2ªf, 15, IPJ: Um filme grego virulento, feroz, francamente original, em que todos os valores da célula familiar são levados ao passevite.

NOTAS DO REALIZADOR
A ideia para o Canino (site) nasceu da especulação sobre o que seria o futuro da família.
Como evoluiria este conceito (se é que evoluiria de todo)? O que aconteceria se este organismo social, tal como o conhecemos, se extingue-se de todo? O que seriamos capazes de fazer para o tentar conservar? O que aconteceria aos envolvidos? Quão destorcidos podem ficar os corpos e as mentes após terem sido isolados e manipulados?
Trabalhámos com os actores numa perspectiva física e verbal mais do que intelectual. Queríamos descobrir o que aconteceria às faculdades humanas mais básicas e fundamentais – como a linguagem, as palavras e o senso comum – quando submetidas a situações extremas: em que posição ficaríamos? Que problemas práticos seríamos forçados a enfrentar?
O universo de Canino tem lugar em qualquer tempo. Não existem quaisquer elementos que nos indiquem se a acção do filme decorre na actualidade, há muito tempo atrás, ou algures no futuro.
Yorgos Lanthimos



Um poema de comédia negra sobre a disfunção, uma verdadeira opereta da auto-mutilação, este brilhante e bizarro filme do grego Yorgos Lanthimos contém actores soberbos. O filme cativa-nos desde as primeiras cenas. Canino pode ser lido como o exemplo superlativo do cinema do absurdo ou simplesmente o total oposto – um profundo e clínico retrato íntimo do realismo psicológico.
Peter Bradshaw, The Guardian


A segunda longa-metragem do grego Yorgos Lanthimos venceu Un Certain Regard em Cannes 2009 e tem vindo a acumular prémios um pouco por todo o mundo, entre os quais o grande prémio do Festival do Estoril. É um "jeu de massacre" formalista e glacial que cruza a crueldade desconfortável de Michael Haneke (ou do "Home" de Ursula Meier) com o isolamento da "Vila" de M. Night Shyamalan no seu olhar surrealista sobre o núcleo familiar. O pai, gestor numa fábrica, é o único laço com o mundo deste clã que vive numa casa isolada no meio do nada, e cujos três filhos, que já há muito passaram a adolescência, nunca sairam dos terrenos, tendo sido inteiramente educados pelos pais e mantidos à parte de quaisquer influências externas. Lanthimos nunca nos explica os motivos ou a lógica desta experiência educativa radical, desenhada de modo tão vago que cada espectador poderá projectar nela a metáfora que bem entender. Independentemente de se gostar ou não de "Canino", inegável é o talento e a inteligência do realizador, visível no modo como encena meticulosamente cada momento, cada plano, cada corte para criar exactamente o efeito que pretende, com uma segurança quase ofensiva no modo como tudo está no sítio certo.
Jorge Mourinha, Público


Giorgios Lanthimos filma os gestos e os sinais que compõem um regime familiar concentracionário num registo seco que evita a retórica demonstrativa de Michael Haneke.

Os gregos têm queda para alegorias, como bem sabemos. E "Canino", não sendo o mais platónico filme do mundo, é dos mais cavernícolas que vimos nos últimos tempos. Felizmente, Giorgos Lanthimos filma mais a caverna do que a alegoria - e o seu registo muito "matter of fact", muito directo, às vezes muito seco, impede que "Canino" se deixe invadir pelo peso retórico e demonstrativo que frequentemente se encontra nos filmes de Michael Haneke (a quem imaginamos facilmente a filmar uma história parecida, e é outro adepto do tipo de "negrume civilizacional" que "Canino" explora).

A situação é simples, mas não imediatamente perceptível. Começamos, aliás, por uma cena em tom de poesia absurdista: três miúdos, ou enfim, três jovens adultos (um rapaz e duas raparigas), num ambiente muito branco, ouvem uma espécie de "dicionário gravado" que para cada palavra propõe uma definição errónea mas, nalguns casos, estranhamente bonita - ficamos assim a saber que naquele universo uma carabina é "um belo pássaro branco" (assim como, mais tarde no filme, daquilo que a legendagem escolheu traduzir por "pachacha" será proposto como entendimento que se trata de uma "luz"). O que se passa, na verdade, é que um pequeno industrial grego (sobre cuja saúde mental nunca seremos elucidados - tudo é mesmo "matter of fact") decidiu criar e manter os seus três filhos numa "caverna" protegida do exterior. A caverna é a casa familiar, e o exterior é o mal absoluto, o perigo constante, a ameaça total. Um mundo de ficção, ritualizado e codificado como um universo mítico (é aqui que entram as abundantes referências aos "caninos", sejam eles dentes ou, de facto, canídeos).

Lanthimos descreve este "mundo" - espaço concentracionário, espaço totalitário - a partir das ficções que o sustentam e das acções que lhe garantem a ordem. A presença dos aviões é conspícua, sejam os que cruzam os céus sejam os aviões de brinquedo: o "medo permanente" que é instilado aos miúdos tem pontos de contacto evidentes com o quotidiano do mundo ocidental pós-11 de Setembro, lá fora o caos e "breaking news" sempre que alguém encontra um sapato desirmanado num aeroporto qualquer. A alegoria do paternalismo do poder político - e do seu reverso, a infantilização dos súbditos - expande-se por aqui. Lanthimos filma os gestos e os sinais que compõem este "regime", com um sentido de humor certeiro: uma canção de Frank Sinatra ("Fly me to the Moon") ouvida em família com o pai a fazer "tradução simultânea" (e na versão traduzida, Sinatra diz "que se porta bem" e, por isso, "o pai gosta dele").

Mas filma, sobretudo, a sua decomposição, o avançar do caos. As brechas que se abrem na relação dos miúdos com o "regime" - e que se abrem pelo desejo (o sexo, que começa por ser "organizado" e convencional, e se vai tornando "desregulado"), pela curiosidade (de ver o que está lá fora), pela vontade (de serem adultos), pela dúvida (de que as palavras não significam de facto o que o lhes dizem). Toda a força da sua descontrolada humanidade virada contra a educação e os condicionamentos: a Grécia anda tensa, como também sabemos.
Luís Miguel Oliveira, Público




O impacte internacional de Canino, de Giorgos Lanthimos, é indissociável da sua performance em vários festivais, incluindo Cannes, Mar DeI Plata, Sitges e Estoril. Mas passa também pela estranha e perturbante universalidade da sua história. Assim, encontramos aqui uma família que funciona numa espécie de clausura «idílica». E o paradoxo da definição não podia ser mais sugestivo: três filhos adolescentes vivem no ambiente paradisíaco de uma casa de campo que nunca abandonam; mais do que isso: a pouco e pouco compreendemos que os pais os educaram num sistema de estrita autoridade que os levou a não querer sair, a não ser quando cair algum dos seus dentes (caninos).

Dizer que se trata de um retrato social das relações pais/filhos seria inadequado, uma vez que deparamos com uma verdadeira «ditadura familiar» alicerçada numa brutal interdição de contactos com qualquer exterior. Ao mesmo tempo, também não faz sentido definir Canino como um filme de ficção científica mais ou menos futurista, quanto mais não seja porque Lanthimos tem o cuidado de definir um ambiente quase naturalista, com sinais (guarda-roupa, móveis, máquinas, etc.) que podiam perfeitamente pertencer ao nosso mundo.

Em boa verdade, o filme faz-nos sentir que qualquer relação (social, familiar, etc.) pressupõe um contrato, implícito ou explícito, que pode oscilar entre o compromisso e a mais radical desordem. Daí que Canino apele à metáfora: esta é, afinal, a história de um desejo de pureza que, a pouco e pouco, vai atraindo o exacto contrário daquilo que o fundamenta e faz funcionar. Nesse sentido, talvez se possa acrescentar que Canino se situa nos antípodas da ideologia «telenovelesca» que comanda a maior parte das encenações correntes do espaço familiar: neste caso, quanto mais familiar, mais estranho. Esta é, afinal, uma fábula sobre os equívocos da pureza.
João Lopes, Diário de Notícias



Depois de um filme como "Toy Story 3" onde a noção de família é preciosa e tem ainda mais relevo que o 3D de Lee Unkrich; vira-se a página e o que se encontra? Um filme grego virulento, feroz, francamente original, em que todos os valores da célula familiar são, pura e simplesmente, levados ao passevite. Gostamos destes acasos, destas oposições, de encontrar uma cinematografia grega da qual se conhece tão pouco e que tenta, em plena canícula lisboeta, encaixar-se no espaço de distribuição dominado pelo blockbuster animado (fossem todas as semanas assim). Giorgos Lanthimos, que já antes havia sido notado, é um cineasta radical. Procura despertar reacções extremas. Inscreve-se num novíssimo cinema grego circunspecto e severo, que aposta em enquadramentos milimétricos e no plano fixo, num tom mordaz que tende para a coreografia. Os mistérios do filme não nos serão dados de barato e - aviso à navegação - não é fácil entrar nele. Há uma casa, pai, mãe e três filhos (um rapaz e duas raparigas), algures entre os 20 e os 30 anos. A casa, afastada da grande cidade, tem um enorme jardim com piscina e uma vedação à volta. O décor é old jashion, anos 80 como o Mercedes Benz do pai, mas há qualquer coisa de errado ali, pois não é nos anos 80 que estamos (o pai, no emprego, usa telemóvel).

Na verdade, 'nada bate certo'. As coisas chamam-se por outros nomes: a palavra 'vento', por exemplo, significa 'estrada'. De seguida, numa cena de jantar em família, uma das filhas pede à mãe que lhe passe o 'telefone' - e o que a mãe lhe dá é o sal de mesa. O filme não tarda muito a abrir-nos a porta do seu jogo de crueldade: esta meta-linguagem que gera tanta confusão, inventada pelo pai com o consentimento tácito da mãe, faz parte de uma 'tática de cativeiro' porque os três filhos, todos adultos, jamais saíram de casa. Julgam que o mundo acaba ali, na vedação do jardim. Foram criados e educados em casa, pelos pais, entre quatro paredes, em ambiente hipnótico. Contudo, os pais fizeram-lhes uma promessa: eles estarão preparados para sair quando... perderem os dentes caninos. Vem daqui o título do filme, bem como a sua desesperada conclusão.

A alegoria sobre uma família que se transformou numa micro-sociedade totalitária é aterradora mas não se pense que o filme passa o seu tempo a sublinhá-la: Lanthimos não faz julgamentos das suas personagens e tanto se constatam os momentos de maior agressividade como os de maior ternura. O espectador identifica rapidamente quem é vítima e carrasco, mas há nuances pelo meio: as relações de filiação não são a preto e branco. Lanthimos consegue por em prática um 'filme sem género' que obriga o espectador a casar o terror com o absurdo, a repugnância com o humor, até tornar credível o que é inverosímil. Os actores, envolvidos neste sistema, todos com uma 'cara de pau' inquietante mas perfeitamente coerente com os objectivos do filme, cativam pela estranheza.

"Canino" é um filme que não se cataloga. Não se inscreve em nada já feito e já visto, nem na Grécia nem na China: chamemos-lhe 'ovni grego', um belo ovni, disso restam poucas dúvidas. Para lá da situação ética e moral chocantes que Lanthimos apresenta, sem desafinar, com a maior tranquilidade do mundo, para lá de uma situação social cancerígena que o poder dos instintos e do sexo acabarão por resolver, o que mais apreciámos aqui foi a proposta de análise ao valor da representação, às fronteiras entre o real e o imaginário e o modo audaz, problemático, como este filme as dilui.
Francisco Ferreira, Expresso


INCLUI DECLARAÇÕES DO REALIZADOR
A Grécia fechada em casa, sozinha contra o mundo.

É assim que sempre a temos visto: como um país na cauda da Europa, em luta pela sobrevivência e pelo reconhecimento internacional enquanto estrutura social possível, obrigada a seguir regras impostas pelo mundo exterior para reconquistar a legitimidade perdida e voltar ao bom caminho do crescimento económico exigido pela União Europeia.

É assim que a vemos também em "Canino", segunda longa-metragem de Yorgos Lanthimos (aqui co-argumentista, além de realizador), em que uma família luta contra a ameaça do mundo que a rodeia e que nunca vemos. Todo o filme, que em 2009 ganhou a secção Un Certain Regard do Festival de Cannes e também o prémio principal do Estoril Film Festival, se passa na agradável casa suburbana em que coabitam um casal e os seus três filhos adolescentes, quase adultos. Uma enorme cerca delimita o amplo jardim com piscina, impedindo a família de construir qualquer imagem do mundo exterior. As crianças nunca de lá saíram, não por não poderem, mas porque o mundo lá fora, segundo o que ouvem nas histórias dos pais, é demasiado perigoso. É um mundo de monstros e de violência que apenas estarão prontos para encarar quando lhes cair o primeiro dente canino.

"Canino" é um ensaio sobre como a linguagem, mais do que um instru¬mento de aprendizagem do mundo, pode ser uma forma de controlo parental da curiosidade, da imaginação e das puIsões dos filhos. Um "zombie" é uma pequena flor amarela, o "mar" é uma cadeira e uma "vagina" é uma grande luz, diz a mãe. Este é o mundo hipnótico de uma família que decide contornar a realidade e distorcê-la a seu favor.

A criação de um cativeiro parental é indissociável do controlo sobre a linguagem - e é uma ferramenta que não apenas os pais, mas todas as fontes de informação, utilizam, argumenta Lanthimos. "A linguagem é uma das principais formas que os pais têm de controlar os seus filhos. É uma das coisas mais importantes que temos, porque é a maneira como comunicamos e percebemos as coisas, a maneira como falamos uns com os outros." Esse poder, diz, começa na família, mas condiciona depois todo o processo de crescimento e a nossa colocação num lugar social. "Se o significado das palavras for alterado, conseguimos fechar as pessoas num certo ambiente. Interessou-me muito a maneira como nos servimos da linguagem para esconder coisas, a maneira como alimentamos as pessoas com informação e isso se transforma em conhecimento."

Se, para os adultos, ainda existe a possibilidade de escolher a informação recebida e a forma de a processar (apesar de, paradoxalmente, cada vez mais informação ser sinónimo de cada vez mais informação igual), as crianças estão absolutamente à mercê de uma educação. A família de "Canino", a pretexto de proteger as crianças do exterior, decide levar esse controlo ao extremo, lembrando a forma como os Governos autoritários controlam a comunidade através da propaganda política. Numa das cenas mais marcantes do filme, as crianças pedem para ouvir "a canção do avô": trata-se de "Fly me to the moon" de Frank Sinatra, tocada enquanto que o pai traduz a letra para os seus filhos e transforma a música num hino à autoridade parental e à obediência familiar. Lanthimos sublinha que começou por querer escrever uma história sobre uma família, mas que a comparação política tornou-se, também, num elemento importante da sua reflexão. "Acaba por ser inevitável associarmos a história ao lado político e à gestão mediática da informação."

A distorção da linguagem implica, por outro lado; um jogo físico permanente entre aqueles que possuem o poder de estipular os significados (os pais, donos do conhecimento) e aqueles que devem corresponder à aprendizagem (os filhos). Em “Canino”, o dia das crianças é preenchido pela expectativa dos jogos teatrais montados pelos pais: testes de respiração debaixo de água, corridas, procura de objectos escondidos no jardim. Os vencedores são premiados, alimentando uma relação de competição que serve; de novo, como pretexto para a preparação para o mundo exterior inventado, mas que os concentra, também, na obtenção de um reconhecimento paternal que tarda em chegar, e do qual precisarão, a nível emocional, para saírem dos limites da sua casa.

Numa altura em que a Grécia é ela própria uma sociedade em risco pelos desvios à lógica da concorrência em que se baseia todo o espírito do capitalismo, Lanthimos recusa, contudo, que o seu filme constitua uma crítica. "A crise é provocada por um conjunto de coisas que se influenciam umas às outras, pela maneira como fazemos tudo funcionar, pelos objectivos que estão por trás e o ponto até ao qual estamos dispostos a ir. Não podemos dizer que a concorrência seja, em si, uma coisa má, pois também é responsável pelo nosso
pro¬gresso enquanto sociedade." Um dos objectivos de "Canino", segundo o realizador, é precisamente mostrar a validade múltipla dos critérios da vida em família e em sociedade. "Não podemos dizer que existe uma coisa errada e outra boa. É exactamente isso que o filme nos diz. Não podemos dizer isso sobre nada. "



A defesa, ou a aplicação radical, da nossa percepção do mundo pode ser tão violenta como os valores desta família. "A violência é uma parte importante da nossa sociedade. Tudo o que encontramos no nosso dia-a-dia, na nossa família, nas nossas relações, é levado ao exagero no filme, mas a violência é uma parte importante disso tudo." Aqui, a violência surge, sobretudo, nos momentos em que os pais perdem fisicamente o controlo. "De repente, as pessoas sentem-se autorizadas a usar a força para obrigarem os outros a acreditar naquilo em que elas querem que acreditem. "

No cativeiro de "Canino", o físico ganha uma importância central, mas uma importância totalmente desprovida de emoção. O sexo, explícito e mecânico, é meramente funcional. Lanthimos aborda-o não só a partir da perspectiva que é imposta pelas pais do filme (desprovida de paixão e, por isso, ultrapassando os limites morais do incesto), mas também a partir da perspectiva que lhe foi imposta pelos seus próprios pais, no seu país. "É algo que vem da minha infância. Hoje em dia, as coisas já não são assim, mas há duas décadas atrás, havia a ideia, dentro das famílias, de que o pai se orgulharia se os seus filhos rapazes tivessem sexo." Um orgulho vedado às raparigas: “Era simplesmente um tabu”.

Em “Canino”, os pais concentram-se nas necessidades físicas do filho de forma muito directa, ao entregar-lhe a única visita do mundo exterior, uma funcionária da fábrica do pai que vem cumprir os seus desejos sexuais. “É um mero cumprimenta de uma função: está aqui, despacha-te com isso e pronto". O desabar dessa imagem começa quando as filhas vêem essa mesma pulsão a tomar conta dos seus corpos. "É tentar controlar uma coisa que, obviamente, nunca poderá ser controlada. O sexo e os instintos naturais das pessoas surgem de forma natural e, a partir de uma certa altura, toda essa estrutura vai abaixo."

Essa supressão psicológica que pais procuram impor também foi necessária, no "plateau", para o resultado que o cineasta procurava no actores. Lanthimos conseguiu com esse controlo interpretações cujo efeito ganha, por vezes, contornos bressonianos. "O Robert Bresson é um dos meus realizadores preferidos. Existe uma ligação com ele pela forma como evito, a todos os níveis, uma maneira psicológica ou mental de trabalhar com os actores, ou qualquer tentativa de explicar e discutir os seus sentimentos. Dirijo-os de forma física, fazendo, exercícios e jogos com eles. "

Independentemente do que possamos ver nesta casa, algures ali dentro está também aquilo que é a natureza implícita do cinema: uma visão que vem do conhecimento adquirido de um autor, que nos propõe uma maneira de observar aquilo que nos rodeia. “A mecânica do cinema é essa: uma cãmara que grava coisas, a maneira como as vemos través dela... Tudo depende das pessoas que usam o meio”.

Se “Canino” nos mostra alguma coisa, é isto: não existe uma percepção correcta e uma percepção errada, não existe, porventura, nenhuma forma comprovada de ver ou de estar no mundo. “Temos de acreditar em tudo aquilo que nos disserem sobre coisas que não podemos, de facto, comprovar. Temos de acreditar no que certas pessoas nos dizem, e elas poderão estar enganadas sobre o assunto. Abre-se uma grande porta sobre as coisas que sabemos sobre o mundo. Serão verdadeiras as coisas em que acreditamos? Quem poderá dizê-lo?”, questiona Lanthimos.
Quando o portão da casa desta família se abre, é também para esse desconhecido que vamos.
Francisco Valente, Público


INCLUI DECLARAÇÕES DO REALIZADOR
Pode o mundo caber dentro de quatro paredes? No mundo de "Canino" sim. Imagine uma casa enorme, mas isolada por muros altos que as crianças nunca passaram, uma família em que os três filhos são crianças permanentes - mesmo que tenham, como têm no filme, 20 anos - e os pais inventam propositadamente novos significados às palavras - só para dar alguns exemplos, os aviões são brinquedos e os zombies pequenas flores amarelas. É assim que tudo começa: com um filho deslumbrado porque encontrou um par de "zombies" (amarelos) no jardim.

Estas são as premissas do filme do realizador grego Yorgos Lanthimos que arrecadou o galardão de melhor filme no Estoril Film Festival e o prémio "Un Certain Regard" no Festival de Cannes. Coisa rara para um grego? "Sim, sobretudo porque não podemos dizer simplesmente que o cinema grego é desconhecido. É pior: o cinema grego não existe", responde Yorgos Lanthimos, que aos 38 anos viu o seu terceiro filme ser premiado em vários festivais de cinema. "As ajudas chegam sempre aos realizadores com mais de 70. Tens de fazer tudo por tua conta, pedir aos actores que trabalhem de borla."

Em "Canino", tudo começa e acaba na ideia que lhe dá o título. Na família grega liderada por um homem de negócios de meia-idade e rico - e o único que tem contacto com o mundo exterior -, as crianças não são educadas: são treinadas a obedecer como cães. "É a história de uns pais que, por acharem que a noção de família está em perigo de extinção, resolvem criar um mundo que não existe dentro daquela casa", descreve o realizador, antes de entrar numa discussão difícil sobre se o sentido de "Kynodontas" (o título original, em grego) seria o mesmo do título traduzido para português.

O mundo cabe todo dentro daquelas paredes? Poderia caber, se não houvesse intrusos. A realidade além dos muros só entra naquela casa pelas mãos de uma personagem: Christina, a mulher contratada pelo pai para entrar na mansão de olhos vendados e servir as necessidades sexuais do filho.

Sátira ou drama?
Para proteger os filhos do mundo exterior, não bastava mudar as regras da casa, limitar as visitas a uma única mulher, impedir que se passasse a cerca ou que se visse na televisão outra coisa que não os filmes caseiros da família. "Se aquele mundo tinha regras diferentes, sendo a linguagem o principal veículo de comunicação, era essa a primeira mudança que deveria mostrar", explica Lanthimos.

O realizador fez um filme em que a segurança é uma obsessão ou paranóia, as crianças andam vendadas, a casa funciona como uma prisão. Mas apesar disso, os ambientes são luminosos, algumas cenas divertidas, a casa grande o suficiente para não a vermos como um espaço claustrofóbico. "Aparentemente tudo é belo e luminoso, para reproduzir a maneira como aquelas crianças imaginam a realidade. Só o fundo é escuro." "Canino" tem tanto de negro como de bizarro, de negro como de comédia, de drama como de bizarro. E Yorgos Lanthimos fê-lo propositadamente: "Quero que cada espectador faça a sua interpretação. Às vezes é negro, outras vezes satírico. Diria que é um filme sem género ou com vários géneros."

Admirador do cinema de Buñuel ou Bresson, Yorgos Lanthimos tem ouvido com frequência analogias entre o universo de " Canino" e os regimes totalitários. E apesar de o pilar ser a família, não nega que possa existir uma série de mensagens subentendidas. "Sobretudo queria mostrar como é fácil manipular a percepção que as pessoas têm das coisas e do mundo. Isso serve para uma família, para grupos sociais ou para um país."
Sílvia Caneco e Filipe Morais, Semanário I



Título Original: Kynodontas
Realização: Giorgos Lanthimos
Argumento: Efthymis Filippou, Giorgos Lanthimos
Interpretação: Christos Stergioglou, Michele Valley , Aggeliki Papoulia , Mary Tsoni, Christos Passalis , Anna Kalaitzidou
Direcção de Fotografia: Thimios Bakatakis
Montagem: Yorgos Mavropsaridis
Origem: Grécia
Ano de Estreia: 2009
Duração: 96’


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