RUÍNAS NO INTERIOR - voltamos ao Museu, mas desta vez começamos numa 4ªf. a de 12. 21h30. depois, continua até ao fim do mês nos moldes do costume.

Regressado a Portugal em 1973, após treze anos de formação e experiência em Inglaterra, José de Sá Caetano viu aprovado, pouco antes do 25 de Abril de 1974, um projecto de longa metragem - cuja rodagem decorreu, já, entre o Verão e Outubro de 1975, vindo a intitular-se As Ruínas no Interior. Sá Caetano reparou que, “no poder e suas margens, estavam então os que eram adolescentes, à época em abordagem”. A acção decorre por 1943, próximo duma aldeia de pescadores, durante as férias da Páscoa. Um avião de combate despenha-se no mar, junto à praia, sobrevivendo os dois tripulantes - que serão protegidos pelos filhos de uma belga ali refugiada.

A produção coube à Tobis Portuguesa, a cargo de Henrique Espírito Santo, sendo o orçamento avaliado em 3.500 contos. Elso Roque dirigiu a fotografia, com exteriores em Olhão - Marim, Ilha de Armona e Costa de Caparica. Em sugestivo preto-e-branco na definição de atmosferas, mistérios e cumplicidades, com rigorosa construção narrativa ou dramática, As Ruínas no Interior foi galardoado em 1977 com o Prémio à Primeira Obra, no Festival de Hyères.
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(Instituto Camões)


Situado durante a Segunda Guerra Mundial, As Ruínas no Interior é um filme belíssimo e dolorido, assente nos contrafortes da memória e da mágoa.

Travessia de um tempo de silêncio, lugar de uma infância burguesa, placidamente triste, esta película em que Sá Caetano se inicia na longa-metragem de ficção é uma das esperanças mais seguras do cinema português da década de 70.

As Ruínas no Interior marca, por assim dizer, o princípio de uma reflexão sobre as raízes do nosso presente, não enjeitando origens de classe, nem oblíquas fascinações, antes esforçando-se por fixar, pedra a pedra, o espaço de uma realidade social, no seio da qual muito do que hoje somos encontra seiva e impulso.

Extremamente sóbrio, preciso, económico de meios, este filme é feito de ritmos asfixiantes, durações de tédio, uma paz poder nos arredores do medo; por isso é um filme apaixonante.
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Jorge Leitão Barros, Dicionário do Cinema Português 1962-1388

Portugal, 1943. Semana Santa na costa algarvia. Uma casa palaciana de influência árabe, os seus velhos senhores em visita de férias, uma belga refugiada, crianças. A neutralidade portuguesa durante a Segunda Guerra Mundial vista pelos olhos e pela memória de uma criança, hoje cineasta. José de Sá Caetano nasceu em Portugal, em 1933. Teria dez anos quando viveu seguramente o que agora recorda. Depois estudou arquitectura, e foi até Londres, onde se formou em cinema pela London School of Fihn Technique e pela Salde School of Art. Antes do 25 de Abril, já em Portugal, foi vivendo, trabalhando em cinema digestível (anúncios, etc), até que pôde, finalmente, rodar o seu primeiro filme pessoal: "As Ruínas no Interior", um filme que data ainda do plano de produção de 1974, última atribuição de subsídios do Ministério de Moreira Baptista, mas que Sá Caetano pôde, felizmente, realizar em completa liberdade. "As Ruínas no Interior" denuncia-se desde logo como obra confessional, de quem fez suas aquelas mesmas imagens (ou outras idênticas), vividas durante os anos de uma guerra, "perdoados" a Portugal. Na costa algarvia, a burguesia portuguesa improvisava piqueniques ritualistas, que relembravam à distância o "déjeuner sur l'herbe" dos franceses Renoirs. "Vamos sentir a vossa falta, quando acabarem as férias", confessa a belga refugiada, dirigindo-se ao casal de anfitriões. "Tempo de férias", as "férias" de um Verão de 43 português. Um tempo cristalizado que se situa entre o Verão romantizado por Mulligan e o Verão violento de um Zurlini, a sofrer na carne a guerra. Um tempo de guerra português, que era necessário ver reconstruído, mesmo com "um suceder de cenas de uma família teatral, com propensão trágica". É pois, o próprio filme que nos fornece um país que passa ao lado de uma guerra (Salazar negociando as listas de resistentes portugueses com a Inglaterra, a quem cede ainda bases militares nas ilhas, a troco da sobrevivência do regime fascista). Um país onde, para lá das brincadeiras de crianças que se salpicam à beira-mar, existem as tensões latentes e apenas encobertas: resistência que trabalha na sombra reunindo então a burguesia liberal e o proletariado (que ouve notícias das frentes através da voz de Fernando Pessa, via BBC), a repressão que vigia de perto e de longe, e no momento exacto irrompe do nevoeiro, que tudo envolve, para se mostrar activa e sempre presente: os desequilíbrios sociais gravosos. Será neste pântano adormecido que irão cair dois pilotos de um "caça" inglês. Homens sequiosos da sua terra ("Quando esta guerra acabar vou ver 'E Tudo o Vento Levou'") que vêm despertar emoções esquecidas. Depois da sua rápida passagem pelas praias do Algarve, as brincadeiras das crianças são já outras, marcadas agora pelos "raids" aéreos, pela descoberta de uma guerra longínqua, da qual junto a si têm apenas as silhuetas dominadoras dos guardas do templo dessa felicidade fictícia.

O que mais surpreende nesta primeira obra é a rigorosa secura da sua escrita, sacudida, impondo a ruptura como constante, de grande expressividade visual, denotando uma sensibilidade intimista que recusa a demagogia fácil e a demonstração de virtuosismo estéril. Estamos seguramente na presença de um cineasta de quem haverá muito a esperar, o que pode já vir a acontecer na sua próxima obra, a adaptação do romance de José Cardoso Pires "O Delfim".
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Lauro António, in Diário de Notícias, 3 de Novembro de 1977

Os filmes de Sá Caetano são verdadeiros «objectos estéticos não identificados». Não se inserem em nenhuma tradição explícita, não se referem a nenhum outro campo artístico privilegiado (nem a literatura, nem o teatro, nem a pintura). Mas há mais do que isso: são obras que parecem viver voltadas para dentro de si mesmas, não desferem sinais para o exterior, não enviam apelos. A imagem em Sá Caetano recolhe-se numa espécie de ensimesmamento. Quem recordar sem grande atenção As Ruínas no Interior e o filme seguinte de Sá Caetano, estranhamente intitulado Um S Marginal, poderá supor, e com motivos de sobra para tal, que se trata de duas películas inteiramente estranhas uma à outra. Até certo ponto, isso é verdade. Mas elas são estranhas uma à outra porque são estranhas seja ao que for, e é essa estranheza, esse modo convicto com que parecem repelir qualquer aproximação. que as irmana. (...)

Nenhuma das suas histórias tem uma origem e um desenlace, todas elas parecem surpreendidas a meio de um desenvolvimento cujas pontas nos escapam. Mas este filmar a meio de é uma constante de Sá Caetano. Porque o filme também não é uma galeria de perfis psicológicos; pelo contrário, as personagens têm contornos tão precários que mal chegam a emergir da nebulosa narrativa donde parecem cair. Mas também não é um filme que se sustente como documento sociológico: as oposições que se estabelecem são quase sempre sumárias e parecem resumir-se a um paradigma pobreza/ riqueza «que fazem as crianças ali penduradas na arvore?», pergunta a mãe; «estão a vê-los comer», responde a criada. É esta silenciosa ruminação de todos os sentidos que confere ao cinema de Sá Caetano uma opacidade inamovível.

Tal opacidade perturba e desconcerta na medida em que um grande apuro formal parece denunciar uma premeditação imensa neste trabalho. E, por outro lado, a constante utilização de uma montagem em paralelo cria a suposição de que as múltiplas interferências de imagens irão desencadear uma teia de significações. Ora o trabalho do filme é, à maneira de Penépole, um adiar obstinado dessa teia. Certas imagens caem sobre outras imagens com o mesmo acaso cósmico com que descem do céu os dois sobreviventes de um avião perdido no mar.

O que pode existir de fascinante em As ruínas no interior é a sensação de estarmos perante um documento histórico que se refere a realidades irreconstituíveis e que pertence a parâmetros de comunicabilidade definitivamente perdidos. Não será por acaso que este cinema do ensimesmamento nos irá dar, com Um S Marginal. um filme sobre os efeitos perversos das tecnologias contemporâneas da comunicação.
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Eduardo Prado Coelho, Vinte Anos de Cinema Português – 1962-1982

Realização: José de Sá Caetano
Argumento: José de Sá Caetano
Fotografia: Elso Roque
Elenco: Françoise Ariel, Keith James, Brian Ralph, Jacinto Ramos, Catarina Avelar
Música: Rui Cardoso
Montagem: José de Sá Caetano e Clara Diaz Bérrio
Produção: Tobis Portuguesa


Dia 12, 21h30; de 13 e 30 Janeiro em sistema de sessões contínuas entre as 10 e as 16h, Museu Municipal (sala audiovisual r/c), entrada livre.
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