o que é isto da música tradicional portuguesa? sessão supla em Cacela Velha

Kill Giacometti vs Long Live Giacometti! Combate num único round.


Dia 7 de Setembro
SIGNIFICADO, Tiago Pereira, Portugal, 2010, 42’
POLIFONIAS- PACI É SALUTA, MICHEL GIACOMETTI, Pierre-Marie Goulet, Portugal, 1997, 78’


Cemitério antigo. 22h. Entradas: sócios 1€ não-sócios 2€


1º filme, presença do realizador

Tiago Pereira quer libertar a tradição e, provocador, lança ao ar: "Kill Giacometti!". Diz-nos: "tenho que dizer que esta memória existe, mas se quiser que seja contemporânea, tenho que a tratar de uma forma contemporânea". Algo que atravessa a sua obra, representada no IndieMusic, dia 2, por "Significado", o seu último filme, e "B Fachada - Tradição Oral Contemporânea".
"Significado" começou como encomenda da d'Orfeu, associação cultural que, em Águeda, vem trabalhando, divulgando e ensinando a música tradicional, as danças populares ou as artes de palco. Seria uma comemoração dos seus 15 anos, com os irmãos fundadores (Luís, Artur, Vítor e Rogério Fernandes) como personagens centrais, mas não ficou por aí. Transformou-se nisso e numa outra coisa. E é precisamente daquilo e disto que Tiago Pereira conversa de forma rápida e entusiasmada. Discorre sobre o seu novo filme, sucessor de "11 Burros Caem de Estômago Vazio" ou "B Fachada - Tradição Oral Contemporânea", e mais uma acha para a fogueira da discussão sobre o lugar da tradição na música popular da actualidade.


"Significado" tem por subtítulo "Como seria a música portuguesa se gostasse dela própria" e, durante a entrevista, Tiago aponta que a Banda do Casaco, em "Hoje Há Conquilhas, Amanhã Não Sabemos", ano 1977, já recorria aos samples de diversas proveniências que, anos depois, Brian Eno e David Byrne utilizariam no celebrado "My Life In The Bush Of Ghosts" - ainda assim, refere, poucos em Portugal sabem quem é a Banda do Casaco. Mais tarde, falará de João Aguardela e do seu trabalho enquanto Megafone e lança a questão: "Como teria sido Portugal, para nós da geração que assistiu ao eclodir da música de dança, se os samples de músicas e recolhas portuguesas tivessem sido usadas desde o início?" Fala-nos disto, mas aquele "como seria a música portuguesa" é primordialmente dirigido aos que, de tanto a querer preservar, a envolvem num abraço sufocante. Explica: "Há a tendência para ignorar que a tradição hoje, em 2010, não tem nada a ver com o que era há 40 anos. Continua presente o positivismo do aqui só se faz assim e só se faz desta maneira. Temos a memória afectiva do PREC que criou uma resistência. E aquilo foi tudo muito bonito, mas hoje em dia já não existe".

Afinem a velhinha!
Em "Significado", Tiago Pereira não procura sinais de um passado à beira de desaparecer. Enquanto autor, busca novos sentidos. Agitador, põe óculos de mergulhador em Adélia Garcia, cantadeira que Giacometti recolheu há cinco décadas, aponta que o deslumbramento urbano com o exótico rural representa estagnação e parolice e, ao contar-nos das recolhas que faz país fora e dos documentos vídeo que vasculha em baús esquecidos, há-de destacar: "tenho que dizer que esta memória existe, mas se eu quiser que ela seja contemporânea, tenho que a tratar de forma contemporânea". Todo o seu trabalho, de resto, aponta nesse sentido. Não por acaso, define-se como "vídeomúsico" - pormenor: nos seus filmes, a montagem do som precede sempre a da imagem.

Em 2009, na vídeo instalação "Mandrágora", pôs mezinhas e responsos a encontrar eco na música de Tó Trips ou Tiago Sousa, contrapôs gwana marroquino a curandeiros beirãos, correspondeu trip de rave moderna a alucinação da ancestral erva do diabo.

Com "Significado", monta um caleidoscópio de gentes e de suas práticas na abordagem ao tradicional para chegar a isto: "Tradição de futuro. Para mim, isso é que é importante. Ter o passado, o que é agora e o que vai ser, como na banda desenhado do Alan Moore em que todos os tempos se encontram num vértice. É essa noção que quero nos [meus] filmes".

Temos então os irmãos Fernandes, temos etnógrafos e musicólogos, a artista plástica Joana Vasconcelos, os Diabo na Cruz e o músico Vítor Rua. Temos Carlos Guerreiro, dos Gaiteiros de Lisboa, ou Júlio Pereira, pai de Tiago, e, com eles, uma genealogia da descoberta e apropriação da música tradicional desde a década de 1970. Temos o Megafone de João Aguardela e a sua dança samplada das recolhas de Michel Giacometti e José Alberto Sardinha. E os Dazkarieh que com instrumentos tradicionais e atitude rock põem metaleiros do Barreiro todos no "mosh", um Ricardo Lameiro que, com tecnologia moderna, transporta o fagote para novas dimensões, e, claro, a Banda do Casaco que, recuperando palavras de um dos fundadores, Nuno Rodrigues, em "Significado", andou nos anos 1970 e inícios de 1980 a pensar a tradição rural para "gajos que eram de Lisboa e Cascais" e a resgatar Ti Chitas a Penha Garcia para "pôr um botox nas berças". Tiago Pereira não escolhe ninguém, não aponta um caminho. "No 'Significado', interessava ver todo o tipo de práticas contemporâneas que existem na música tradicional. Não me interessa criar a narrativa de um filme, interessa-me o conceito de dar esta informação toda, lançar os ses e as interrogações". Conclui: "Não é para eu escolher, é para as pessoas irem por onde quiserem".

No caso dele, não poderia ser de outro modo. No universo da música tradicional, aquilo que mais o incomoda é sentir que se defende um caminho único, sem hipótese de desvios. É por isso que se atira "à sacralização das velhinhas e das recolhas de Giacometti". Provoca: "Afinem a velhinha!, Kill Giacometti!". E pergunta: "Para quê fazer projectos iguais à Brigada Vítor Jara? Porque é que, vinte anos depois, ainda tens gente a tentar fazer o 'Cavaquinho' que o Júlio Pereira fez nos anos 1980? Que o façam, mas percebam que isso não representa o pulsar actual, não representa a evolução". Na sua opinião, a ânsia de preservar a música de contaminações conduziu a um processo perverso: "Muitos dizem que a culpa das pessoas não ligarem à música tradicional é da folclorização do António Ferro, mas isso aconteceu há mais de quarenta anos e, entretanto, assistiu-se a um fenómeno semelhante, com toda esta espécie de 'folclotribos' que se juntam para fazer as danças europeias no Andanças com tudo muito coreografado e pouco sentido". Acentua, novamente: "O meu interesse é perceber como poderá a tradição sair do seu gueto e chegar a novos públicos, chegar realmente às pessoas".

Ponto de partida
Em "B Fachada - Tradição Oral Contemporânea", também em exibição no Indie, Tiago levou o músico de "Viola Braguesa" a Caçarelhos, pô-lo a cantar canções as cantadeiras e ouvir as canções que elas tinham para cantar. Filmou-os no mesmo plano, sobrepondo a ruralidade delas e o urbanismo dele como se emanassem de uma mesma vontade - e depois, Fachada trouxe de Caçarelhos uma "D. Filomena" com séculos de idade e, em Lisboa, ninguém suspeitou que a canção não fosse dele. "Tradição oral é transmitir o que se vive. Passá-lo de geração em geração, contaminando-se, alargando-se e atingindo combinações infinitas"- isto o que nos disse então Tiago Pereira. Em "Significado", ensaia uma conclusão. Coisa múltipla e por vezes contraditória, com as imagens e os sons, os de arquivo e os captados agora em dança neurótica ou em fusão frutuosa.

A encomenda inicial de que resultou este filme, que será também um DVD acompanhante o livro "Contexto", história da d'Orfeu assinada pelo jornalista António Pires, já continha a génese da sua estrutura. De facto, bastava a Tiago Pereira olhar os quatro irmãos que fundaram a associação. Artur, tocador de concertina que, nos Danças Ocultas, rompe com as formas canónicas de abordar o instrumento. Luís, dos Toques do Caramulo, que "pega na música da Serra e as coloca num contexto global". Rogério, "mais convencional", que "tomou conta da Orquestra Típica de Águeda". E Vítor, homem do improviso que percorre as ruas experimentando percussões e captando os sons da cidade, "inventor" de uns deliciosamente baptizados Mistérios das Vozes Vulgares que vemos a ensaiar polifonias ora na serra, ora em altar de sacristia. A partir deles, dos seus diferentes processos criativos, Tiago abriu o espectro. E, abrindo o espectro, oferece-nos um quadro múltiplo e dinâmico, mas com centro definido, denúncia da sua marca autoral.

Não o preocupa a contradição que é ter Joana Vasconcelos, olhando da cidade, dizer que em Portugal ainda há muita gente "que depende do seu burro" e, no Caramulo, o musicólogo que refere vivermos "tempos de despedida do mundo rural": "Fica a memória individual e o estudo, a museologia". Não, isso não o incomoda. Porque nesse jogo de vozes, tudo acaba por se conjugar.

Vítor Rua a referir o manifesto "Arte do Ruído", do futurista Luigi Russolo - "há que destruir o passado, os conservatórios e criar algo novo, e o ruído tem que estar ali" - e Vítor Fernandes a cantar sons de guindastes e apitos de fabrico nas suas improvisações. Carlos Guerreiro a diagnosticar que "o problema não está na fonte [nas recolhas, nas canções que subsistem na memória das pessoas], está em como tratar aquilo que ainda está no reservatório", e Jorge Cruz, dos Diabo na Cruz, a manifestar o desejo de, amalgamando tradição e a vivência de hoje, chegar a algo "único", "nosso".

"Significado" pretende discussão e presente. Pretende ser a tal memória de futuro.

"Num país fragmentado", pergunta Tiago Pereira, "como é que se partem as caixas todas, como é que se parte este mundo da tradição para criar objectos que, vindos dela, sejam uma outra coisa, encaixem noutros sítios e interessem a mais pessoas?"

"Significado", que se ensaia como conclusão das obras de Tiago Pereira que o antecedem, não fecha nada. É um ponto de partida.

Ípsilon, Público


2º filme

Michel Giacometti, "O corso que amava Portugal" nasceu em Ajaccio. Em 1959, chega a Portugal, não voltará a partir. Durante trinta anos vai recolher músicas, contos, histórias e poesias, ditados e adágios, receitas de medicina popular... e assim ele devolve a estes homens e mulheres o orgulho por sua própria cultura. Esse Corso reinventou uma ilha em Portugal, um universo, através das raízes dos outros descobriu as suas próprias raízes. Ao salvar a memória de um povo, perseguiu uma busca, e das raízes por vezes míticas que todos trazemos no mais fundo de nós mesmos. É neste campo que POLlFONIAS dá conta dos sinais deste percurso, interrogando a memória viva dos mais velhos e provocando os encontros que irão testemunhar da vivacidade actual da música tradicional em Portugal e na Córsega.
É caminhando ao encontro dos cantos polifónicos no Alentejo e na Córsega, depois suscitando um encontro entre cantores alentejanos e corsos, que se irá desenhar o percurso de Giancometti, a memória de dois povos e para além disso as nossas próprias buscas de raízes e de identidade, num tempo em que o que se julgava ser um eco de culturas destinadas a morrer, soa afinal como, um apelo, uma interrogação sobre o nosso futuro.


Múltiplos caminhos que tecem um filme de estrutura "polifónica", em que ninguém perde a sua identidade, antes a reanima no contacto com o outro. Uma viagem de vários itinerários que se cruzam no tempo e no espaço, seguindo um jogo de ressonâncias e correspondências, tal como as vozes de uma polifonia.


NOTA DE INTENÇÕES DO REALIZADOR
Do que se trata realmente quando é utilizada a palavra “fazer” e a palavra “documentário?
A pergunta parece querer delimitar um território específico.

Existirá um território "documentário" delimitado por uma fronteira que o separa de outros territórios cinematográficos? E se sim, quais serão os outros territórios? A ficção? A narrativa? A poesia? ...

Documentário / Ficção: onde sé situa a fronteira? .

"Lola" de Jacques Demy não será um dos mais belos documentários sobre a cidade de Nantes? Ou "Muriel" de Alain Resnais sobre a cidade de Boulogne-sur-Mer? Ou, visto por outro ângulo, não poderíamos dizer que "O Último Ano em Marienbad" é cinematograficamente a continuação, quase um "remake" narrativo do documentário "Le chant du styràne"? E como catalogar "Outubro" de Eisenstein ou "JLG/JLG"de Jean-Luc Godard ou ainda "Dieu sait quoi" de Jean-Daniel Pollet e "As Estações" de Artavazd Pelechian.

A fronteira estará então no "fazer"?

Como aproximar-se do outro? Decidir onde colocar a câmara, que objectiva escolher, que luz preparar ou esperar? E depois escolher os planos, a ordem dos planos, quando cortar um plano, com que outro o ligar, e descobrir, com emoção, depois de os ter colocado uns aos outros o que se passou para o corte, no interstício entre duas imagens, entre uma imagem e um som, entre dois sons ... Será que estas questões se põem de uma forma diferente no que é convencionado chamar "documentário"? Olhar, escutar, descobrir será então radicalmente de uma outra natureza?
Por detrás de cada filme há sempre um outro filme, um pelo menos, que nos transporta para um outro mundo, para além do tema, da história ... Este outro filme acompanha o primeiro como a sua sombra. E este outro filme é essencial. É ele que faz a diferença quando, por exemplo, vemos diversas adaptações filmadas de um mesmo romance e que uma é uma obra prima e outra não tem qualquer interesse. Os dois contam exactamente a mesma história, no entanto num dos filmes existe por detrás um outro filme, talvez o verdadeiro filme e é dele que nasce a poesia, a emoção. A mesma coisa acontece com o tema de um documentário. Quer se trate de "documentário" ou de "ficção" o processo é o mesmo, há filmes que têm uma "sombra" e outros que não a têm.

É aí que se situa a verdadeira fronteira.

O problema é que de um lado e doutro dessa verdadeira fronteira é utilizada a mesma palavra para designar tanto os filmes que têm uma sombra como os que não a têm.

No interior desse território onde os filmes têm uma sombra - o cinema - só vejo por necessidades de administração, festivais, programação, concursos, catálogos, etc. a utilização dos diferentes nomes: longa ou curta metragem, ficção, documentário, etc.

Cinematograficamente não sinto qualquer fronteira.

Nesse país em que os filmes têm uma sombra, eu procuro fazer cinema.

Porquê? Isso já é uma outra questão.

Pierre-Marie Goulet


POLlFONIAS, filme que entrelaça uma homenagem a Michel Giacometti, com uma aproximação das culturas musicais populares corsas e alentejanas assim como os seus prolongamentos contemporâneos, pretende abordar estes temas principais fazendo-os ressoar de forma subjacente, com aquilo que nos toca intimamente além destes temas: a procura de raízes e da identidade, procura hoje tão envolvente.

A simples gravação de testemunhos, de documentos de arquivos, de cantos populares ou citadinos ... justapostos em blocos autónomos que se sucedem para "se comentarem" uns aos outros seria talvez suficiente para informar mas nunca poderia dar conta da riqueza, da "carga" emotiva que ressurge e se inflama à menor evocação de Michel Giacometti. Nunca poderia deixar ver a qualidade humana dos encontros que ele suscitou, nem o que representa a antiga maneira de cantar na sua relação com um país, com uma paisagem e o que ela representa humanamente; nem da vitalidade actual da reapropriação pelas novas gerações desta cultura popular; e também não nos tocaria mais além do que o seu valor estritamente documental.

Existem correspondências entre todos estes elementos; trazê-Ias à luz, fazê-las viver, será uma das linhas fundamentais do tratamento do tema. Correspondências no tempo e no espaço, entre homens e lugares, entre os homens e uma cultura, entre a memória e a esperança, tanto no Alentejo e na Córsega, como entre o Alentejo e a Córsega, que irão conduzir a uma estrutura musical onde um tema desenvolvido em primeiro plano reaparece posteriormente em "segunda voz", onde uma voz ou uma frase ouvida "in" serão retomadas posteriormente em "off", onde certas frases-chave poderão tornar-se "leitmotivs", onde as imagens recorrentes pouco a pouco tecem laços entre os elementos que "a priori" não parecem ter a ver uns com os outros (um gravador, uma paisagem, um canto, uma imagem de arquivo ...).

A estrutura do filme irá portanto "jogar" com estas correspondências. E, para não se tornar artificial porque pressuposta, para ter coerência e musicalidade, esta estrutura deverá nascer precisamente das que estão contidas na própria matéria das imagens e dos sons.

O Novo Documentário em Portugal, Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema


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