Um filme em aberto, como toda a boa POESIA. 2ªf, 21h30, IPJ.

Sócios 2€, Estudantes 3,5€, Restantes 4€

Como todos sabemos, estamos numa época em que a poesia está a morrer. Alguns lamentam o facto enquanto, ao mesmo tempo, outros dizem “a poesia merece morrer!”. Apesar de tudo, ainda existe quem escreva poemas e pessoas que ainda os apreciem.Que significado tem escrever poesia quando as pessoas já não a lêem? Esta é a minha questão para o público. É também uma questão para mim: que significa fazer filmes quando os filmes estão a morrer?
Lee Changdong


O que realmente interessa em Poesia não é tanto o que se vê, mas a forma como se vê. Ou melhor, há uma diferença entre ver e observar. Daí que a poesia seja isso mesmo, a diferença entre ver e observar, olhar com atenção para o que nos parece banal, observar pormenores nunca antes apercebidos, observar com sentimento. A dada altura diz-se que «não é difícil escrever um poema, difícil é ter coração para o escrever». Da mesma forma que para fazer um filme com uma história com um cerne semelhante a esta não era preciso muito, mas o difícil era fazê-lo com o mesmo olhar e sentimento. Um sentimento tão honesto e verdadeiro que não passou despercebido no Festival de Cannes 2010, onde ganhou o prémio para Melhor Argumento, entregue a Chang-dong Lee, argumentista e realizador de Poesia. Este é o seu primeiro filme a estrear nas salas de cinemas portuguesas, o que nos deixa a pensar no que talvez tenhamos perdido até agora.

O olhar de Chang-dong Lee é peculiar. É o olhar simples e poético sobre uma forte história. Coisa rara no cinema. Porque se havia material para se criar um thriller intenso a partir de uma tragédia na comunidade que se estende à família ou um melodrama sobre uma mulher que perde aos poucos a sua mente sã, Poesia altera esses padrões de género e destaca um olhar frio, às vezes cínico, sobre uma história de julgamento moral. A busca de Mija pela inspiração poética através da observação do quotidiano é a mesma que o cineasta impõe ao espectador. Se a personagem é forçada a observar o banal com outros olhos, também o espectador acaba por observar os acontecimentos factuais. Observar não é fácil. Quando observa uma simples maçã, a protagonista fica desapontada com a inspiração que não vem. Daí que se apercebe que a realidade e a dor dá material o suficiente para sentir e observar o mundo com outros olhos.

É notável a sensibilidade e simplicidade com que o realizador filma. O tom é naturalista, sem grandes recursos estilísticos, nem música, nem sentimentalismos extravagantes. Onde um simples jogo de badmington ou olhar para uma maçã acabam por ganhar poesia. Jeong-hie Yun, estrela sul-coreana, regressa depois de 15 anos de interregno. É ela que carrega o filme com a sua interpretação alineada, expressiva e solene, numa personalidade cheia de nuances. Se a dada altura, a sua interpretação remete para algo semelhante a Mother (2009), na verdade Chang-dong Lee acaba por trazer um olhar frio sobre essa temática forte. Porque Poesia é um exercício de exposição das personagens, dos humanos, dos sentimentos. Um filme sobre fragilidade, uma espécie de poesia incómoda, mas realista.

A poesia não é simplesmente aquilo que é belo, mas também aquilo que é sombrio, negro. A poesia é o que se sente. A forma como se escreve, como se vê, como se exprime o que sente. Poesia escreve-se entre imagens e entre silêncios, na forma como uma mulher acalma as suas dores pessoais na escrita de um poema ou a cantar num karaoke. Observar não é fácil, é preciso ter alma, ser delicado, subtil. É preciso sentir. E Poesia sente-se como uma auto-reflexão belíssima e encantadora, daí que não se escreva muito sobre ele. Não é para falar, é para sentir.
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Tiago Ramos, cinema2000



Há mais de uma década que esperávamos por um filme de Lee Chang-dong nas salas portuguesas. Mais vale tarde do que nunca, dirão os escassos chang-dongianos que possam estar desse lado. Até agora, ninguém tinha ainda dado 'tempo de antena' português a este belíssimo contador de histórias, atento aos obstáculos da vida e à beleza dos sentimentos. É preciso acertar o relógio: Lee é simplesmente um dos maiores vultos do cinema sul-coreano contemporâneo, um homem sensível que tem trabalho para descobrir com urgência. Falamos de um cineasta de 56 anos, antigo professor de liceu e romancista de nível reconhecido no seu país, que chega tarde ao cinema, já na casa dos quarenta.

"Green Fish" (1996), primeira obra, traz-nos um rapaz que deixa a tropa e volta à sua cidade natal, acabando por envolver-se em más companhias. "Peppermint Candy" (2000), extraordinário segundo filme, apresenta-nos a um homem, meio zombie, que o desespero leva ao suicídio durante um encontro de amigos. Estes constroem depois o relato da sua vida em flashback. A história recente da Coreia está em jogo. Chang-dong, que trabalha a escrita dos seus argumentos ao ínfimo detalhe e com talento natural para o fazer, começa a aceder a uma forma especial de melodrama que sentimos evoluir em lentíssima gestação. As suas personagens tendem subtilmente para a redenção, no sentido mais católico do termo, aspeto que não diríamos descobrir num cineasta coreano. O filme estreia na Quinzena de Cannes: é um êxito, Chang-dong 'entra no mapa'.

Está na competição de Veneza, em 2002, com esse improvável Romeu e Julieta chamado "Oasis", filme de um amor louco entre um jovem delinquente e uma paraplégica: novo mergulho no melodrama. Entre 2003 e 2004, surpresa: Lee entra na política e assume a pasta de ministro da Cultura do seu país. Tanto quanto sabemos, bateu-se a sério, o sr. ministro, e deu o que pôde para defender o novo e o que faz a diferença. Os coreanos não brincam com coisas sérias. Em 2007, volta às câmaras e a Cannes (competição) com "Secret Sunshine", história de uma jovem viúva com um filho de cinco anos. Tratam de refazer a vida na terrinha do pai da criança. Ela monta uma escola de piano. Mas o miúdo desaparece e o caminho da cruz da heroína começa: novo melodrama bate à porta. Uma vez mais, o cristianismo, a sua discussão e a sua dúvida, parecem ser a solução. Jeon Do-yeon, superstar na Coreia, deixa a Croisette com o prémio de melhor atriz. Chang-dong volta a Cannes dois anos depois, para o júri oficial presidido por Isabelle Huppert. Em 2010, está de novo na competição pela Palma de Ouro com este "Poesia" e volta a sair premiado (Melhor Argumento, não admira). Chegamos finalmente ao seu quinto e último filme. E pedimos desculpa pela demora da apresentação, mas como já se percebeu, Chang-dong impõe respeito.

Nas 2h20 de "Poesia", a sra. Yang Mija está em 99% dos planos. Yang Mija é interpretada por Yun Jeong-hie, uma extraordinária atriz coreana, muito popular desde os anos 60, que Chang-dong conta ter feito para cima de 300 filmes. A atriz retirou-se depois (não filmava há 16 anos) e só Chang-dong a convenceu a voltar a trabalhar. "Poesia" começa ao longo de um rio, com o cadáver de uma miúda do liceu a boiar e que depois sabemos ter-se suicidado. Logo a seguir, somos apresentados à senhora. É uma avó sexagenária. Educa o seu problemático neto, Jongwook, sozinha, numa cidade de província, já que a mãe do rapaz adolescente separou-se do marido e foi para Pusan. Seria injusto contar o que se passa depois porque "Poesia" é um filme extremamente emocional sobre uma senhora idosa a quem sucede uma série de provações. Também ela entrará numa igreja e olhará para a figura de Cristo. Fará o que pode para estar à altura das circunstâncias. Digamos apenas que, no hospital, pouco antes de a vermos inscrever-se num curso de poesia que lhe vai colorir os dias, ela recebe tristes notícias sobre o seu estado de saúde. E acrescentemos ainda que o neto Jongwook, juntamente com o seu bando de amigos, está na origem do suicídio da rapariga que vimos a boiar no rio no primeiro plano.

Não é possível deixarmos de recordar outras avós recentes do cinema contemporâneo que se sacrificam pelos netos, como as duas avós de "Lola", do filipino Brillante Mendoza, que à sua maneira é um 'filme gémeo' deste. Também à avó de Lee Chang-dong faltam as palavras e a memória, que a sua doença começa a fazer desaparecer, como se ela vivesse dessincronizada do mundo atual. Há um plano de pura mise en scene em que este aspeto é bem visível: o neto olha para um programa de entretenimento na TV e a avó, que o observa em silêncio, parece ficar aterrada, pois é incapaz de o compreender.

"Poesia" é um filme de uma ternura rara sobre a vida quotidiana. Tem personagens simples e pouco romanescas, como a sra. Yang Mija, para quem uma maçã - dirá ela depois de uma aula de poesia - "não foi feita para ser contemplada, mas para ser comida." Mas a avó de Lee Chang-dong descobrirá outro caminho. Antes da câmara voltar à água do rio onde o ciclo da vida acaba e recomeça.
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Francisco Ferreira, Expresso



ENTREVISTA AO REALIZADOR
Durante o processo de criação de um filme, quando é que escolhe o título? Quando e como lhe surgiu a ideia de fazer um filme sobre poesia usando literalmente o título “Poesia”?
Normalmente escolho o título do filme bastante cedo. Se não o fizer, não me consigo convencer de que o filme será feito. Há uns anos, ocorreu um caso em que vários rapazes de uma pequena cidade da província violaram uma rapariga de uma escola secundária. Durante algum tempo fiquei a pensar neste acto de violência mas sem ter a certeza de como iria contar esta história num filme. Em primeiro lugar, pensei numa história de um conto de Raymond Carver, “So Much Water So Close to Home”, mas pareceu-me um pouco vulgar. Então, uma manhã, num quarto de hotel em Tóquio, estava a ver televisão quando o título “Poesia” me surgiu. Acho que era um programa de televisão feito para turistas que passam noites em claro a jogar. Enquanto observava o televisor a emitir música meditativa por cima de paisagens extremamente típicas de pássaros a voar sobre um rio calmo, enquanto pescadores lançam as suas redes de pesca, percebi que este filme que lidava com este crime insidioso não podia ter outro título senão “Poesia”. A protagonista e o enredo foram concebidos quase ao mesmo tempo.
A minha companhia durante essa viagem foi um velho amigo que é poeta. Quando lhe falei do título e da história em que tinha pensado nessa noite criticou-o como sendo um projecto extremamente imprudente. Mas, estranhamente, as suas palavras reforçaram a minha convicção.

Quando pensou pela primeira vez em trabalhar com Yun Junghee? O público coreano vai reconhecê-la ou existe uma geração que já não o vai fazer?
Concordo que o público mais jovem, na casa dos vinte anos, não conheça muito bem Yun Junghee. A falha geracional no cinema coreano é muito profunda. Desde início, ou quando pensei numa mulher com cerca de sessenta anos, lembrei-me de Yun Junghee. Surgiu tão naturalmente como se fosse um facto inquestionável. Não teve qualquer importância que ela tenha estado afastada do cinema nos últimos 15 anos. O nome da personagem principal é Mija, o verdadeiro nome de Yun Junghee. Não foi intencional mas sim uma coincidência.

Quando é que pensou no tema da “demência”?
“Demência” foi uma palavra que me apareceu quase ao mesmo tempo que pensei nos três elementos centrais do filme: o título, “Poesia”; uma personagem feminina com cerca de 60 anos a tentar, pela primeira vez na sua vida, escrever um poema; e uma idosa a criar sozinha um rapaz adolescente. Ao mesmo tempo que a nossa protagonista aprende poesia, começa a esquecer-se das palavras. A demência claramente alude à morte.



O poeta que dá a aula nunca fala das técnicas de escrita de poesia, mas enfatiza a sua atenção em “ver as coisas verdadeiramente”. Da mesma forma, podemos relacionar poesia e cinema?
Sim. “Ver bem as coisas” refere-se à poesia, mas também se refere ao cinema. Alguns filmes ajudam-nos a ver o mundo sob uma outra luz. E alguns filmes deixam-nos ver apenas aquilo que queremos ver, enquanto outros nos impedem de ver o que quer que seja.

Ao longo da aula de poesia e do grupo “Love Poetry”, a poesia torna-se o elemento central deste filme. Acredito que a estrutura desta película tem uma relação muito próxima com a poesia. A razão pela qual prefiro este filme em relação aos seus outros filmes deve-se à fluidez que liga cada momento ao outro. É justo defini-lo como um filme “aberto”?
Como uma página com um poema, pensei num filme com muito espaço vazio. Este espaço vazio pode ser preenchido pelos espectadores. Nesse sentido, pode dizer-se que este é um filme “aberto”.

Creio que este filme tem um eco visual. Por exemplo, uma flor funciona desta forma com a flor vermelha, referindo-se ao sangue. Existe ainda a bacia de loiça no lavatório para a qual Mija olha. E depois, o poeta durante a aula de poesia explica que esta pode ser encontrada até mesmo num lava-loiças. Como se o filme estivesse a encontrar a sua própria rima. Da mesma forma, a queda do chapéu de Mija na água evoca o suicídio da jovem.
Como referiu, a flor vermelha está relacionada com o sangue. A beleza está muitas vezes associada à imoralidade. E as flores que por vezes são consideradas bonitas acabam por ser artificiais. O chapéu caindo ao rio evoca o suicídio da rapariga mas, acima de tudo, dá pistas sobre o próprio destino de Mija.

Outro tema relacionado é também o facto de a narrativa do filme ser deixada em branco. Para onde foi a Mija depois de deixar um poema escrito? Na última parte, quando ouvimos a sua voz a ler o poema, sentimos apenas a sua ausência mas não fazemos ideia do local para onde terá ido. Terá cometido suicídio?
Também quis manter isso em falta para que o público completasse. Ainda assim existe uma pista. A corrente do rio no final do filme sugere emocionalmente que Mija aceitou como seu o destino da rapariga. Tal como os pensamentos evocados pelos alperces caídos no chão.

Quando diz que os destinos de Mija e da rapariga se sobrepõem tem alguma relação com o último poema de Mija, “O Canto de Agnes”? A voz dela a ler o poema muda para a de Heejin. Sugere que estas duas personagens se tornam numa só?
Agnes é o nome de baptismo da rapariga morta. Assim, o único poema que Mija deixa ao mundo é escrito em nome da jovem. Em vez dela, Mija diz aquilo que a rapariga queria dizer ao mundo. Por isso podemos dizer que as duas se tornam numa só através de um poema.

Colocou a questão: “O que é a poesia num tempo em que a poesia se encontra a morrer?” E comentou ainda que essa é uma questão direccionada para o cinema num tempo em que também o cinema está a morrer. Os seus pensamentos sobre a poesia estão reflectidos no final do filme?
Quis apenas lançar esta questão aos espectadores. O público tem agora a chave para a resposta a esta pergunta. No entanto, um dos meus pensamentos sobre a poesia é a de que ela entoa em nome das emoções e pensamentos de alguém. Se alguém me perguntar porque é que eu faço filmes, eu posso responder: “Estou a contar a sua história por si”.
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Claude Mouchard





Título Original: Poetry (Shi)
Realização: Lee Changdong
Argumento: Lee Changdong
Fotografia: Kim Hyun Seok
Montagem: Hyun Kim
Interpretação: Yun Junghee, AN Naesang, Kim Hira, Lee David
Origem: Coreia do Sul
Ano: 2010
Duração: 139’



O CANTO DE AGNES
Mãe...
Como é isso por aí?
Sentes-te muito só?
Ainda vês o clarão avermelhado
Do anoitecer?
Os pássaros ainda cantam
A caminho da floresta?
Aceitas esta carta
Que não me atrevi a mandar?
Posso transmitir-te
A confissão que não ousei fazer?
Passará o tempo
Fenecerão as rosas?
É chegada a hora
De dizer adeus
Como o vento que se demora
Para depois partir
Como sombras
Às promessas que nunca chegam
Ao amor selado até ao fim
Às ervas
Que me beijam os tornozelos
Aos minúsculos passinhos
Que me seguem
É chegada a hora
De dizer adeus
Agora que a noite cai
Voltar-se-á a acender alguma vela
Aqui rezo
Ninguém chorará
E para que saibas
Quanto te amei
A longa espera
Em pleno escaldante dia de Verão
Um velho caminho
Que lembra o rosto do meu pai
Até a mais solitária flor silvestre
Timidamente se recolherá
Quão profundamente amei
Como estremeceu o meu coração
Ao ouvir tua ténue canção
Abençoo-te
Antes de atravessar
Este sombrio rio
Com o último fôlego da minha alma
Começo a sonhar
Uma soalheira e luminosa manhã
Mais uma vez acordo
Ofuscada pela luz
E te encontro
À minha frente
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