4ªf, SEDE, entrada livre, 21h30. BABEL. Beautiful Iñárritu?

Numa montanha, em Marrocos, um pai manda os dois filhos guardar o rebanho de cabras armados com uma espingarda. Em San Diego, uma ama devotada (e imigrante ilegal) recebe um telefonema do patrão antes da ida ao casamento do filho, no México. Richard quis reaproximar-se da mulher, Susan, numa viagem a Marrocos, mas a tensão dela é óbvia até que um acidente reaproxima o casal. Em Tóquio, uma adolescente muda, Chieko, insubordina-se contra tudo e todos e assume um comportamento sexualmente exibicionista. Alejandro González Iftárritu, distinguido pela realização deste Babel na última edição do Festival de Cannes, volta a usar - como em Amor Cão e 21 Gramas – uma estrutura narrativa fragmentada para cruzar histórias que, num efeito borboleta, têm repercussões umas sobre as outras, e para actualizar a parábola bíblica relativa ao desentendimento entre os homens, após uma punição divina os ter posto a falar línguas diferentes.
Como traduz isto em plena globalização? Pela abordagem da incomunicação entre culturas, potenciada pela hegemonia política de uns sobre os outros, mas olhando sobretudo as relações pessoais e familiares. E se a (des)estruturação de Babel - que torna o filme pouco imersivo - ilustra justamente a entropia gerada no actual status quo, a realização humaniza as personagens dispondo a história de Susan e Richard no centro e usando excelentes actores.

Servido, além do mais, pelos dotes de dois cúmplices habituais - Guillermo Arriaga como argumentista e Rodrigo Prieto como director de fotografia -, Iñárritu não aprofunda os dramas individuais mas usa¬-os para sublinhar o desentendimento que separa e afasta. E realça como, em situação de crise, a actual o mundial detemina as possibilidades de uns resolverem os seus problemas contra a improbabilidade de que outros seja ouvidos e entendidos...

Babel é um filme com consciência. Assume um ponto de vista, humano, e com escala global, para reter as assimetrias. Faz parte de um cinema transversal, realizado a partir de dentro do sistema, com meios e estrelas e tudo - como O Fiel Jardineiro de Fernando Meirelles -, que, talvez devido à origem dos seus criadores, desafia a bitola norte-americana. Acontece porque a grande democracia existe e o poder da indústria de entretenimento é imenso. Será. Mas tem olhar e dá dimensão ao ser humano e não apenas ao ser ou querer ser americano.
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Maria do Carmo Piçarra, Premiere, Fevereiro 2007


Quatro histórias, quatro países, seis idiomas, centenas de actores (e não actores). Com tudo isso lidou Alejandro González Iñárritu para completar a sua “trilogia da dor” (iniciada com Amor Cão e 21 Gramas). Brad Pitt, Cate Blanchett e Gael García Bernal são os nomes mais conhecidos do grande elenco de um filme feito a partir das entranhas, duríssimo mas cheio de esperança, que nos é apresentado pelo cineasta.

Tragédia, dor, incomunicação, amor, família, diferença... temas universais que, nas mãos de Alejandro González Iñárritu (Cidade do México, 1963) costumam resultar em cinema de grande qualidade. Três filmes feitos das entranhas resumem um modo de entender a vida e o trabalho: Ser cineasta é como ser toureiro, diz de forma assertiva. É uma atitude, uma forma de vida, nada improvisada. Este é um trabalho de sobreviventes. É necessária uma força muito especial, emocional, intelectual, física. A verdade é que o cineasta não concebe outro cinema senão o que represente um envolvimento pessoal muitas vezes tormentoso. Para mim, o cinema é a vida. Pelo menos o cinema que faço, que é a extensão de mim mesmo, que nasce do Sol que me queima o estômago. Os meus filmes são um testemunho da minha experiência vital, com as minhas infinitas limitações e as minhas poucas virtudes. É evidente que há um processo intelectual, mas a semente dos meus filmes não é calculada, não surge de um processo científico, metodológico. Há um lado obsessivo no meu cinema, continua, os temas são muito pessoais. Não se tratam de filmes autobiográficos, mas identifico-me com eles em muitas coisas. 21 Gramas, por exemplo, foi uma necessidade. A minha esposa e eu perdemos um filho, e esse filme foi um processo de entendimento, de coragem e de frustração. Foi muito doloroso. De qualquer forma, os projectos nunca foram pensados em forma de trilogia.

A SUA CARA METADE
Pensado como mosaico de histórias sobre as diferenças entre os seres humanos, o processo de escrita de Babel levou-o a tornar-se uma reflexão sobre o amor e a dor, que é o que une todos os seres humanos. As coisas que fazem felizes uma criança marroquina e uma japonesa não são as mesmas, mas as que lhes provocam dor são. Iñárritu apresenta quatro histórias cruzadas em outros tantos países: Era uma ideia que tinha em si a semente do fracasso, confessa o realizador, reconhecendo certa ambição. Tinha um desenvolvimento muito difícil, mas Guillermo gostou dela e começámos a trabalhá-la.

Iñárritu considera Guillermo Arriaga a sua cara metade profissional, o homem que coescreveu Amor Cão, 21 Gramas e, agora, Babel. Um parceiro perfeito que deixará de sê-lo. A ruptura laboral, provocada por um choque de egos (e por certas desavenças económicas), tornou-se inevitável: Acho que é muito importante que ele se desenvolva, que siga em frente com a exploração que está a fazer como cineasta (acaba de produzir um filme, Los Búfalos de la Noche, baseado no seu próprio romance, e realizará outro, um projec-to ainda muito no início que se intitulará El Sol de los Venados). Encerrámos um ciclo muito produtivo, de muito êxito.

Sem rancores aparentes, lñárritu destaca o lado positivo da sua colaboração: Entre nós há
um intercâmbio interminável de ideias. Guillermo tem uma técnica e uma capacidade de
escrever que lhe permite ordenar toda aquela voragem, aquele mundo caótico que às vezes proponho. Eu, em troca, tenho um deficit de atenção muito poderoso. Não me consigo concentrar mais de dez minutos em algo.

Em qualquer caso, ambos fizeram uma arte do cruzamento de histórias diferentes. Um estilo que cultivaram de forma brilhante nas suas três longas-metragens. O cinema permite explorar dimensões diferentes simultaneamente, aponta, e acrescenta: Gosto muito desse olhar, talvez pela incapacidade de fazer algo longo, ou talvez porque estamos influenciados pela vida tão fragmentada que temos... Não sei. Mas parece-me que este modo de contar oferece oportunidades dramáticas bem bonitas. De qualquer forma, sublinha, neste filme há uma maior linearidade que nos outros que fiz. E há uma outra diferença: Babel é um filme com muita esperança.

ESTRELA EM MARROCOS
Gente normal. Era disso que necessitavam as quatro histórias de Babel. E González Iñárritu, irónico, enfrentou os preconceitos. Com Brad Pitt foi um capricho. Gostei de castigá-lo, envelhecê-lo, transformá-lo num ser humano e conseguir que as pessoas se esqueçam que esse homem era Brad Pitt. Era como plantar uma palmeira num bosque de pinheiros. E fazer que a palmeira não fosse palmeira. O mais curioso é que Brad não era uma estrela na rodagem porque ninguém o conhecia. Era mais um. Estávamos a rodar numa aldeia (Taguenzalte) sem luz, no meio do nada. As pessoas são muito humildes, não têm televisão. Acho que isso o ajudou, porque foi difícil para ele fazer essa personagem.

Outro dos contratempos com que Pitt se deparou foi o argumento. lñárritu explica: Reescrevia o argumento, reestruturava-o sem¬pre que mudávamos de país, consoante as culturas e limitações. Passei o tempo todo a ajustar, a tirar e pôr, a escrever... Foi uma tarefa muito solitária. No caso do Brad, eu queria contar a história dele do ponto de vista da sua esposa, a partir do sofrimento de uma mãe de dois filhos que tinha perdido um terceiro. Originalmente, no argumento, Brad era-lhe infiel. E três semanas antes da rodagem mudei isso, porque me parecia uma vulgaridade. A morte de um filho funcionava porque criava uma implosão muito mais profunda entre eles. Brad não tinha filhos naquela altura e não entendia esta mudança, custou-lhe lidar com um novo elemento dramático.

Além de Pitt, Iñárritu conta com Cate Blanchett, os japoneses Rinko Kikuchi e Yôji Kakusho (Memórias de uma Gueixa), os mexicanos Gael García Bernal e Adriana Barraza e, em pequenos papéis de polícias fronteiriços, Clifton Collins Jr. (Traffic - Ninguém Sai Ileso) e Michael Peña (World Trade Center). Foi um acto de generosidade da parte deles, porque me ajudaram a que o trabalho dos não profissionais (há vários no filme) resultasse credível. E suportaram estoicamente o estilo do realizador: Rodo de forma muito tensa. Não sou implacável, mas sim torturador, muito meticuloso em tudo: do argumento aos créditos. Sou demasiado controlador. E quando dirijo actores posso fazer 75 takes sem me ralar, até eles fazerem o que acho que devem fazer.

MADE IN MÉXICO
Outro grande tema de Babel é a emigração. A personagem de Adriana Barraza (a assistente de um casal americano de classe média-alta que decide levar as crianças de que cuida ao casamento do seu filho, no México) experimenta na própria carne a humilhação dos polícias fronteiriços, algo que vivo frequentemente e que me indigna, conta o realizador. Nos EUA, há uma paranóia de império, onde ser estrangeiro é quase um delito e as fronteiras são um ritual de humilhação. No final, essas fronteiras físicas convertem-se em ideológicas. Estamos a construir muros que nos inabilitam de comunicar com os nossos filhos e mulheres. Os governos não ficam limitados, o que acaba contaminada é a nossa vida quotidiana. Isso é plasmado no filme, embora Alejandro González Iñárritu esteja agradecido ao país que o acolheu. Ou, pelo menos, aos efeitos que tiveram nele a mudança para o outro lado do rio. Viver nos Estados Unidos deu-me vulnerabilidade, despertou-me, questionou-me, perspectivou-me, retirou-me da minha zona de conforto, da minha área segura. Submergiu-me numa sociedade diferente, complexa, contraditória. Pessoalmente não foi fácil, mas como artista é um caldo de possibilidades que me desperta, que me estimula e que me incomoda. Sair foi uma opção de alto risco. E isso fascinava-me.

Em qualquer caso, o cineasta não esquece as suas raízes, embora ele as situe além do puramente geográfico. Em Babel, há um ponto de vista muito determinado. Este mesmo filme feito por um primeiro-mundista teria sido muito diferente. O milagre da arte é o que está entre o olho e o objecto, que é a percepção do artista. O meu olhar partirá sempre de uma latitude, a da experiência vital. Acho que a infância de uma pessoa é a sua pátria. A sombra que eu projecto acompanhar-me-á toda a vida. Para mim, a pátria não é um território, nem uma fronteira nem uma bandeira. É uma ideia, é um ponto de vista. Vai além de uma questão geográfica.

CATE BLANCHETT
Na crista da onda após o seu Oscar como Melhor Actriz Secundária por O Aviador. Cate Blanchett encadeia rodagens a um ritmo endiabrado. Tem três filmes prestes a estrear: The Good German, com George Clooney; Notes on a Scandal, em que contracena com Judi Dench e Babel, onde é uma turista americana que é alvejada numa viagem por Marrocos. Sobre o seu envolvimento em Babel, Cate explica: Queria trabalhar com Alejandro (González lñárritu), que adoro e admiro. Ainda por cima, quanto mais falávamos sobre o meu papel, mais me entusiasmava o desafio. O mais difícil foi retratar a complexidade de uma frágil relação de casal, a da minha personagem com a de Brad (Pitt), através de muito pouco diálogo e em muito pouco tempo. Com esses meios mínimos, devíamos dar densidade a um conflito sentimental que tinha de ser projectado a todo o filme.

Blanchett acha que Iñárritu consegue criar uma atmosfera incrivelmente intensa no set. Assim retira todo o potencial criativo dos envolvidos no projecto. Vive o trabalho dele com uma paixão transbordante e quando estamos ao lado dele, percebemos a sua capacidade de entrega ilimitada. Sentimos que coloca a vida em cada plano que filma.

Cate adorou contar com Brad Pitt como companheiro de rodagem: É muito divertido e aberto, e fazia-me rir continuamente. Também me ajudou a compreender o meu trabalho como actriz, e de uma persrpectiva desconhecida. Costumo ser muito emocional na construção das minhas persona¬gens, mas ele cuida mais os aspectos estético, os detalhes gestuais. Não parava de fazer perguntas a Alejandro, questões que nunca me teriam ocorrido. E isso foi uma ajuda suplementar excepcional.

GAEL GARCIA BERNAL
Os latinos têm em Gael García Bernal um dos seus pontas de lança, um actor cujo valor supera qualquer fronteira nacional e cinematográfica. Honra ganha a pulso após anos de valioso trabalho, que despontou pela mão do realizador com quem volta a colaborar em Babel. Para mim, este filme significou essencialmente um feliz reencontro com muita da gente com quem trabalhei em Amor Cão. Sobretudo Alejandro (González lñárritu), mas também Rodrigo Prieto (director de fotografia), assim como a maioria da equipa técnica.

Gael comenta a sua primeira reacção à leitura do argumento de Babel: Pareceu-me um projecto ambicioso, com muitas histórias e um discurso unificador de enorme fundo político e moral. Mas só capturei a sua dimensão colossal quando o vi terminado. É incrível como Alejandro utilizou o poder metafórico do mito de Babel. Vivemos o paradoxo de um mundo aparentemente global em que cada vez estamos mais afastados. Devemos começar por ouvir-nos uns aos outros ou a torre de Babel que é o mundo pode acabar por ruir.

Sobre a vontade política do filme, Gael pensa que em grande parte ela deve-se à origem mexicana de Alejandro. O México é um país muito politizado. A política é um tema recorrente em toda a convers, seja familiar; íntima ou de rua. Na minha parte do filme esboçam-se problemas como a imigração e o aumento nos controlos de segurança na fronteira com os EUA. A minha opinião pessoal é que o melhor seria que as pessoas que quisessem pudessem ir trabalhar nos EUA de forma legal, mesmo que com uma permissão de trabalho temporário. Assim não haveria tanta gente a arriscar as suas vidas e, ainda por cima, estas pessoas pagariam impostos e seriam até melhor para os governos. Sobre a segurança na fronteira, não acho que construir um muro vá resolver as coisas. Um muro é fácil de derrubar. O prioritário deveria ser atacar as raízes e origens da pobreza.
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Àlex Montoya, Première, Dezembro, 2006




Título Original: Babel
Realização: Alejandro González Iñárritu
Argumento: Guillermo Arriaga
Interpretação: Brad Pitt, Cate Blanchett, Gael Garcia Bernal, Adriana Banraza
Direcção de Fotografia: Rodrigo Prieto
Montagem: Douglas Crise e Stephen Mirrione
Música: Gustavo Santaolalla
Origem: EUA/México
Ano de Estreia: 2006
Duração: 124’

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