RE/CONHECER JOÃO CANIJO - começa 4ªf, na sede. entrada livre. 21h30.

(lotação - 25 lugares)


Sob pretexto da ansiada estreia de Sangue do Meu Sangue (5 de Outubro, contamos dá-lo em Novembro), retrospectiva completa da obra ficcional de longa-metragem de um dos nossos mais interessantes e seguros realizadores. Canijo exprime a coerência de um artista que sabe bem o que quer – falar de nós, para que ganhemos a vida.

Optámos por iniciar com o último, regredindo até ao primeiro, o que é uma forma mais inusual de abordar a obra de um realizador, mas não menos esclarecedora.



SETEMBRO


DIA 21
MAL NASCIDA, 2007, 117’

DIA 28
NOITE ESCURA, 2004, 94’

OUTUBRO

DIA 5
GANHAR A VIDA, 2001, 115’

DIA 12
SAPATOS PRETOS, 1998, 97’

DIA 19
FILHA DA MÃE, 1990, 105’

DIA 26
TRÊS MENOS EU, 1988, 90’


SOBRE MAL NASCIDA


NOTA DE INTENÇÕES

«A grosseria resulta do esforço e da impossibilidade de dar forma a um fundo visceral sem forma.» «O pior na grosseria, não é a ruína da forma, mas a arrogância em julgar-se forma: violência característica do burgesso.» José Gil

«Portugal é um país de brandos costumes.» Afirmação falsa, porque não há nada de brando nos costumes da província profunda dos crimes mesquinhos. Nesse mundo distante e dissimulado reina o sórdido e a violência boçal. E é nesse mundo escondido de violência e situações limite que é revisitado o mito de Electra, o confronto de uma filha com a mãe que foi incapaz de a amar.

Uma mãe que dá a vida devia dar ao mesmo tempo o amor incondicional, uma mãe devia dar a ilusão do amor absoluto. Se é a mãe a trair a confiança no amor o ressentimento torna-se desmedido, só resta o rancor que cresce na espera da vingança, o rancor e o desejo de vingança tornam-se necessidades de sobrevivência.

João Canijo

NOTÍCIA

A longa-metragem «Mal Nascida», com o qual o realizador João Canijo volta a mergulhar no Portugal interior e agreste, de costumes nada brandos, é uma versão de Electra e integra uma trilogia cinematográfica por ora incompleta.

«Mal Nascida», que conta no elenco com Anabela Moreira, Gonçalo Waddington, Márcia Breia, Fernando Luís e Tiago Rodrigues, estreia-se esta quinta-feira, dia 9 de Outubro, após um ano de rodagem e da passagem pelo festival de Veneza.

Aquela que é a sexta longa-metragem de João Canijo, de 50 anos, apresenta-se também como o último filme que fez com produção de Paulo Branco.

A história revisita o mito de Electra, com Lúcia (Anabela Moreira), que cumpre um luto eterno pelo assassínio do pai, a confrontar-se com a mãe e o padrasto até a morte, auxiliada por um irmão que regressa a casa ao fim de muitos anos de afastamento.

«Mal nascida» é o terceiro filme de uma trilogia sobre mundos paralelos iniciada em 2003 com «Noite escura», que João Canijo idealizou com base na tragédia grega e com Electra no centro das histórias.

O segundo filme, intitulado «Piedade», está ainda no papel, porque «não havia condições de produção por ser muito caro e ter muitos actores», disse o realizador.

Próximo filme: amor incondicional nos subúrbios de Lisboa, «Sangue do Meu Sangue». A história é passada num bairro social dos subúrbios da Amadora, com uma «família tipicamente suburbana, como é oitenta por cento da população mundial». «Sangue do meu sangue» vai ter a produção de Pedro Borges, da Midas Filmes, e conta com Rita Blanco, Anabela Moreira, Marcello Urgheghe e Francisco Tavares nos principais papéis.

CRÍTICA

João Canijo é um caso raro no cinema português. Um cineasta que sabe criar ambiências (pesadas, claustrofóbicas e desoladoramente reais) através de um complexo jogo de montagem entre: a câmara, que desliza em sucessivos travellings; o som, trabalhado em várias camadas (os diálogos entre os protagonistas, as conversas do café, o barulho do exterior e aquele infernal ruído da televisão); e os actores, que submergem totalmente nas suas dificílimas personagens (estão todos assombrosos, mas o destaque tem de ir para a menos conhecida Anabela Moreira).

O realismo desta sufocante obra não sai minimamente turvado pela incorporação de elementos da tragédia clássica (mais concretamente, do mito de Electra): Canijo não teatraliza o cinema, pelo contrário, põe a linguagem teatral ao serviço da Sétima Arte. Com efeito, a "coreografia dos corpos" em "Mal Nascida" acontece como que num "palco fictício", onde o olhar do espectador é omnisciente. E para tal é decisiva a forma como Canijo filma, enquadrando habitualmente três personagens por plano e cosendo cada plano a outro, numa dinâmica de continuidade que sublinha os "tempos do teatro" e, como corolário, se aproxima dos "tempos da vida".

Apesar de sentirmos "Mal Nascida" como coisa tirada em bruto da terra, que é pulsante e tem cheiro, este é um trabalho magistral de mise en scène: por exemplo, as divisões da casa ou meros postes de electricidade servem, muitas vezes, para enquadrar ou dividir as imagens e o posicionamento dos "corpos", sugerindo metaforicamente a própria divisão dentro da família. Também a fotografia parece ser meticulosamente trabalhada: com um claro-escuro que faz o contraste entre a vida de aparências que o casal do filme ostenta e a terrível verdade que é personificada por Lúcia, personagem que carrega uma tristeza profunda (o eterno luto pelo pai...) a par com o ódio intenso que sente pela mãe (aquilo que os psicanalistas designaram por "complexo de Electra").

Depois de "Noite Escura" (para nós, o melhor filme de 2004), Canijo volta a provar que é um dos mais engenhosos cineastas portugueses da actualidade, que sabe escolher e dirigir actores como poucos e que filma com uma elegância que só tem rival em nomes como Pedro Costa. "Mal Nascida" é uma viagem duríssima que cabe na lista das mais extremas experiências de cinema deste ano.

Luís Mendonça, cinema2000.pt


ENTREVISTA AO REALIZADOR

Depois de “Noite Escura”, João Canijo volta a focar o interior português em “Mal Nascida”.
Lúcia é uma mal nascida, uma mal amada é a eterna viúva do seu pai. Um grito antes de ser um corpo, enlouquecida, maltratada e humilhada, sobrevive enlutada com a lembrança do crime e da traição da mãe, grita a sua dor inconsolável para não dar descanso nem paz aos assassinos do pai. Vive na esperança desesperada do regresso do irmão para cumprir a promessa de vingar o sangue do pai.

Três anos depois de “Noite Escura”, “Mal Nascida”, desde ontem nas salas, marca o regresso à tela de João Canijo e o regresso à “tragédia” - no sentido mais clássico do termo. Se no filme anterior o realizador adaptava “Ifigénia em Áulis”, de Eurípides, ao universo português, agora versa-se “Electra”: no interior de Portugal, Lúcia (Anabela Moreira) é o epicentro e símbolo da desgraça de uma mãe (Márcia Breia) que, com o amante (Fernando Luís), cometeu um crime no passado quando a família estava emigrada em França.

“Mal Nascida” não faz apenas uma rima com “Noite Escura”: era suposto ser o culminar de uma trilogia que, hoje, Canijo não sabe se vai terminar. Desta feita não se vêem prostitutas: rodado em Codessoso, Trás-os-Montes, os cenários - uma casa e um café - são reais e pouco lhes foi alterado. É o país dos santinhos de gesso e dos naprons por cima da televisão. Dos naprons por cima da tragédia absurda. Possivelmente aquilo nem sequer é “Portugal”. Pode ser um arquétipo de um “Portugal” que vai desaparecendo. Mas também pode ser apenas gente.

Na nota de intenções que escreveu para o filme diz que uma mãe que trai o amor que é suposto dar à filha provoca um ressentimento nesta. E que este ressentimento é uma necessidade de sobrevivência. É isto que enforma a personagem de Lúcia, a filha?
O ressentimento é a razão que ela tem para não se matar. É manter a possibilidade de algo mudar: no futuro haverá uma salvação, que será a vingança alimentada por esse ressentimento permanente. Essa nota de intenções foi escrita em 2006, um ano antes de rodar o filme. Agora acho que o filme é sobre uma pessoa que sente uma total falta de amor, o que talvez não seja verdade, talvez apenas a outra pessoa [a mãe] não seja capaz de o mostrar: em todas as versões da “Electra”, a Electra [filha] é odiosa e a Clitmenestra [mãe] tem momentos de fraqueza, muito mais humanos que a filha. E eu li 14 versões. Há quatro que interessam, a de Sófocles, a de Eurípides, a de Hofmannsthal e a de Yourcenar. Mas em todas elas há um momento em que a Clitmenestra tenta dizer à filha que a ama.

Usar tragédias facilita-lhe o trabalho? Já tem as cenas, as falas…
A tragédia dá imenso jeito, não o nego. Mas o fascínio das tragédias partiu do fascínio pela “Electra”. E já “Filha da Mãe” [1990] era uma adaptação incipiente da “Electra”. Esta suposta trilogia, que começa em “Noite Escura” e acaba em “Mal Nascida” (falta um que não foi feito - nem sei se vai ser feito), foi feita para chegar à “Electra”.

Em ambos há uma recusa em psicologizar as personagens.
A psicologia entra depois. Entra numa parte que não me diz respeito, diz respeito aos actores, na forma como eles elaboram as suas personagens.

Costuma passar umas semanas de leituras com eles antes dos filmes…
Não é de leituras, é à Mike Leigh [realizador britânico, autor de, entre outros, "Nu" ou "Vera Drake", conhecido pelos seus longos "estágios" com os actores antes da rodagem]: elaboração do argumento com eles. Havia uma estrutura prévia, depois houve alterações ao texto. Havia uma pergunta simples que lhes fazia: “Achas que isto está adequado à tua personagem?” Não faz sentido impor a uma pessoa uma interpretação que não seja a dela. A única coisa que a gente pode fazer é usar essa interpretação e manipulá-la. Essa coisa da transformação de um actor numa personagem é mentira, um actor nunca deixa de ser ele próprio.

Em “Ganhar a Vida” há uma cena em que as mulheres estão à conversa, e uma delas diz que fazer broches alimenta e desatam a rir-se - uma naturalidade desarmante. Neste filme os diálogos de Adelaide, a mãe, são quase música. Mais que naturalidade, você tem ouvido para a conversa feminina - o que implica gostar muito de mulheres.
Gosto de mulheres, sim. Ao longo destes anos, as mulheres actrizes sempre me encantaram muito mais que os homens actores. Nunca consegui encontrar um actor que me comovesse tanto como uma actriz. Não sei porquê. Quer dizer, posso teorizar, mas não tenho a certeza.

Mas teorize, vá.
É uma questão de disponibilidade, de capacidade de exposição da fragilidade. É algo de biológico. O homem, com a sua necessidade de manter o território, tem uma incapacidade de mostrar vulnerabilidade. Há um livro curioso, “Almost like a Whale” [Steve Jones, 1999], que é uma reescrita da “Origem das Espécies” à luz dos conhecimentos actuais. Uma das coisas que diz é que biologicamente, em todas as espécies, a fêmea é receptiva e o macho tem duas maneiras de transmitir os genes: uma é pela força, a outra é pela agilidade. O macho é sempre agressivo e a fêmea é sempre passiva - portanto vulnerável. Gosto das mulheres, acho que são mais complexas e mais fortes e que dão personagens mais interessantes - ainda não fiz nenhum filme em que o protagonista fosse um homem.

“Mal Nascida” está cheio de pormenores mínimos e simbólicos do interior. A garrafa de Ricard que já não tem Ricard, foi reutilizada com vinho a martelo. Isso é típico das terras pequenas.
Das terras pequenas e das pessoas que vieram de França. Só reparei nisso ao fazer a prospecção. Percebi porquê: reaproveitamento. E fica mais bonito. Há uma preocupação com a vaidade, mesmo que depois na maneira de vestir e de estar não pareça. Arranjam-se muito para ir à missa.

A casa é sobrecarregada, todas as paredes estão cheias. O aparador da Adelaide (Márcia Breia) está repleto de molduras. Tem é aquela Virgem fluorescente…
Essa acho um bocadinho exagero. Mas a Virgem era tão bonita que não resisti. Foi uma condescendência, ou uma complacência. Hoje não poria, embora o aparador estivesse tão atafulhado quanto o que se vê.

O café é à antiga, mas depois há o balcão em alumínio, tampos de laminado a imitar mármore.
Isso estava tudo lá. É um símbolo, que corresponde à total falta de ligação cultural entre o passado e o presente que o português tem. Isso é notório nas aldeias: não há nenhuma ligação entre o que está construído antes e o que é construído depois.

As pessoas da sua geração [Canijo nasceu em 1957] com aspirações intelectuais eram francófonas, a minha [os nascidos nos anos 70], com ou sem pretensões, é americana. Os “vossos” intelectuais não queriam olhar para o que era 90 por cento do país. “Nós”, que somos democratas e alfabetizados e não separamos alta e baixa cultura, ainda temos vergonha da avó - e a avó ainda é boa parte do país. Não permanece uma incapacidade de reconhecer Portugal, de o viver, de o aceitar?
Absoluta. Curiosamente, este filme, que mostra mais o cliché de Portugal, foi mais compreendido lá fora que os anteriores. Reconheceram aquele mundo. Não reconheceram “Noite Escura”. A ideia de ruralidade pode ser transportada para outras partes, ao passo que “Noite Escura”, suponho, só podia ser reconhecido em Espanha. Os franceses não pescaram nada daquilo.

A nossa estrutura mental vive sob um paradigma que não nos permite olhar para “ali”, porque o avô pode ter vindo “dali”?
Há uma recusa, que foi muito nítida em “Ganhar a Vida” (2001): o não querer ver os emigrantes. Não estava à espera que o filme fizesse tão poucos espectadores: 10.500. “Noite Escura” fez 16 mil. No “Ganhar a Vida” estava à espera que cá, como em França, se interessassem pelo que apesar de tudo era o primeiro filme de ficção feito com os emigrantes em França. Era o nosso primeiro filme da diáspora.

Está a criar um arquétipo do português que não queremos olhar.
Descobri isso no “Sapatos Pretos” (1998). A partir daí é propositado. Quando parti para fazer “Ganhar a Vida”, supunha que ia encontrar uma caricatura. Chego lá e ganho um respeito que não imaginava por aquela gente. Havia uma coisa que sempre estranhei, que era eles falarem melhor francês que português, mas ao falar uma língua que não é a nossa temos que pensar melhor nas palavras, porque elas não nos saem automaticamente, por isso a verbalização do pensamento é mais correcta. Não vermos isto, não olharmos, tem a ver com profunda falta de educação.

Fazer a caricatura dos emigrantes ou dos supostos rurais é fácil. Mas a província do seu filme tem gordura, tem visco. Não serve quem quer ter amor (à distância) ao povo. Não o poupa.
É fácil caricaturar. Difícil é mostrar o horror em que as pessoas vivem e como se tornam horrorosas por viverem naquele horror. Para haver personagens elas têm de ser humanas. Têm de ter complexidade. “Noite Escura”, sendo numa casa de alterne, partiu de uma ideia justa, mas um bocadinho primária: onde é que uma tragédia podia passar mais desapercebida? Num sítio onde se vive da mentira. O segundo filme [da trilogia], o que não foi feito, é uma evidência. Guerra de Tróia no mundo actual: crime organizado. Não há muitas alternativas.

Uma tragédia incestuosa tem de se passar numa terra onde ninguém se vai meter no que acontece noutras casas.
Num sítio muito fechado. Uma aldeia desertificada e rude e brutal como a gente sabe que são as coisas no campo. Onde seja credível uma história tão brutal. Aquela mãe é um bocadinho brutal - mas aquilo aconteceu e aconteceu ainda há pouco tempo numa dessas aldeias. Ali, penso que por estarem lá fechados, é tudo exacerbado.

A violência é diferente da que existe na cidade grande?
A diferença está na morte escondida. Estou a debater-me com isso agora. O meu próximo filme ["Sangue do Meu Sangue"] passa-se num bairro social - não por razões folclóricas, mas sim filosóficas. Porque suponho que a luta pela sobrevivência ocupa tanto tempo a uma família de um bairro social que não têm tempo para elaborar reflexões sobre as emoções. E portanto as reacções às emoções são imediatas, são só reacções. O filme é o contrário da “Electra”, é sobre o amor incondicional de uma mãe por uma filha. Uma mãe que guarda um segredo terrível para salvar a filha. Se a filha não o conhecer, será salva.

Em “Mal Nascida” não há salvação. A Lúcia, que não foi vítima da incestuosidade do pai, ao contrário da irmã, acaba por repetir, com o irmão, os actos do pai.
O que ela faz com o irmão é a única forma de ela ter a certeza que é amada. É uma espécie de pacto. Ela acha que tudo o que o pai fez está certo. Essa parte, dela imitar o acto do pai, nunca tinha pensado. É um impulso. Por sacrifício. Para cumprir um desígnio mais alto. A estrutura mental dela só comporta aquilo. E assim torna-se um eco dos crimes da mãe, torna-se, para a mãe, um pesadelo vivo, permanente.

Mas no fim a Lúcia coloca-se no patamar da mãe, ao repetir o crime dela. Como se a tentasse perceber.
E é o único momento em que elas se encontram, em que há amor entre aquelas duas mulheres. Porque é só aí, quando não há solução, que ela pode aceitar que a mãe gosta dela e a ama. Mas não pode impedir-se de a matar.

João Bonifácio, Público, 10/10/2008




REALIZAÇÃO
João Canijo
ARGUMENTO E DIÁLOGOS
João Canijo
Céline Pouillon
Mayanna von Ledebur
DIRECÇÃO ARTÍSTICA
José Pedro Penha Lopes
MONTAGEM
João Braz
SOM
Olivier Blanc
Ricardo Leal
Gérard Rousseau
MÚSICA
Gabriel Gomes
IMAGEM
Mário Castanheira
INTERPRETAÇÃO
Anabela Moreira - LÚCIA
Márcia Breia - ADELAIDE
Fernando Luís - EVARISTO
Gonçalo Waddington - AUGUSTO
Tiago Rodrigues - JUSMINO
PRODUTOR
Paulo Branco
ORIGEM
Portugal
ANO
2007
DURAÇÃO
117’
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