«NOITE ESCURA, a apoteose de João Canijo». Afira por si. 4ªf, Sede, 21h30. Entrada livre.

NOTA DE INTENÇÕES

No mundo longínquo dos subúrbios e da província portuguesa há um submundo escondido, sórdido e violento: a vida da noite, do alterne, da prostituição e do tráfico. De todo o tipo de tráfico.

Um mundo escondido onde a vida não tem preço e onde tudo se vende.

Mas um mundo onde os afectos e o amor continuam a resistir no meio da sordidez extrema e onde a redenção e a esperança ainda são possíveis.

É assim que uma peça de Eurípides, Ifigénia em Aulis, a história da desgraça de uma família provocada pelo erro de um pai, se transforma na tragédia de uma família portuguesa mergulhada no mundo dos bares de alterne, perdida na vida da noite, no meio da província, no meio de nada...

João Canijo




Com NOITE ESCURA, João Canijo realizou um filme poderoso, uma viagem formal e dramaticamente alucinante ao submundo português, evitando o seu perigo maior: o voyeurismo que caracteriza a imagem televisiva da prostituição e do universo que se move à sua volta. O filme é notável porque João Canijo percebe, rapidamente, como é solitário o caminho que tem para fazer, implicando, ainda por cima, um vocabulário muito pouco comum em filmes com limitados recursos de produção. Falo da extrema proximidade da câmara com os actores, do envolvimento corporal que o filme desenha desde o seu início e que nos impede qualquer recuo, qualquer tipo de julgamento "universal", abrindo-nos, decerto, um mundo (nunca típico mas, para muitos, fantasmático), mas encontrando, bem no seu centro, sentimentos e dramas completamente inteligíveis, porque falam a língua sentimental de todos nós, exactamente com a mesma pronúncia, as mesmas perdas irremediáveis e os mesmos dolorosos silêncios.

Noite Escura é, pois, um filme genuíno, que não sai de nenhum outro sítio (nem sequer da filmografia anterior do realizador), senão da casa de alterne que Canijo encena. É um filme estóico, porque nada nele parece preconcebido, tudo acontecendo em função dos compromissos que a câmara estabelece em cada momento preciso, com a movimentação, a gestualidade e a emoção dos actores. Num espaço em que nenhuma distância é possível (o filme começa logo, muito perto), o fio de coerência é o da própria (e irrepetível) percepção que a câmara, a luz e a montagem vão construindo à nossa frente. Revelando-nos um cinema em carne viva - que, nos últimos tempos, talvez só tenha paralelo no belíssimo Rosetta, dos irmãos Dardenne -, Noite Escura vibra com tudo o que lhe dão e, muito em particular, com o que lhe dá Beatriz Batarda, uma actriz em total acto de entrega, que compõe, na sua Carla, uma figura arrebatadora, e coloca o mundo de Noite Escura a pairar numa altura mítica, nessa tocante meia-distância em que os gregos gostavam de medir o (pouco) que os separava dos deuses.

Ignoro se Noite Escura vai ter a vê-lo todas as pessoas que a sua generosidade merece e convoca. Num país normal, habitado por gente com uma relação saudável e curiosa com o mundo em que vive e com as variadas formas da sua expressão, Noite Escura seria provavelmente aquilo que os comerciantes chamam de "sucesso". Em Portugal, porém, há muito que os distribuidores puseram o cinema a falar exclusivamente em inglês, a reciclar, permanentemente, o caruncho das mesmas historietas representadas pelos mesmos actores e servidas pela mesmíssima "eficácia" técnica e as mesmas formas (rascas) de promoção. Num mundo assim (um "mundo do mesmo", a cuja caracterização voltaremos), este filme trava uma batalha desigual: tem actores maravilhosos, mas que falam português (e um pouco de russo), tem a autenticidade do salto inesperado e "sem rede", mas não se lhe reconhece as repetições de formatos e convenções, oferece-se como um objecto original e generoso mas não se impinge com os cromos visuais do costume. E um filme em que o cinema se inventa (como em Kiarostami, por exemplo), por pura necessidade moral; é, por isso, um gesto grande e simples, que nos devia tocar e iluminar a todos.
.
João Mário Grilo, Visão, 28 de Outubro de 2004


É inegável a coerência do caminho trilhado por João Canijo desde que, em 1998, "Sapatos Pretos" deu início à "segunda fase" de uma obra até então mantida num interregno de oito anos depois dos dois primeiros filmes ("Três Menos Eu", de 1988, e "Filha da Mãe", de 1990). Mais: não só a coerência se aclara - e com "Noite Escura", depois de "Ganhar a Vida" e "Sapatos Pretos", ela está à vista -, como Canijo vai apurando o que quer dizer e mostrar, e a maneira de o fazer. É o melhor filme que Canijo já fez e, para já, a mais concentrada e eficaz exposição daquilo que subjaz (estilística e tematicamente) a esta "segunda fase", do que lhe define a coerência e permite que se aplique essa expressão, "segunda fase".

Simplificando: se desde "Sapatos Pretos" o cinema de Canijo procura algo de muito específico, "Noite Escura" é o ponto em que mais perto ele fica de a encontrar.

Também simplificadamente, dir-se-ia que essa "coisa de muito específico" se pretende com a vontade de chegar a um retrato do "Portugal profundo", rural, interior, "inestético", filmado "in loco" ou a partir das suas emanações. Mas há algo mais. Não apenas chegar ao retrato, mas partir dele; e partir dele usando-o como matéria para um desenho narrativo que o transcende.

Canijo construiu o argumento com base numa tragédia de Eurípedes. Linha narrativa do filme: um pai (Fernando Luís), dono de uma casa de alterne, combinou vender a filha mais nova (Cleia Almeida) como prostituta a um grupo de mafiosos russos para saldar as dívidas e a vida; mas na noite em que a transacção se vai consumar os acontecimentos precipitam-se, pela acção da filha mais velha (irreconhecível Beatriz Batarda) e da mulher (Rita Blanco, de cabelo oxigenado). Mas o desafio, como é óbvio, não era apenas fazer uma tragédia, era fazer uma tragédia a partir destas personagens e ambientes, preservando a sordidez mas conseguindo arrancar-lhes um recorte que ultrapassa o imediatismo do pressuposto de base: não se trata de encontrar uma galeria de tipos execráveis, mas de lhes encontrar uma profundidade de intérprete de tragédia. Daí que, se este é o ponto em que Canijo mais se aproxima desse objectivo, isso aconteça porque "Noite Escura" talvez seja também o filme em que as personagens mais se encerram dentro da sua tipificação, resistindo a qualquer "decomposição" em termos morais e rechaçando qualquer hipótese de empatia. É como se a linha delimitadora entre o palco e o público estivesse lá cavada: eles vivem uma representação que não precisa nem do espectador nem da sua "simpatia".

O paradoxo disto tudo é que Canijo nunca filmou nada de tão "envolvente". Na verdadeira acepção da palavra: "Noite Escura" é um "filme de décor", impressionante reprodução de uma casa de alterne que, mais uma vez, é outra coisa: um labirinto, artificioso e estilizado, uma "gruta" onde estão encerrados e são jogados uns contra os outros. Não se sai dali porque aquela casa é o último degrau antes do abismo - e os que saiem saiem para se afundar. Cheira a morte desde o princípio: a reconstituição da casa de alterne é "realista", pelo menos no sentido em que é convincente, mas a sua função é totalmente artificiosa, e é se calhar a personagem mais "viva" e dominadora de todas.

Para esta envolvência e para este domínio do espaço da casa é fundamental o trabalho de câmara e, sobretudo, o do som: é pela circulação dos diálogos, pela sobreposição do que dizem as personagens na sala ao lado e do que dizem as que estão em grande plano que se sugere a "obscenidade" do espaço, como se esta fosse condensada num "rumor" que se abate sobre todos, e que prende todos uns aos outros - é um som "viscoso". Mas o visco é o principal ingrediente do filme.
.
Luís Miguel Oliveira, Y - Público, 22 de Outubro de 2004


INCLUI DECLARAÇÕES DO REALIZADOR
Visitados mais de 80 estabelecimentos, num périplo do Minho ao Algarve, pagas centenas de garrafas de champanhe a profissionais (o necessário para suspender o tempo e comprar a disponibilidade de quem tinha histórias para contar) João Canijo pode hoje apresentar, com alguma segurança, uma estatística: "Portugal é o país da Europa com mais casas de alterne por metro quadrado." A esta conclusão chegou ao fim de dois anos de - isso mesmo - pesquisa.
"Não sei porque é que é assim. Talvez seja pela falta de ligação ao real. É um mundo de fingimento. Os homens deixam-se levar. Pelo fingimento e pela ingenuidade. E pelo álcool. É um mundo aliciante. E viciante. As meninas são excelentes profissionais. Conseguem convencer que um tipo é especial e muito sensível. Há essa coisa do fingimento que consegue simular que a relação é genuína. Há pessoas que gastam fortunas", diz, e passa a exemplificar. "Não é extraordinário um cliente gastar 1500 euros numa noite numa casa de alterne. Havia um tipo em Amarante, de 55 anos, bem posto, que a única coisa que fazia era pagar duas garrafas de champanhe a uma menina e passar a noite a dançar como se estivesse nos Alunos de Apolo".

Ao fim de dois anos de pesquisa, Canijo pode apresentar mais do que uma estatística sobre um Portugal profundo. Apresenta um filme, "Noite Escura", que no dia 20 estará em destaque na secção Un Certain Regard de Cannes (a sua segunda participação no festival, depois de "Ganhar a Vida"). Um filme de uma brutalidade imensa, que tem as marcas de momento de exaltação no trabalho do cineasta.

Nesta "Noite Escura", se se escutar bem, aquela história do homem de Amarante, das duas garrafas de champanhe e da dança, é uma das muitas, todas verdadeiras, que servem de coro - em redor, sobrepostas, à margem... - à narrativa principal, sobre uma família do negócio de alterne, pai, mãe e filhas. (Abra-se um parêntesis: todas as histórias deste mundo já foram contadas pelos clássicos, acredita Canijo; o que pode acontecer hoje é ouvirmos rumores delas, reflexos, reencarnações, ou encontrarmos ao dobrar de cada "fait divers" o que já foi imortalizado há muito, muito tempo na tragédia grega). Para resumir "Noite Escura": sobre Rita Blanco (mãe e patroa do estabelecimento), Fernando Luís (pai) e Beatriz Batarda (filha mais velha), algures na província portuguesa, abatem-se as forças do destino e da destruição, quando o pai, por que um negócio lhe correu mal, se vê obrigado a sacrificar a filha mais nova (Cleia Almeida), vendendo-a à prostituição em Espanha.


"É a tragédia humana, universal, e é o mundo sórdido português", diz o realizador, "que às vezes é engraçado, que às vezes é melancólico - ao meu argumentista [Pierre Hodgson] chocou precisamente a nostalgia, a melancolia". Não há gritos, as vozes não revelam emoção quando atiram a palavra "matar", ninguém se exalta quando os cadáveres aparecem (começa tudo com um cadáver) no cenário único em que decorre, como em tempo real, a acção. A expressão de Canijo é eloquente: "Quis afogar a tragédia. Quis tornar a tragédia absolutamente indiferente no meio das vidas de uma casa de alterne. Onde é que hoje a tragédia e os sentimentos da tragédia podem ser tão indiferentes se não num mundo de mentira, de representação permanente que é o mundo do alterne?"

Para perceber melhor o "tour de force", antecipe-se a experiência: é como se houvesse dois filmes em permanência, um a contar a história principal, a que tem visibilidade na imagem; e outro, como que sobreposto, a correr na banda sonora como rumor constante - diálogos e diálogos em "off", o tempo todo -, onde a voz é o "lugar" e a identificação de figuras secundárias, onde se multiplicam outras histórias ("todas verdadeiras", assegura Canijo, escritas com a ajuda de quem passou pelas experiências). Ou seja, uma ficção com documentário em fundo. Através do som, o espaço (na realidade, uma discoteca de Alcochete que nunca chegou a abrir e que foi decorada como casa de alterne) ganha espessura física, como um labirinto que se materializa na nossa imaginação. Agudiza-se a experiência do tempo, que se dilata, como se esta noite única fosse a eternidade de um grupo de personagens, a prisão de uma família.
.
Vasco Câmara, Público, 16 de Maio de 2004

Este "tour de force" também é o que é porque Canijo teve estes actores. E é preciso começar por descodificar uma sensação estranha: quando vemos as personagens, parece que tudo já se decidiu em relação a elas, e o filme é apenas a antecâmara de um desfecho; quando vemos os actores, Fernando Luís, Rita Blanco, Beatriz Batarda, parece que eles ali chegaram transfigurados por uma experiência irreversível. O que é que aconteceu?

Não é só impressão, conta Canijo. Todos eles mergulharam na vida do alterne, para fazerem o seu trabalho de casa. Batarda algures no Porto, Rita Blanco na zona de Aveiro, Fernando Luís algures. "É uma questão de trabalho e de profissionalismo", diz o realizador. "Não se pode fazer um filme sobre o mundo da noite sem o conhecer. Se passei dois anos a tentar conhecer esse mundo, os meus actores podiam passar uma semana a investigá-lo", remata.


E passa em revista o material que teve em mãos: "A Beatriz é uma actriz do Método, é a escola inglesa. Felizmente para ela, não é uma actriz portuguesa. Muitas ideias para a personagem vieram dela, como o facto de ela usar aparelho nos dentes" (é também por esse aparelho que demora até percebermos que aquela mulher é Beatriz Batarda). "Faz as coisas metodicamente, toma apontamentos de tudo. Já a Rita, que esteve a estagiar junto de uma patroa, absorve sem pensar nas coisas. Deixa-se fazer. Tem generosidade, talento. O Fernando Luís é dos poucos actores-homens, portugueses, com disponibilidade. E depois, todos eles foram ler os clássicos. É tudo uma questão de trabalho. E de profissionalismo".

E remata: "As casas de alterne são assim. Parece uma verdadeira família. E parece que todos estiveram sempre ali. Sempre. E para sempre."



REALIZAÇÃO
João Canijo
ARGUMENTO E DIÁLOGOS
João Canijo / Pierre Hodgson com Mayanne Von Ledebu
FOTOGRAFIA
Mário Castanheira
SOM
Philippe Morel
DECORAÇÃO E GUARDA-ROUPA
Zé Branco
MONTAGEM
João Braz / Jackie Bastide
MÚSICA
Alexandre Soares
PRODUZIDO POR
Paulo Branco
INTERPRETAÇÃO
Beatriz Batarda
Rita Blanco
Fernando Luís
Cleia Almeida
José Raposo
Dmitry Bogomolov
João Reis
Anna Belozorovich
Rámon Martinez
Anabela Moreira
Jinie Rainho
Nadina Lopes
Susana Moreira António Ferreira
Ana Luísa Leão
Helena Alves
Lara Carvalho
Márcia De Oliveira Silva
ORIGEM
Portugal / França, 2004
DURAÇÃO
100'
.

Sem comentários: