A Pianista é a melhor interpretação de sempre de Isabelle Huppert? Decida por si em mais um round Haneke. Hoje, 22h, Artistas, entrada livre

«A PIANISTA faz perguntas, como todos os filmes. E é ao espectador que cabe encontrar as respostas”.»
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Michael Haneke


A forma directa como Michael Haneke aborda o tema de A Pianista - o mundo mais íntimo e inconfessável que certas pessoas escondem dentro delas-, a maneira casual e anti-sensacional como filma o desfile de situações escabrosas, cruéis e bizarras, e o facto incomodamente inusitado de ser uma mulher e não um homem a comprazer-se, silenciosamente, em práticas que envolvem o voyeurismo mais grosseiro, a mutilação sexual e a pornografia hard, transformam A Pianista num verdadeiro - e raro - filme para adultos. O filme não teria conseguido atingir os seus picos de horror realista sem Isabelle Huppert, cuja interpretação roça o génio, numa personagem que muito poucas actrizes teriam coragem de aceitar.
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Eurico de Barros, Diário de Notícias

A Pianista é uma obra àspera, abrupta, incómoda, turbadora e inclusivamenbe perturbadora. Há dentro dela uma vontade anímica e artística de estirpe suicida, um poema sublevado, pleno de espírito e coragem subversivos, formalmente completíssimo e de uma terrível beleza ferida por um safanão de violência trágica de excepcional intensidade. O imenso talento de Michael Haneke atinge-nos entre os olhos com uma desalmada e brutal sinceridade. Isabelle Huppert move-nos e comove-nos com uma interpretação portentosa, de total genialidade, essa sua assombrosa e minuciosa construção de una mulher vítima total, submergida num poço insondável.

Poucas vezes como aqui se representou com tanta precisão o obscuro e silencioso desastre da repressão, dentro de paredes, neste nosso mundo, aqui, ao lado, em casa.
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Ángel Fernández-Santos, El Pais

Realizador de um cinema frio e cerebral, o austríaco Michael Haneke tardou em sair da teia que ele próprio foi tecendo ao longo da sua obra, onde abundam filmes demasiado programáticos e com pretensões a teses (sobre a violência nos audiovisuais em Benny’s Videos e Funny Games), ou filmes de retórica (sobre a impossibilidade de comunicação entre os humanos em Código Desconhecido). Em Haneke, o gosto pelo choque e a provocação deliberada ao espectador convivem lado a lado com um brilhantismo técnico insuperável.

Neste A Pianista Haneke deixa de lado a retórica, abraça o romanesco e arranca um filme portentoso de contenção. Propondo-se a filmar os fantasmas escondidos nos recantos mais sórdidos da intimidade de cada um, Haneke consegue passar ao lado das tentações do voyeurismo e do estereotipo moralista tipo “públicas virtudes, vícios privados”. Exemplar em termos de economia narrativa e de progressão dramática com cada cena a revestír-se de um papel preciso (as cenas das lições de Huppert são brilhantes em termos de definição da personagem), onde cada plano não está a mais nem a menos e tem a duração precisa para se tornar incómodo sem se tornar exibicionista (as cenas de sexo são disso exemplo). A colocação de câmara é milimétrica (magnifica a cena com Isabel Huppert a cortar-se na casa de banho, em que a câmara só poderia estar onde está, sob pena de o plano se tornar ridículo e pouco credível ou demasiado explícito), sem nunca cair no gratuito ou no envergonhado (e o tema convidaria a um ou a outro). Igualmente extraordinária é a escolha dos décors e o partido dramático que deles é tirado (a casa de banho do apartamento de Huppert é um portento pelo que tem simultaneamente de fria e de acolhedora).

Mas aquilo que mais separa A Pianista dos filmes anteriores de Haneke (e que torna o filme verdadeiramente inquietante) é o rigorosíssimo trabalho sobre o ponto vista no interior da cena e do plano (digno do melhor Hitchcock, o cineasta que melhor partido tirou do ponto de vista no cinema, e também ele cineasta do Desejo e da Culpa ). É aqui que Haneke dá um gigantesco passo em frente e em vez de atirar imagens mais ou menos chocantes à cara do espectador, fá-lo identificar-se com a personagem e aí sim o filme é uma experiência verdadeiramente desconfortável para quem vê.

O trabalho do realizador sobre o ponto de vista passa por duas fases distintas. Numa primeira fase (que corresponde à primeira parte do filme, até à cena em que Huppert coloca os cacos no casaco da sua aluna) o trabalho de Haneke tem por objectivo estabelecer a identificação do espectador com a personagem de Isabel Huppert, fazendo coincidir o olhar deste com o de aquele, através da alternância entre planos ditos subjectivos (que correspondem ao olhar da personagem) e planos objectivos (que correspondem ao olhar de ninguém). Atente-se, por exemplo, na cena do Drive-in construída sobre uma série de olhares (planos objectivos) e de corte sobre o que esses olhares vêm (planos subjectivos). Na cena dos cacos no bolso da aluna, Haneke vai mais longe e faz a passagem do objectivo a subjectivo dentro do mesmo plano, pondo a câmara em local aparentemente neutro e objectivo e fazendo a personagem alinhar-se com o eixo da câmara (subjectivando o plano a partir daí) precisamente antes de iniciar a sua acção (esta técnica típica da fase mais depurada de Hitchcock conheceu o seu auge no brilhante, mas mal-amado Marnie).

Numa segunda fase (desde a sequência entre Huppert e Magimel na casa de banho até ao final) em que o ponto de vista já está solidamente estabelecido, deixam de haver planos subjectivos e todos os planos sendo objectivos são fortemente subjectivados pelo olhar de Erika (é como se em todas as cenas houvesse um plano de um olhar de Huppert que reordena e dá um novo sentido à cena): veja-se a cena em que Magimel agride Huppert, e em particular o plano em que Huppert limpa o nariz ensanguentado à camisola enquanto olha para Megimel. Esse único plano faz com que toda a cena seja vista à luz desse olhar de Erika, sem que nunca se possa falar de plano subjectivo.

A partir do momento em que Haneke estabelece o ponto de vista, criando uma identificação da personagem com o espectador, é como se o filme evoluísse por si próprio, movido apenas pela força das situações dramáticas e da interpretação dos actores.

Sendo uma reflexão sobre a condição humana, A Pianista é simultaneamente um impiedoso retrato da sociedade vienense onde a música é uma capa epidérmica que esconde uma tensão e uma frieza prestes a eclodir (com a personagem de Huppert a funcionar como uma poderosa metáfora para a cidade).
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Rui M. Pereira, Cineclube de Faro

A maior actriz europeia (a maior actriz do mundo) é francesa, e LA PIANISTE, um filme do austríaco Michael Haneke, vai chegar para o provar. Porque nele Isabelle Huppert está no limite do pudor, ou seja, num expectante frenesim de prazer enquanto actriz.

Quando o filme foi exibido no último Festival de Cannes, houve choros (não da mesma forma que se chora num melodrama, embora o filme seja um melodrama) e assobios – e espaço também para os aplausos -, que foram, obviamente manifestações encontradas para exteriorizar o susto que o génio dela provocou.

O génio de Huppert tem a ver com uma qualidade de habitar as sombras, as suas próprias sombras, e atrair, de forma magnética, as dos outros. E ela faz isso num registo introspectivo, de imobilidade (por isso a sua presença é habitualmente classificada como “fria”, como se fosse uma pedra). Fala-se em génio porque se fala em lucidez: é uma experiência erótica pessoal de refúgio num mundo imaginário – é a forma como ela explica as coisas. Michael Haneke já disse em entrevistas que só fez o filme porque Huppert aceitou entrar no projecto. (...) Ora, desta vez Haneke transcendeu-se, fez um “filme de género”, metamorfoseou-se em ressonâncias melodramáticas. E até fez uma obra que materializa uma espécie de fantasia infantil de filme, europeu, para adultos – como se, vendo-o (...), não tivéssemos outra hipótese se não a de sermos crianças assuntadas perante um abismo incompreensível.

LA PIANISTE é uma adaptação do romance da “angry” Elfriede Jelinek, essa escritora tão enraivecida com a sua Áustria. É um filme vienense, sobre a burguesia de Viena, sobre a música, sublime, e sobre a música, monstruosa como um instrumento de poder – música / pianista, definiu Jelinek numa entrevista “uma relação quase sadomasoquista” no coração da cultura austríaca. (...)

E assim o céu, Bach, Schubert e Mozart, é também o inferno.
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Vasco Câmara, Público



ENTREVISTA A ISABELLE HUPPERT


Este projecto é diferente de outros filmes de Haneke, é uma brecha no seu sistema?
Nunca falámos em termos tão directos, mas penso que sempre persistiu nele a vontade de fazer um cinema bastante acessível e popular. Cada filme resulta de uma mistura entre o mental e o teórico com elementos extremamente físicos e animais. Elfriede Jelinek e Haneke gostam de dizer que A PIANISTA é, basicamente, a parodia de um melodrama. No filme, permanece algo de irónico mas a estrutura do melodrama, tipo popular, domina.

Quando leu o argumento, com cenas que…
… podiam colocar problemas?

Existe então uma vontade de desafio, de transgressão?
Sim, seria mentir dizer o contrário, ainda que seja rapidamente resolvida e afastada. Haneke tem frequentemente uma maneira espectacular de resolver os problemas com os quais temos medo de ser confrontados. Muitas vezes, damos conta que o poder emocional de uma cena, eventualmente problemática, é mais forte que as dificuldades que apresenta. A dificuldade nunca está onde podíamos esperar. A cena na cama entre Erika e a sua mãe, que se podia ler como um incesto, transforma-se noutra coisa, um grito primitivo, alguém que regressa a uma brutalidade primitiva num momento de abandono. Haneke vai além daquilo que a cena pode apresentar a priori de embaraçoso ou estupidamente provocador. Dizia frequentemente: "gostava que as pessoas ficassem tão perturbadas que não pudessem continuar a olhar para o ecrã." Ver o filme deve tornar-se uma experiência física, sensorial, é nisso que o seu cinema é desconcertante, mais do que pelas controvérsias moralistas que ele nunca precisou de provocar.

Houve um longo trabalho de repetições?
Trabalhámos com Benoît Magimel duas ou três cenas. Depois, trabalhámos o piano, infatigavelmente as peças de Bach, Schubert... Mesmo que não se veja muito ao ecrã, no resultado final, esta prática do piano ajudou-nos a entrar na história. Também passámos muito tempo escolher fatos, maquilhagens, cabelos; Haneke não deixa nada ao acaso, intervém nos mais pequenos detalhes. A seguir repetimos as cenas de zaragata. Haneke é obcecado pela verosimilhança. Quanto mais perto conseguíssemos chegar da verdade na expressão de um sentimento ou de uma emoção, menos a luta fictícia entre duas pessoas se assemelharia a uma luta verdadeira. Então, era preciso, através da encenação, por imposição, afastar-se da verdade para encontrar mais verosimilhança. Por exemplo, a cena da violação no fim, repetiu-se imensamente e rodou-se várias vezes; decidiu-se mostrar o menos possível de modo que ficasse o mais credível possível.

Também sentiu na pele essa exigência do realizador?
Senti, porque com Haneke, não há culpabilidade, nunca se trata de uma falta exclusiva do actor se a cena funciona mal. Por conseguinte, podemos demorar horas à procura de uma maneira de falar ou mover. Não me sinto nem fragilizada nem diminuída por isso. Sinto-me como um material que pode-se esticar até fundo das suas possibilidades. Ao mesmo tempo, talvez passe também por um jogo de resistência em relação àquilo que se pode fazer de mim; tenho uma implicação total... Mas com certa distância entre o papel e eu, o que preserva certa integridade, e permite ao espectador escapar à situação perversa de assistir a um processo de auto-destruição.

O filme, apesar da tragédia da personagem, produz um efeito muito libertador...
O filme diz o que diz e, ao mesmo tempo, diz o contrário. É a história de alguém que não quer perder o controlo, mas não há nenhuma dúvida que já perdeu o controlo há muito tempo. O filme coloca constantemente o espectador na posição de um passo em falso. Em vez de se refugiar atrás de figuras estereotipadas, como a mulher de poder, o filme faz circular a personagem masculina e feminina, e de maneira muito confusa. De um lado, há a violência, a crueza do que é mostrado, e do outro a candura e uma certa ingenuidade. É ao mesmo tempo um corpo contraído e explosivo, transbordando secreções: o sangue, o vomito, as lágrimas, a urina... Em Erika há mais perdição do que cálculo, mais fraqueza do que força. Creio que me identifiquei antes com o realizador, uma vez que ele mostra uma mulher que olha e não que é olhada. Também sou protegida por isso... Bom, ao mesmo tempo (longo silêncio)... ao mesmo tempo, o filme mostra o que mostra...

... e da parte de Haneke e da sua, não se pronuncia em vão: "o desejo de golpes, tenho-o há anos." É um território delimitado que não é neutro...
Ainda que dominasse completamente e analisasse este território, existe um limiar além do qual prefiro não arriscar para o tentar explicar. Nunca é totalmente por acaso que fazemos aquilo que fazemos.

Numa entrevista bastante antiga, em 1981, definia o acto de representar como " um prazer masoquista muito negativo".
Era verdade: fazer filmes era uma espécie de ascese, enquanto hoje é o contrário. Na representação, há algo fácil, ligeiramente mecânico mesmo, que se põe em marcha sem protocolo nem encenação. Klaus Michael Grüber dizia que um actor se torna bom no teatro quando deixa completamente de ter medo. Não é falso, e eu nunca tenho medo, seja o medo pontual do pequeno salto no vazio no início de um take ou o, mais geral, de fazer tal ou tal filme.

Este filme representa uma etapa na sua carreira, ou é mais um filme?
É precisamente porque é uma etapa, e incontestavelmente um papel decisivo, que é necessário pensar rapidamente que é mais um filme. Porque se ratifico a sua dimensão excepcional, o que é faço? Paro? Pelo contrário, faço quatro a seguir para lhe dar continuidade.

Como interpreta o gesto final Erika, este suicídio sem morte?
Ela não seria capaz de morrer da mesma maneira que toda a grande heroína romanesca que se preze. Não a autorizando a morrer, Haneke fustiga o tipo romanesco, mas ao mesmo tempo autoriza-o a sobreviver.
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Didier Péron, Liberation

Título Original: La Pianiste
Realização: Michael Haneke
Argumento: Michael Haneke, A partir do romance de Elfriede Jelinek
Interpretação: Isabelle Huppert, Benoît Magimel, Annie Girardot
Direcção de Fotografia: Christian Berger
Montagem: Monika Willi, Nadine Muse
Música: Martin Achenbach
Origem: França / Áustria
Ano de Estreia: 2001
Duração: 127’


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