Qual a verdade da mentira em DOS HOMENS E DOS DEUSES? Ajuize por si, 2ªf, IPJ, 21h30.


O filme de Xavier Beauvois (site) conta a história de uma pequena comunidade de monges cistercienses do Mosteiro de Nossa Senhora do Atlas, na Argélia, vivida em 1998 durante uma guerra justamente considerada como "assimétrica". Uma história que prescinde de efeitos narrativos para entrar directamente não apenas na intimidade do grupo mas também na interioridade de cada um daqueles homens. Um filme feito de imagens puríssimas e de silêncios quase absolutos onde o uso da palavra, frequentemente cantada, é tão-só uma forma de oração. Todos os ruídos fortes que quebram este manto de silêncio soam como o prenúncio do mal, da desarmonia e da destruição: veículos, helicópteros, armas.

É uma narrativa sobre o martírio, a possibilidade do martírio que, bruscamente, se coloca àquela pacífica comunidade de monges franceses, algures no Atlas, que escolheram viver na pobreza e na partilha. A maior arte desta narrativa cénica é conduzir-nos a todos, actores e espectadores, através de um episódio breve e intenso até um desfecho inevitável, fazendo juntos, eles e nós, todo um processo intelectual de dúvida, medo, recusa e outro espiritual, de graça e aceitação.

Logo após os primeiros actos terroristas, a comunidade é advertida pelas autoridades argelinas dos riscos que corre e aconselhada a partir. A decisão deve ser tomada por votação como sucede nestas comunidades monásticas. Os acontecimentos que alteram o espiritual e laborioso quotidiano dos frades apanham oito homens de surpresa, todos religiosos mas todos diferentes. O processo individual de cada um em busca do que é certo ou errado, dos limites da sua própria resistência e a dura prova a que são submetidas as suas consciências é exemplar do ponto de vista do que possa ser a fé e a vocação. "Vim para cá para ser monge, não para me deixar degolar", diz um deles. "Que sentido tem deixar-nos morrer aqui?", pergunta outro. Porquê não aceitar a protecção do governo? Quem tem a protecção de Deus deve aceitar protecções corruptas? E sair, ir embora, regressar a França ou juntar-se a outra comunidade num local mais seguro? Como é possível abandonar esta população indefesa que confia em nós? Interrogam-se outros.

Um processo que se vai fazendo através da oração, da amizade que os une forjada numa vida pobre, simples e de entrega ao próximo, de vozes que cantam juntas, de diálogos curtos e densos, de gestos físicos, tímidos e fraternos até alcançar a revelação. Percebemos como é importante para o Irmão Christian, cooptado para dirigir a comunidade e estudioso do Corão, a componente religiosa do conflito: o diálogo entre ele e o chefe do GIA, na noite de Natal, é um momento sublime. Tal como os diálogos entre o Irmão Canalizador e o Irmão Christian sobre vocação e dúvida, ou entre o Irmão médico e a rapariga árabe sobre a exaltação da paixão humana. Alguma vez sentiu isso? Pergunta ela. Muitas vezes, até que um amor maior que todos os outros me levou. Responde. Ou quando o Irmão Christian estabelece a relação entre a noite de Natal, o Mistério da Encarnação e a Paixão de Cristo, transpondo-a para o próprio destino da comunidade. Ou, quando interpelado por outro Irmão sobre qual o sentido de morrerem ali, responde que é o mesmo sentido que os fez querer ser monges: não morremos para sermos heróis, morremos por fidelidade a Deus.

Apesar dos mimos, raros naquela comunidade pobre - duas garrafas de vinho, um queijo e O Lago dos Cisnes como música de fundo - o último jantar lembra, de forma pungente, a Última Ceia. Sorrisos, risos e depois lágrimas num tempo de vésperas.

A intensidade da história, a simplicidade daquela comunidade, a força do destino daqueles homens, a espiritualidade, a pureza, o silêncio, a humanidade e o sacrifício supremo fazem deste filme uma raridade. Curiosamente, ou talvez não, os espectadores agradeceram.
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Maria José Nogueira Pinto, Diário de Notícias



E certamente capricho do acaso que estreiem na mesma semana um filme de Xavier Beauvois e outro de Alain Guiraudie, os dois mais importantes cineastas franceses nascidos nos anos 60; aqueles que, depois da paternidade da Nouvelle Vague, melhor partiram, cada um por si, para uma cinefilia autodidata, em busca do seu próprio terreno. E se do poético e libertário Guiraudie até já tinham chegado fotogramas cá ao retângulo, de Beauvois, ele que até gosta do 'princípio, meio e fim' de uma história sem nunca se ter resguardado em elitismos de autor, ele que jamais fez parte do limbo e do magma dos imbecis, nunca as salas portuguesas ouviram falar. Até hoje. Quem explicará tal miséria?

Começamos, portanto, tarde e a más horas, com o opus cinco de Beauvois, filme intenso - os quatro anteriores não o foram menos. Tem um belo título, "Dos Homens e dos Deuses". Grande Prémio do Júri de Cannes 2010. O seu maior êxito comercial até à data (mais de dois milhões de entradas em França).

O filme que representará a França na candidatura ao 'Óscar dos estrangeiros'. Nada disto quer dizer grande coisa... mas, enfim, a distribuição abriu os olhos.
Deuses e homens, altos e baixos, o céu e a terra - sempre os houve no cinema de Beauvois. As suas personagens deterministas sempre estiveram entre uns e outros. Foi assim com a desintegração familiar do pialatiano "Nord", com o negro romantismo de "N'Oublie Pas Que Tu Vas Mourir", com o idealismo do jovem recruta da polícia de "Le Petit Lieutenant". Beauvois adensou mais o mistério entre estas duas fronteiras metafísicas ao interessar-se por um certo mosteiro perdido nas montanhas do Magrebe em que decorre "Dos Homens e dos Deuses".




Estamos nos anos 90. Oito monges franceses cristãos vivem em harmonia com o povo muçulmano - mas essa harmonia vai terminar. O filme inspira-se num facto real: as últimas semanas de vida dos monges cistercienses do mosteiro de Thibirine, na Argélia, raptados e degolados em 1996 por extremistas muçulmanos, em condições que permanecem ainda misteriosas. Nas duas horas de filme, sentimos a violência crescer, pouco a pouco, passo a passo, até ao insustentável. E perguntamo-nos, tal como pergunta Beauvois: porque esperaram pela morte aqueles monges?, o que levou os irmãos Christian, Luc ou Christophe, homens de fé (abandonados por Deus?), a cerrarem ainda mais as fileiras, mantendo-se unidos perante a escalada do terror?

Beauvois nada vai acrescentar ao fait-divers de uma história que, todos sabem à partida, tem final terrível. O que lhe interessa não é o aspeto trivial e jornalístico do episódio, nem sequer aquilo que, para muitos, será o tema fundamental do filme: o extremismo religioso (e, para escavar mais fundo, o terrorismo). Além disso, temos 'más notícias' a dar: Beauvois não é, nunca foi um 'cineasta de temas'. Será por isso que aqueles monges, a partir de certo ponto, se olham entre si como quem olha sereno para a luz de um vitral? Quanto mais apela ao divino (ou à falta dele), mais este filme se toma humano.



Acontece que as personagens de Beauvois, numa direção de atores irrepreensível, se 'elevam', religiosa e moralmente, ao encontro de outras criaturas (místicas) da história. Blasfémia? Não: Beauvois guarda uma distância que dá provas da sua modés¬tia. Não se trata aqui de imitar o que fizeram Dreyer, Rossellini ou Bresson. Apenas de tentar manter um tom de humildade que, essencialmente, documenta gestos do quotidiano, procurando ficar à altura daqueles que estão à nossa frente.

As personagens, por outro lado, são o maior segredo do filme. Consagrados à vida monástica, os monges de Beauvois manter-se-ão fiéis a uma forma de resistência que os condena a ficar - e vão até ao fim do sacrifício. Até que aquele receio de morrer se transforme numa certeza pacificadora, fraternal, que se sabe pronta para o que vai receber. Nesta transformação está a profissão de fé de um filme torturado, controverso, que desafia a nossa consciência.
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Francisco Ferreira, Expresso





Título Original: Des Hommes et des Dieux
Realização: Xavier Beauvois
Argumento: Xavier Beauvois , Etienne Comar
Interpretação: Lambert Wilson, Michael Lonsdale, Olivier Rabourdin, Philippe Laudenbach, Jacques Herlin
Direcção de Fotografia: Caroline Champetier
Montagem: Marie-Julie Maille
Origem: França
Ano de Estreia: 2010
Duração: 120’
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