Não digam que não valeu a pena - Ciclo Michael Haneke chega ao fim com NADA A ESCONDER. Artistas, 22h, Entrada livre.

PRÉMIOS
Cannes 2005 – Prémio Melhor Realizador
Prémios da Crítica Internacional e Júri Ecuménico
5 Prémios do Cinema Europeu
Melhor Filme, Realizador, Actor, Montagem e Crítica Internacional
Críticos de Los Angeles e Críticos de São Francisco
Melhor Filme Estrangeiro


O realizador, que estudou Filosofia e Psicologia antes de se dedicar à sétima arte, sempre teve um talento especial para demonstrar o lado mais obscuro da natureza humana, incomodando, chocando e mexendo com as emoções do espectador. Nesta película não foge à regra. Apesar de alguns a considerarem mais acessível, esta é mais uma obra que que promete não ser consensual.

Com este filme sufocante e perturbador, Haneke quer mais uma vez envolver o espectador no mesmo sentimento de paranóia que o protagonista vive, e enquanto o faz, vai construindo uma alegoria política sobre a guerra franco-argelina, e criticando implicitamente o poder manipulador das imagens mediáticas.
Com uma dupla de excelência a assegurar os papéis principais, Haneke volta a surpreender com um final que promete deixá-lo desnorteado.
Goste-se ou não do seu estilo, prova que é um dos melhores realizadores europeus em actividade.
(daqui)

O novo filme de Michael Haneke, «Nada a Esconder», é um conto moderno sobre a vida das imagens, uma espécie de fábula assombrada sobre o poder daquilo que as imagens mostram e, sobretudo, do modo como o mostram. Bastará recordar o seu ponto de partida para nos apercebermos da inquietação que o atravessa: esta é a história de um casal, Georges e Anne Laurent (Daniel Auteuil/Juliette Binoche), que começa a receber cassetes de vídeo anónimas onde descobre imagens de si próprio, no dia a dia… Trata-se de um processo aparentemente chantagista, tanto mais perturbante quanto se começa a cruzar com algumas memórias traumáticas da infância de Georges.

Em todo o caso, não se julgue que o dispositivo montado por Haneke se reduz a uma lógica tradicionalmente policial. Ou seja: a eventual identificação dos responsáveis pelas imagens não basta para colocar um ponto final no drama do casal. Porquê? Porque aquilo que Haneke filma é um modo de vida em que as imagens, mais do que um “duplo” da realidade, passaram a existir como uma nova realidade, fortíssima e incontornável, enredada em todas as componentes da nossa existência.

Há, aliás, na definição do casal Laurent uma curiosa “oposição” que, num cinema tão preciso com os detalhes como é o de Haneke, está longe de ser indiferente. Assim, ambos trabalham com livros, mas ela fá-lo numa editora, enquanto ele apresenta um programa de divulgação na televisão. Quer isto dizer que Georges e Anne são personagens em trânsito entre a herança de um conhecimento predominantemente literário e a realidade triunfante de uma cultura dominada pelas imagens, ou melhor, pela gigantesca multiplicação dos respectivos circuitos de difusão. Daí o mal-estar que vai crescendo: as imagens que recebem são a prova real da sua vulnerabilidade, já que instalam no quotidiano, não o delírio canónico da ficção romanesca, mas uma espécie de hiper-realismo doentio que corrói todas as relações.

Daí também a infelicidade da solução adoptada para o título português. É certo que «Nada a Esconder» provém de uma frase dita pela personagem de Georges (que, face ao processo de “vigilância” a que a sua família é sujeita, proclama não ter “nada a esconder”). Mas é um título que inverte por completo a questão fulcral do filme, isto é, a existência de algo ou alguém “escondido” que vai dinamitando toda a estabilidade da vida quotidiana. A opção por «Nada a Esconder» é tanto mais inadequada quanto desmente também o original Caché (=escondido) que, aliás, nos mercados de língua inglesa deu origem à tradução literal «Hidden».

Haneke retoma, aqui, esse sentimento ambivalente que perpassava pelo seu extraordinário «Código Desconhecido» (2000), aliás também com Juliette Binoche. «Código Desconhecido» funcionava como uma metódica inversão do “naturalismo” gratuito da actualidade mediática e televisiva: alguns temas actuais (a violência no quotidiano, a agressão contra as mulheres, a errância europeia dos refugiados) reapareciam em tom de realismo fragmentário, visceral, irredutível. Em «Nada a Esconder», a questão da decomposição da vida privada surge, não como a excepção, mas a regra das sociedades de consumo pós-modernas.

Daí que seja inevitável sublinhar o que, face às ressonâncias “simbólicas” dos filmes de Haneke — lembremos a parábola política de «O Tempo do Lobo» (2002) — tantas vezes tende a ser esquecido. A saber: a espantosa riqueza psicológica do seu cinema. Na verdade, «Nada a Esconder» é também um retrato íntimo, obsessivo até ao pormenor mais delirante, de uma “família-como-as-outras” e da terrível ausência de comunicação que assombra as suas relações interiores. O efeito das cassetes anónimas no dia a dia dos Laurent é tanto mais violento quanto as suas imagens tornam sensível uma teia de solidões que tem o seu cume na personagem cinzenta, inquietante na sua opacidade, do jovem Pierrot (Lester Makedonsky), o filho do casal. Face ao mito das famílias “libertas” pelo bem-estar económico e tecnológico, Haneke contrapõe uma paisagem gélida de seres que, de facto, perderam o gosto, o afecto e até a própria ideia de comunicação.

Estreado no Festival de Cannes de 2005, «Nada a Esconder» (ou, insisto, Caché) é um fabuloso exemplo de um cinema de raiz europeia que possui uma abrangência temática e um sentido de risco que lhe conferem uma automática dimensão universal. Projectado internacionalmente através de «Funny Games» (1997), consagrado através de «A Pianista» (2001), Haneke confirma-se como um dos mais acutilantes retratistas de uma tragédia que o mundo televisivo todos os dias nos oculta: a de uma solidão que julgamos apagada pela simples proliferação das tecnologias de “comunicação”. No limite mais cruel, somos nós que estamos escondidos da nossa própria verdade.
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João Lopes, Cinema 2000

Georges (Daniel Auteuil) é um jornalista literário de sucesso com um programa de televisão de grande audiência. A sua mulher (Juliette Binoche) trabalha numa famosa editora parisiense. O casal tem um filho cumpridor, uma bela casa, uma vida desafogada e confortável. Um dia, começam a receber vídeos misteriosos da fachada do prédio onde vivem, como se estivessem a ser vigiados por alguém. A seguir, esse alguém passa também a enviar-lhes desenhos, que parecem ser feitos por uma criança e têm em comum o elemento do sangue. Georges e a mulher vão à polícia, mas esta não os pode ajudar enquanto não for cometido um acto criminoso concreto. E os vídeos enigmáticos e os desenhos doentios continuam a chegar.

Este é o ponto de partida de NADA A ESCONDER, do austríaco Michael Haneke (A Pianista, O Tempo do Lobo), que concorre em Cannes sob a bandeira da França. O filme, além de retomar alguns dos temas favoritos do realizador, caso da desconfiança das imagens e do seu potencial de manipulação (indicado logo na abertura, em que Haneke "engana" os espectadores com um plano que julgamos "pertencer" ao filme, mas afinal é de um vídeo do misterioso vigilante do casal protagonista), usa um formato de história policial para tratar o tema da culpabilidade. É que Georges, quando tinha seis anos, cometeu um acto cruel, que o tempo atirou para o arquivo morto da memória, mas que pode estar relacionado com os vídeos e desenhos anónimos.

Sem a ajuda de qualquer comentário musical (que o realizador recusa sempre), NADA A ESCONDER instaura um ambiente de mal-estar crescente, de tensão continua, de expectativa intrigada e de desconforto vizinho do medo, que são bem característicos do cinema de Michael Haneke (na conferência de imprensa, o realizador disse que é muito mais divertido trabalhar num filme seu do que vê-lo), mas que mesmo assim surgem aqui mais mitigados do que em Brincadeiras Perigosas ou O Tempo do Lobo.
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Eurico de Barros, Diário de Notícias

O espectador bem pode esperar que a história comece. Para que ele se esqueça da sua condição de espectador e se precipite rapidamente para a suspensão da descrença: ficção! narrativa! Mas não. O primeiro plano, que inclui genérico, é longo, enquadra da rua um banal bairro da classe média - a nossa atenção talvez se dirija para uma casa em particular... -, há transeuntes que passam, uma espécie de acordar da banalidade que desliza pelas ruas (podia ser tudo captado por uma câmara de vigilância), mas quando é que o filme começa, e quando começamos a dizer isso a nós próprios (e se calhar pode um espectador lançar a alta voz), "E então?!", ouvimos, como eco, a voz daqueles que serão os protagonistas do filme, que se interrogam também sobre essas imagens.

Assim já não sabemos para onde olhamos, onde estamos, o que é que vemos, quem filma o quê, e lá se vai a suspensão da descrença. A partir daqui, "Nada a esconder" contagia o espectador com o vírus da desconfiança. Estaremos sempre alerta no filme de Michael Haneke, é a condição irreversível de se ser espectador aqui - não era em "Funny Games" que um dos assaltantes de uma casa familiar se virava para o lado de cá do ecrã e disparava: "Quer apostar que esta família estará morta amanhã às 9 da manhã?"

E a história (daquele primeiro plano) é esta: Anne e Georges Laurent, ele apresentador de um programa cultural, ela trabalhando para uma editora (Daniel Auteil e Juliette Binoche), acabaram de receber um vídeo que mostra que alguém está a olhar para a quietude daquela casa familiar.

Que alguém os vigia e quer que eles saibam disso. As brechas começam a abrir - há sobretudo uma hostilidade não silenciosa, mas expectante, na mulher (Binoche), que não compreende o que está em causa, e suspeita que o marido (Auteil) sabe mais do que quer contar. A crispação do casal aumenta quando os vídeos dão lugar a desenhos de um "gore" infantilizado (traços e rajadas de sangue) e a telefonemas anónimos.

A história (por trás destas imagens, sempre banais, todas iguais, todas assépticas, como se todas se equivalessem - então uma imagem tem "tudo a esconder", se calhar outra, se calhar aquilo a que chamamos "realidade"!) chegará a um homem, argelino, Majid, que em tempos foi um irmão adoptado de Georges, e recuará no tempo, com "flashback", a um tempo de infância eterna que o racismo e o "problema argelino" em França interrompeu com uma traição - Georges, criança, traiu Majid, criança. É esse passado que agora assombra Georges? Mas quem o filma, quem desenha, quem telefona? Majid? Se calhar não.

Há um último plano. Fixo, como o primeiro. Mas não só inicialmente insondável. Escadarias de uma escola, que se vão esvaziando, para notarmos finalmente dois rapazes que falam. Um é o filho de Georges. O outro é filho de Majid. Um "complot" da nova geração contra o pecado dos pais? (nos filmes de Haneke os jovens, as crianças, têm esse efeito perturbador, são elas que rompem o tecido social). Não sabemos do que falam. Michael Haneke tirou-nos a possibilidade de ouvir o que dizem. O comentário social, a análise de tese, às vezes demonstrativa (sempre ecrãs de televisão a mostrarem o "estado do mundo", a divisão entre o Ocidente e o mundo árabe), o "thriller", as cenas da vida conjugal, combinaram-se numa experiência de que nós, espectadores, fomos cobais (quando só queríamos a suspensão da descrença...). O vírus da culpa foi-nos inoculado. Como se tivéssemos sido violados até chegarmos a uma nova condição, a uma nova consciência de espectadores: a culpa de quem "vê" vive aqui.
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Vasco Câmara, Público



ENTREVISTA AO REALIZADOR

Com a sua barba branca e o seu sorriso afável, Michael Haneke, 63 anos, esconde bem o seu jogo: o de um dos cineastas mais inquietantes da época. Encontro com um homem que vive entre Viena e Paris, entre duas línguas, duas culturas. Mas com uma única obsessão: pôr o dedo na ferida.

Em Cannes, até ao último momento, NADA A ESCONDER era o filme favorito: Não ficou desiludido?
Já vi tantos favoritos passar ao lado do palmarés. Há coisas piores na vida do que receber o Prémio de Melhor Realizador em Cannes. Teria ficado contente com a Palma, mas estou ainda mais com a óptima recepção internacional do filme, o que é uma novidade, mesmo na América, onde não costumam gostar de filmes em aberto. O filme já foi vendido para 50 países.

Michel Houellebecq elogiou o seu cinema em “Possibilité d’une île”...
Foi um grande elogio. Gosto muito do Houellebecq. Li “Extension du domaine de la lutte” e “Particules Élémentares” – estão todos traduzidos na Alemanha, onde é muito conhecido. É o escritor contemporâneo em que me sinto mais em casa: vivo no mesmo mundo que este homem. Mesmo que não tenha nada a ver com ele, o seu mal-estar é o mesmo que o meu. Ele escreve livros muito realistas, não são exagerados nem pessimistas, e acho que existe neles muita compaixão pelas personagens. É isso que conta: as pessoas que admira pensarem em si.

Porque explora a culpabilidade colonial francesa?
Remexo na história. Gosto disso. Foi semelhante na Áustria, onde há tantos buracos negros que a culpabilidade individual acaba por se fundir na culpabilidade nacional. Os factos existem: há 50 anos, os franceses agiram mal na Algéria, mas a memória colectiva do país não o aceitou. Aconteceu o mesmo na Áustria: ninguém era nazi durante a guerra, eram todos vítimas. Esta espécie de cegueira voluntária deixa-me louco.

Como nasceu NADA A ESCONDER?
Primeiro da vontade de trabalhar com Daniel Auteuil. Há um segredo nele. Alguns actores oferecem-nos tudo. Ele guarda algo, como Trintignant. Queria também fazer um filme sobre a culpabilidade, a culpa que vem da infância, das asneiras que fazemos aos 5 anos. O filme confronta um homem com o que ele fez quando era criança. E a sua escolha é reagir ou não à culpabilidade do passado. Não reagir, querer esquecer, é normal, mas aí ele sente-se mal. Toma dois comprimidos para dormir. É um pouco cobarde: “O que faríamos para não perder nada”, diz-lhe a vítima. É essa a frase chave. Para ilustrar este lado desconfortável, parti dum documentário sobre a manifestação do FLN reprimida pela polícia francesa, em Paris, em Outubro de 1961.

A forma do filme é muito peculiar.
Quis destabilizar. Nunca podemos dizer se a imagem da cassete de vídeo é o ponto de vista objectivo e o do cinema o ponto de vista subjectivo. Já não sabemos onde estamos: tudo é igualmente filmado com uma câmara HD. Os níveis de imagens são idênticos, e isso cria uma dúvida sobre a realidade. Não foi por acaso que todos os grandes escritores alemães abandonaram o romance depois da guerra: ficaram desconfiados da manipulação das palavras e das imagens. O que sempre me interessou, nos livros, filmes, quadros foi a destabilização.

No filme há um suicídio impressionante, porquê?
É o plano mais importante do filme: se a cena não fosse credível, todo o filme teria falhado. Era preciso que acontecesse num só gesto. E cinematograficamente era muito difícil. Um plano fixo, rápido, de um realismo terrível. Fizemos três “takes”, não mais. Foi muito duro para o actor, cair como uma pedra.

Porquê o lado de sátira da televisão?
Trabalhei durante vinte anos na produção de emissões parecidas com a que Auteuil apresenta em NADA A ESCONDER, emissões “inteligentes”. Mas a inteligência não protege da cobardia.

E o famoso último plano aberto?
Cada um pode encontrar aí a sua solução. Mas a maioria das pessoas em Cannes não viam nada! E se se vê algo aí ainda há mais interpretações possíveis. Escrevi um diálogo para as personagens, antes da rodagem. Sei o que eles dizem, qual o sentido, mas não vou contá-lo.
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Antoine de Baecque, Libération


Título Original: Caché
Realização: Michael Haneke
Argumento: Michael Haneke
Interpretação: Daniel Auteuil, Juliette Binoche , Maurice Benichou, Annie Girardot , Bernard Le Coq
Direcção de Fotografia: Christian Berger
Montagem: Michael Hudecek , Nadine Muse
Origem: França/Áustria/Alemanha/Itália
Ano de Estreia: 2005
Duração: 114’


RETOMAMOS O TEXTO QUE INICIOU ESTA RETROSPECTIVA. AGORA, COMO TODOS OS FILMES VISTOS, PODERÃO APRECIÁ-LO (OU CRITICÁ-LO) NUMA OUTRA PERSPECTIVA.

Tenham medo. Melhor ainda: não tenham medo da angústia que liberta um filme de Michael Haneke. Ainda não há muito, quando apresentava uma retrospectiva da sua obra em Londres, o cineasta austríaco com ar de entomologista, desejou aos espectadores uma "sessão inquietante". Não estava a fazer apenas "blague" - muito hitchcockiana, diga-se, embora no lugar da bonomia do obeso inglês se tenha de por a silhueta professoral do austríaco, mas Hitchcock é mesmo um cineasta em que se pode pensar quando se pensa no cinema de Haneke. Que, aos 63 anos, se considera um "optimista". Quer com isto dizer que o seu objectivo - isto é: com a prova de choque dos filmes - é abanar o torpor do espectador perante a forma inconsequente como violência domina os "media". "Optimista", portanto, no sentido em que acha sempre que vai conseguir - abanar, isto é. Uma coisa é certa: os filmes de Haneke - "O Sétimo Continente" (1989), "Benny"s Video (1992) , "71 Fragments of a Chronology of Chance" (1994), "Brincadeiras Perigosas" (1997 - primeiro público alargado -, "Código Desconhecido" (2000), "A Pianista" (2001) - Grande Prémio do Júri de Cannes -, "Le Temps du Loup" (2003) e "Nada a Esconder"/"Caché" (2005) não são para todos. Haneke não tem ilusões de que o seu cinema seja "mainstream". E no entanto "Nada a Esconder", saiu de Cannes com o prémio de Realização e em França esteve nas listas dos melhores do ano. O filme debruça-se - há sempre um tom de investigação e experiência ... - sobre a razão pela qual Georges (Daniel Auteuil), um apresentador de televisão de um programa sobre literatura (uma espécie de Bernard Pivot), não se sinta refém, nem sinta culpa, em relação ao seu passado quando recebe vídeos com imagens da sua própria casa (quem os filmou?) e quando recebe desenhos perturbantes onde uma criança deita sangue pela boca, ou quando recebe chamadas telefónicas suspeitas. Tudo isto, supostamente, é obra de um argelino, Majid, que em tempos, na infância, Georges tramou. Foi uma espécie de história de "irmãos" que correu mal e que o tempo veio cobrar; uma história que tem a ver com outro tempo, de facto, com o passado colonial francês, com a "questão argelina". Por isso nos espantamos quando Haneke diz ao Y que a política não lhe interessa. Mas este filme é abertamente político. Explicita a profunda separação entre o primeiro e o terceiro mundos e a estratégia dos "media" e do público nessa alienação. Os recentes motins em Paris, aliás, tornam o filme ainda mais pertinente. Mas Haneke insiste: "Em qualquer país encontramos uma situação semelhante, podemos entrar em comparações em relação à Áustria ou à Jugoslávia ou outros países. O filme tem uma versão alargada de temas e eu ficaria infeliz se fôssemos restringi-lo à questão colonial argelina." Para Haneke, o comportamento da personagem de Georges não é invulgar - quando ele se esconde debaixo dos cobertores e toma comprimidos para esquecer acontecimentos recentes. "Fazemos o mesmo com o terceiro mundo. Tomamos um comprimido, damos alguns milhões de dólares e depois esqueçemos. É a mesma maneira de esquivarmo-nos ao tema." Também não é coincidência que Georges seja apresentador de TV e um intelectual, diz o realizador. "Desta maneira não há desculpas possíveis, do género que tinha problemas de ordem material ou era demasiado estúpido para se comportar de outra maneira. Ele tem que ser confrontado com o que fez." "Acho que os intelectuais são seres humanos como qualquer outra pessoa e com os mesmos problemas. O facto de termos conhecimentos não nos ajuda do ponto de vista emocional - caso contrário o mundo seria um lugar diferente. Podemos saber tudo, mas isso não quer dizer que saibamos lidar emocionalmente com essas coisas. Não estou a ser pessimista ao dizê-lo; é apenas uma observação. Sou um intelectual, mas o facto de ser um intelectual não é de grande ajuda na minha vida privada." a ilusão da tv. Michael Haneke, nascido em Munique, filho de uma actriz e de um realizador, que passou a infância num subúrbio de Viena, Wierner Neustadt, tentando ser actor e pianista, começou a fazer filmes para a televisão austríaca e alemã, meio sobre o qual tem sido crítico. "Não acredito que a televisão nos faculte assim tanta informação sobre o que está a acontecer no mundo", diz, convicto. "Vemos imagens que são manipuladas - porque não existe essa coisa da imagem objectiva -, mas isso dá-nos a ilusão de possuirmos conhecimento. E isso é perigoso, porque acabamos por ser manipulados por essa ilusão." O primeiro filme realizado fora do pequeno ecrã, "O Sétimo Continente", era o relato, verdadeiro, do suicídio colectivo de uma família, onde todos os membros morriam num sofá, a fazer "zapping". "Benny"s Vídeo" centrava-se na história de um rapaz que passava o dia trancado no quarto rodeado de computadores e monitores a ver filmes de matanças ao vivo que fez com animais de quintas. Foi alvo de atenção internacional com "Brincadeiras Perigosas", o primeiro filme austríaco em 35 anos que foi à competição de Cannes - a imagem de uma televisão salpicada de sangue era óbvia, mas a história de dois jovens bem-educados que tomam como reféns uma família na sua casa de férias, forçando-os a jogos sádicos, era aterradora. Há alguns pontos de contacto com "Nada a Esconder". No facto de o "thriller" psicológico ir tomando forma, no facto de serem as gerações mais novas que sacodem as fundações do edifício social. A este nível está o intrigante plano final, em que os filhos de Georges e de Majid conversam, sem que o espectador oiça o diálogo: eram eles que urdiam o "complot" que se abateu sobre a família francesa? É uma nova aliança feita no rescaldo dos pecados e das culpas dos pais? "No fim, as pessoas têm diferentes interpretações dessa cena em que os filhos dos dois homens se encontram em frente à escola", reconhece Haneke. "É propositado. Não vou dar dicas sobre o que acontece. Filmei inicialmente a cena de forma a que pudéssemos ouvir o diálogo mas prefiri que o público adivinhasse o que está a acontecer. Quem sabe? Talvez sejam amigos que tenham combinado juntos [o plano dos vídeos e dos desenhos anónimos]. Talvez o filho do argelino esteja a preparar um rapto e vá levar o outro rapaz como refém. Ou talvez vejamos os dois rapazes como herdeiros dos problemas com os quais estamos a lidar no filme. Cabe-nos decidir. Construí o filme desta forma para assegurar que as pessoas iriam levantar questões. Se fizer como os outros fazem, que nos dão as respostas antes de levantarmos as questões, então iremos esquecer o filme, iremos esquecer o problema e a questão rapidamente. Quando vou ao cinema os filmes que permanecem na minha mente são aqueles que me desestabilizam e me inquietam. Esqueço todos os outros muito rapidamente." duche frio. Agora uma das actrizes predilectas de Haneke, Juliette Binoche faz equipa com o realizador pela segunda vez em "Nada a Esconder". Entrara anteriormente no primeiro filme francês do realizador, "Código Desconhecido". Ficou apanhada pela experiência. Em "Nada a Esconder" interpreta a mulher de Georges e trabalha na indústria editorial. A família goza uma vida calma e tem um filho com 12 anos, Pierrot. No entanto, à medida que Binoche vagueia pelo seu imaculado apartamento podemos sentir as gretas que começam a abrir nesta existência burguesa. A parte de Anne na história é a de uma testemunha dos emergentes segredos do marido e de uma violência latente. "Há coisas na vida que são insuportáveis, a traição é insuportável, a culpa é insuportável", diz Binoche. "De repente temos de encarar os nossos demónios e acho que o Michael Haneke está a lidar com temas que são difíceis e isso é necessário. Os seus filmes sublinham os pormenores da nossa vida diária e o que é muito forte, o que é especial sobre eles é que não estamos só envolvidos nos nossos próprios problemas, temos de abrir-nos para o resto do mundo. Todos os pormenores tornam-se universais. Foi um acessor de imprensa que me apresentou aos filmes do Michael. Vi "Benny"s Vídeo", mas não quis ver "Funny Games" porque fiquei assustada. Os seus filmes, mesmo quando são como um duche frio, levam-nos a pensar sobre o materialismo das nossas próprias vidas e nos nossos hábitos do dia-a-dia. Normalmente não queremos ser confrontados com o passado. Por isso acho que os seus filmes são necessários. De tempos a tempos é preciso vermos uma coisa assim. Embora não todos os dias", diz, soltando uma gargalhada. Michael Haneke escreveu o filme a pensar exactamente nos actores que queria. Neste caso, Binoche e Auteil. Fazer um filme, por isso, não é nada de excessivamente difícil. O realizador sabe o que quer. E termina a conversa com o Y com um largo sorriso: "Digo sempre que é mais agradável interpretar um filme de Haneke do que ver um filme de Haneke".
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Helen Barlow e Vasco Câmara, Público


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