primeira câmara), observando a paisagem do país pela sua janela.

Foi por altura da realização de "Ode" (1999), projecto experimental em Super 8 com três actores (e a música de Will Oldham, actor em "Old Joy" e "Wendy and Lucy"), que seguiu, sob a orientação do realizador Todd Haynes, o caminho que ainda define o seu presente: um equilíbrio entre o ensino e a realização, fora dos luxos e constrangimentos temporais dos estúdios. Hoje, divide-se entre a Universidade de Bard, no Estado de Nova Iorque, e a realização, mantendo um espírito de travessia na sua vida que se reflecte nas suas obras. As suas personagens encarnam, do mesmo modo, indivíduos encalhados entre a contraditória realidade política do seu país e as oportunidades que este oferece, sem assegurar, por outro lado, uma devida consequência nos riscos tomados na edificação dos seus caminhos.

O cinema de Reichardt surge, portanto, como o resultado de um estatuto privilegiado no cinema norte-americano, fruto de uma independência conquistada não sem o seu tempo e luta no panorama criativo do seu país. Seria o próprio Todd Haynes a sublinhar a importância do lugar que ela ocupa: "O facto de ser uma realizadora com tanto controlo sobre a sua visão particular, e por conseguir fazer filmes de forma bastante incondicional, sobretudo neste clima e mercado, não é nada menos do que miraculoso."

O caminho de Reichardt será então representativo de um cinema também resistente: um espírito independente que recusa a ideia de fabricação instantânea de uma indústria que tenta recriar uma estética e uma narrativa associada a uma ideia de cinema "indie", mas que privilegia, na verdade, a homogeneidade no teor dos filmes.

O universo de Reichardt revela-se, portanto, nas margens da tradicional produção norte-americana, opondo-se, na política e na indústria, a uma ausência de tempo e de reflexão na construção das imagens. Um caminho contra "os atalhos" de um cinema independente que parece favorecer, hoje, a uniformização dos seus costumes e do seu país. Observemos, então, o reencontrado caminho de Kelly Reichardt.
(As declarações de Kelly Reichardt foram retiradas de entrecistas dadas a MUBI, Village Voice, Sight & Sound, Washington Post)
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Francisco Valente, Público


ENTREVISTA À REALIZADORA

Quando decidiu que O ATALHO era uma história que queria contar?
Quando estive no Oregon a preparar Wendy & Lucy, tive a ideia súbita de fazer um filme que se passaria numa cidade deserta. Eu e o Jon tínhamos viajado com o Storm Tharp, um pintor que conhece muito bem a região. O deserto aqui é muito diferente dos do Arizona ou da Califórnia.

Mais tarde, estava já eu em plena montagem do Wendy & Lucy, o Jon envolveu-se num outro projecto e descobriu a história de Stephen Meek. Comentou comigo, fui até Portland e mergulhámos naquela época.

Esta é a sua terceira colaboração com Jon Raymond. Nos seus dois filmes anteriores, adaptou dois dos contos dele. Neste, ele é o único argumentista?
De facto, o argumento é uma criação do Jon: as personagens, as suas vozes... Não era evidente a entrada neste universo. Normalmente, tento planear a rodagem do filme ao mesmo tempo que adapto os contos dele aos argumentos. Pode dizer-se que, desta vez, ele não me facilitou a vida!

E os diálogos são de tal forma bem conseguidos que considero o trabalho do Jon como argumentista na linha de escrita da Waldo Salt School, onde o cerne do argumento reside fundamentalmente no exterior dos diálogos. O tempo e o espaço constituíam uma espécie de puzzle. No argumento, o dias sucediam-se, e o deserto era, a um tempo, monótono e cheio de surpresas. É difícil ser-se surpreendido quando temos um campo de visão de 20 km à nossa volta, seja qual for a direcção para onde se olhe. Essa foi uma das razões que me levaram a utilizar o formato de imagem 1:33: podia deter-me nos emigrantes sem revelar aquilo que estava à frente deles.

Quando escolheu esse formato, suspeitou que os críticos iriam vê-lo como uma declaração, uma posição?
Quando estamos no deserto debaixo de 45 graus, a opinião dos críticos não é a primeira coisa que nos passa pela cabeça. Em vez disso, perguntamo-nos: “Que barulho é este? Será daquela pedra à minha frente ou daquele arbusto mais além?”.

Durante a rodagem, pensei nas fotografias de Robert Adams, que são sobretudo de paisagens contemporâneas. Gosto da profundidade de campo que este formato permite e que não é possível obter em cinemascope. E também acho que as formas ovais das carroças e dos barretes sobressaíam com este formato. Foram razões práticas e estéticas que me fizeram optar por este formato.

Na história do cinema, associa-se, normalmente, os westerns ao cinemascope. Depois deste filme, acha que o formato 1:33 é mais natural e que o cinemascope é um meio mais artificial para contar uma história?
O formato rectangular das televisões não me convence. Adoro o 1:33. O Anthony Mann utilizava o 1:33 nos westerns. Acho que Cidade Abandonada de William Wellman também é em 1:33. Mas também é verdade que muitos westerns foram filmados em 2:35. Quando temos diante de nós uma paisagem tão vasta, imagino que se queira transcrevê-la em imagens. Mas também é possível mostrar a profundidade de uma cordilheira de montanhas num formato quadrado.

Como é que correu o trabalho com Chris Blauvelt, o seu director de fotografia?
Todos os realizadores procuram algo de muito preciso com o director de fotografia em função daquilo que se quer filmar. É bestial poder ter uma pessoa com quem se pode falar de aspectos técnicos e da abordagem artística, mas no caso de um filme de pequeno orçamento como é o meu, a minha preocupação era, antes de mais, ter alguém eficaz durante a rodagem. Eu não queria passar horas a escolher lentes ou a distância focal que íamos utilizar. O Chris estava lá para me apoiar. Ele tem uma energia transbordante e encontrou soluções para uma data de problemas. Para a dificuldade do terreno, por exemplo. Quando filmávamos as cenas de caminhada, a nossa câmara estava montada em cima de um buggy, e nós tentávamos acompanhar a caravana e os animais. Eu não queria utilizar a steadycam. Mas como o terreno era muito desnivelado, não conseguíamos andar a direito. O Chris pediu a ajuda de todos para abrir uma espécie de caminho e instalou carris de Dolly no meio do deserto! Assim, lá consegui olhar através da câmara e concentrar-me no trabalho dos actores.


A iluminação das cenas nocturnas foram um grande desafio. Queria que se tivesse a impressão de que a iluminação era feita através de candeeiros de petróleo e velas, para se ter noção da escuridão da noite e, ao mesmo tempo, ser possível distinguir tudo aquilo que, em determinadas cenas, estava em campo: as carroças, as tendas, os actores que atravessam o plano. O Chris conseguiu tudo isso utilizando um material muito leve.

É frequente dizer-se que um filme é a história da sua rodagem. O que se passa durante a rodagem transparece no ecrã. Este filme aborda, por exemplo, o papel das mulheres na expansão para o Oeste, e sublinha, por isso, a ausência das mulheres em filmes anteriores que trataram o mesmo período.
Talvez não tenha sido suficientemente clara com os actores acerca da forma como se desenrolaria a rodagem, ainda que o argumento do Jon fosse inequívoco quanto ao ponto de vista das mulheres. A primeira cena que filmámos foi aquela em que os homens encontram o Lago Alcalino. É um grande plano em que eles se viram de costas para a câmara. E eu passei o resto do dia a fazer planos aproximados das mulheres. Normalmente, espera-se que a câmara se foque na pessoa que está a falar. Em O ATALHO, são os homens que mais falam. Portanto sim, às vezes havia alguma tensão e isso reforçava a questão do poder, no ecrã e na rodagem.

Além disso, o deserto era, e é, um lugar difícil. Pode estar muito calor e muito frio no mesmo dia. Às vezes, perguntava-me como é que a equipa conseguia ter vontade de continuar. A assistente de câmara, Eliza, todos os dias me dizia: “Já não sinto dor continuamente”. Não era uma queixa,
dormíamos numa cama, ao contrário dos pioneiros que dormiam em carroças. É incrível o que eles suportaram.

Não chegamos a saber se o Stephen Meek é um homem um pouco louco e irrealista ou se é simplesmente mau. As equipas técnica e artística tinham alguma opinião acerca desta questão? A leitura dos diários dos pioneiros ajudou-a a obter uma resposta?
Os diários eram muito fáceis de ler. Tirámos imensa coisa deles. Permitiram-nos vislumbrar a vida destas pessoas, e é fascinante observar como a escrita se vai alterando à medida que a sua aventura vai avançando. Para a maioria deles, no início da viagem, quando saem do Missouri, os dias são alegres, as paisagens magníficas. O que escrevem é quase poético. Mas, à medida que avançam e que o cansaço se começa a fazer sentir, os diários dos homens tratam sobretudo de direcções – “atravessar quatro rios, passar dois passos de montanha” – e os das mulheres transformam-se em listas de tarefas – “fazer fogueira, desmontar a tenda, cozer o pão, alimentar os animais, caminhar”. O nosso filme vai ao encontro deles no início desse período. Eles caminharam durante meses, acabaram de chegar ao Oregon e vão perder-se.

No início da rodagem, os actores fizeram-me uma série de perguntas acerca das suas personagens: de onde é que vêm, quem são eles? Ao fim de duas semanas de rodagem, estavam de rastos. As perguntas eram agora mais do género “Como é que funciona esta espingarda?”. A semelhança com a atmosfera dos diários era impressionante. Até parecia o Nanouk, o Esquimó! Só tarefas, umas atrás das outras.


Não podemos deixar de perguntar se o filme é uma alegoria política a propósito da administração Bush.
Não queria tomar uma posição acerca disso. O Bush era presidente quando eu comecei o filme, e o Obama foi eleito quando eu estava na não tinha praticamente importância nenhuma, e dava-me a impressão de poder projectar os temas do filme fosse em que época fosse, talvez porque a história dos Estados Unidos tenha tendência a repetir-se.

É o seu segundo filme com a Michelle Williams. Como decorreu esta vossa segunda colaboração?
Em Wendy & Lucy, ela era a única actriz no ecrã na maior parte do filme. Neste, há nove actores, animais, e uma equipa técnica maior. Quando estávamos a filmar, ela ficava um pouco mais isolada. Lembro-me de, no segundo dia de rodagem, a Michelle me ter dito: “Isto não tem nada a ver com o Wendy & Lucy”. É necessário adaptarmo-nos a diferentes maneiras de trabalhar. Existe sempre a tendência de querermos reviver certas coisas que se passaram em rodagens anteriores, mas cada rodagem tem a sua própria vida. Antes de começarmos, a Michelle avisou-me logo: “Não vou tricotar. É melhor arranjares outra pessoa que o faça, porque eu detesto tricotar”. Umas semanas mais tarde, tinha-se tornado numa “tricotadora furiosa”. Adorava levantar os olhos e ver a Zoe e a Michelle sentadas, com os seus barretes, a tricotar onde quer que estivessem. E um pouco mais ao longe, a Shirley Henderson, também de barrete, a ler ou a tricotar.

O trabalho de som é impressionante. Como é que criou este som tão especial?
Na montagem, permito-me incorporar todos os sons que quero. Em Wendy & Lucy, só tínhamos dois microfones na rodagem. Neste filme, o engenheiro de som gravou várias pistas diferentes: os animais, as carroças... havia microfones por todo o lado. Na sala de montagem, quis encontrar um equilíbrio justo entre todos estes sons para sublinhar a calma e o silêncio.

Em relação à música do filme, eu sabia que queria instrumentos de sopro, porque eram esses os instrumentos, nomeadamente a flauta, que eles utilizavam. Mas sempre que ia a uma aula de ioga e ouvia flautas, entrava em pânico! Como separar a flauta daquele lado New-Age ? O Jeff Grace conseguiu-o distorcendo o som, e agora já nem é possível identificar os instrumentos.




Título Original: Meek's Cutoff
Realização: Kelly Reichardt
Argumento: Jonathan Raymond
Montagem: Kelly Reichardt
Fotografia: Chris Blauvelt
Música: Jeff Grace
Interpretação: Michelle Williams, Bruce Greenwood, Will Patton, Zoe Kazan, Paul Dano, Shirley Henderson
Origem: EUA
Ano: 2010
Duração: 104’

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