depois das aulas é sempre durante as aulas. uma obra-choque-prima-de-estreia de antonio campos. não o nosso. o dele.

NOTA DE INTENÇÕES
Hoje mais que nunca graças ao computador e à Internet somos capazes de ser testemunhas, no conforto dos nossos quartos e das nossas salas, de cenas que tanto podem ser extraordinárias como monstruosas. As pessoas deixam-se fascinar por estes pequenos vídeos, sejam divertidos ou violentos, porque a sua existência e situa à margem das suas próprias vidas. É o caso de Robert, a personagem principal de AFTERSCHOOL – DEPOIS DAS AULAS. Estamos sempre a ser observados, ou pelo menos corremos o risco de uma tal vigilância. As câmaras digitais já nem são uma opção que se possa não escolher num telemóvel ou num computador e as câmaras de vigilância invadem o espaço público. Antes da era da tecnologia digital, o olho de Deus era uma abstracção. Hoje, com uma pequena câmara, tranquilamente escondida num bolso, podemos filmar qualquer coisa, que pode em qualquer momento ser partilhada com o resto do planeta. Através da personagem de Robert, procurei examinar o meu próprio fascínio, posicionando-me como observador e documentarista. Enquanto cineasta, o meu método preferido é deixar os actores interpretar cenas inteiras numa única take. Deixando a sequência ganhar corpo na sua duração, de forma quase orgânica, espero que nasça uma autenticidade.
Descobri também que se esperarmos o suficiente podemos ter a sorte de ser testemunhas de um momento fundamental, seja comovente ou chocante. O objectivo último é sempre aproximar-me o mais possível do real.

CRÍTICAS
Não queríamos falar do 11/09, mas temos que começar pelo 11/09. Antonio Campos tinha 18 anos em 2001. E tinha um amigo com um pai a trabalhar no World Trade Center. Foi assim que a morte passou por perto, no último ano do liceu de Antonio. (Meses depois, a morte passaria por ele outra vez: um amigo desapareceu num desastre de automóvel.)



“Afterschool – Depois das Aulas” não tem nada a ver com o 11/09. Mas tem tudo a ver com a morte. O argumento nasceu dos sentimentos contraditórios que abalaram o protegido mundo de quem se despedia da adolescência em 2001: “Senti-me emocionalmente próximo e distante do que aconteceu aos meus amigos, simultaneamente envolvido e afastado. Essa experiência marcou-me.” Perda e culpa. “A ponto de começar a escrever um argumento.”


E não falamos mais do 11/09. Anos depois - Antonio Campos, 25 anos, resume ao Ípsilon, ao telefone de Nova Iorque - uma temporada por Paris como bolseiro da Cinéfondation do Festival de Cannes colocou esses sentimentos de perda e de culpa no desenvolvimento de outro argumento. Em que um adolescente, Robert, aluno de um colégio da elite novaiorquina, obcecado com os vídeos que aparecem na Net como cogumelos (é assim que Robert experimenta a vida: em “clips”, curtas sequências “de coisas que parecem reais”), filma sem querer a morte por “overdose” de duas irmãs gémeas. Robert é como Antonio: envolvido com os seus sentimentos e simultaneamente afastado deles. É assim que o realizador se descreve.

Junta a isso, assume, a incapacidade de encontrar uma coisa a que possa chamar “identidade cultural e social”: é filho de Lucas Mendes, correspondente internacional da TV brasileira, criador do programa “Manhattan Connection” no canal GNT, e de uma produtora, e em tempos “manager” de Pelé, Rose Ganguzza. Dizemos-lhe que é uma sensação estranha: falar em inglês sobre um filme americano com alguém que tem um nome português. “Não me sinto em casa em sítio nenhum. O meu pai é brasileiro, a minha mãe fala português, os meus irmãos também. Mas no Brasil não me sinto brasileiro, na América não me sinto americano. A única cidade onde consigo viver é em Nova Iorque.” É preciso, então, agradecer à confusão. É ela que torna “Afterschool – Depois das Aulas” uma aventura tão obsessiva para o espectador. É isso que faz do filme uma superfície reflectora de emoções que crescem tanto que lhes conseguimos tocar - só elas se deixam agarrar. É isso que faz de “Afterschool – Depois das Aulas” um dos filmes de 2008.


Se quisermos continuar a imaginar “Afterschool – Depois das Aulas”... Um ecrã grande, como num filme dos anos 1950, e longos planos-sequência que observam pura e simplesmente o que acontece: um colégio para os obviamente favorecidos, os rituais das aulas, a sexualidade em picardia no refeitório, os computadores... E os adultos ausentes, fora de campo ou do outro lado da linha telefónica. Os planos-sequência observam, como num documentário. Não é por acaso: o desenvolvimento do argumento aconteceu ao mesmo tempo que o jovem americano em Paris descobriu a obra do documentarista Frederick Wiseman, muito especialmente “Highschool”, numa retrospectiva. Mas às tantas o ecrã de “Afterschool – Depois das Aulas” diminui. A espaços o ecrã reduz-se à dimensão de um quadrado ou de um rectângulo do YouTube. São os vídeos que Robert encontra na Net. Esses momentos dão-lhe a sensação de verdade - em ecrã grande a realidade é vagarosa, afunda-se em torpor. E assim também o espectador se move ao sabor desta hierarquia de imagens, encontrando, como Robert, mais “realidade” nos “clips” do que nos corredores da escola; ou entrando, como Robert, por túneis assombrados, já que não sabe onde está a realidade, se nos “clips” de vídeo se nas imagens em ecrã grande da escola.



“Essa é a ideia básica deste filme, a nossa percepção das imagens. Aquilo a que chamamos realidade é apenas uma parte da coisa. Nunca é a realidade, é sempre uma parte da realidade” - isso explica, nos assombrosos enquadramentos, os corpos que nunca cabem no ecrã, as composições de uma perfeição superior mas nunca “desenhada” (o segredo, diz-nos, foi nunca ter dito aos actores se eles estavam dentro ou fora de campo, o segredo foi deixá-los movimentarem-se à vontade; o segredo da perfeição é a imperfeição).


Chegados aqui, é provável que “Elephant” de Gus Van Sant venha à memória - mas sempre que se fala em adolescência no cinema, passou a ser um automatismo ou uma afectação referir esse filme. Ou as experiências de tubo de ensaio com que o austríaco Michael Haneke faz o seu cinema. A primeira referência incomoda Antonio Campos, e percebe-se porquê: não tem nada a ver. A segunda não incomoda, trata-se até de um cineasta e de uma obra que admira - mas, dizemos nós, em sensualidade e em emoção Campos bate o programático Haneke.


Visto o filme, saltará à vista o clínico Stanley Kubrick, cineasta que mudou a vida deste jovem nova-iorquino (culpa de “Laranja Mecânica”) que aos 13 anos, graças à barba precoce, passava por 16, o que lhe permitiu matricular-se num curso de seis semanas da New York Film Academy. Já nessa altura o pai o alimentava a cinema japonês e a clássicos europeus. Mas esquecemos Haneke, Kubrick, Van Sant, e atirámos outra hipótese de filiação, menos evidente, mais interior: Michelangelo Antonioni. Desta ele não estava à espera... Por causa de “Blow Up”, onde há um homem obcecado em fotografar a realidade e que acaba engolido por ela? (Antonio Campos nem gosta de “Blow Up”...) Não, por causa de “Deserto Vermelho”, onde a realidade resiste a ser lida, descodificada, onde homem e tecnologia se fundem na paisagem. Foi então como se uma porta se abrisse... “É o filme de que gosto mais de Antonioni. Talvez... também aí havia um elemento humano e um elemento tecnológico no mesmo plano. Esse filme também se parecia com ficção científica. Sim, há 10 anos ‘Afterschool’ não teria sido possível ou seria um filme de ficção científica. Porque a realidade de que fala é a de uma tecnologia ligada a hoje.” E no entanto, “Afterschool – Depois das Aulas”, primeira longa, é já um filme de despedida.


Aos 25 anos, Antonio Campos tem um razoável currículo de curtas - fez a primeira aos 23, já esteve em concurso em Cannes. Todas elas, revela, sobre jovens da geração YouTube (numa, “Buy it Now”, de 2005, uma rapariga vende a virgindade no E-Bay). Foi crescendo e documentando a sua geração. “Experiências em primeira mão, minhas ou dos meus amigos, sobre o que é ser ‘teenager’ na América. Tenho um fascínio por aquela fase desastrada em que não sabemos quem somos ou aquilo de que gostamos... Não me interessa contar a típica história de crescimento em que o cinema americano é pródiga, a história de rapaz que conhece rapariga, os dois experimentam algo e depois tornam-se adultos e mudam. Interessa-me observar a transição e não o sítio onde as personagens chegam. Interessa-me a ambiguidade. Como Robert em ‘Afterschool’ eu não tenho a pretensão de saber quem sou.



Mas o meu próximo filme vai contar a história de um rapaz e da sua mãe em Nova Iorque num período de 20 anos - ou seja, a adolescência é apenas um pedaço dessa existência. Estou, portanto, pronto a mudar. Sinto que ‘Afterschool – Depois das Aulas’ foi a minha exploração terminal deste mundo”.
Antonio Campos cresceu, mas nunca vimos isso. Quando o encontrámos ele já era grande... cineasta.
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Vasco Câmara, Público


Não fosse Antonio Campos um miúdo de 26 anos e "Depois das Aulas" podia ser a ilustração do pesadelo de um pai que se tivesse deitado com uma súbita inquietação sobre"o que é que os miúdos andarão a fazer". Mais vale nem saber, e na verdade pai nenhum em "Depois das Aulas" sabe muito bem coisa alguma - estão longe, são uma voz ao telefone ou, no momento em que "Depois das Aulas" efectivamente deixa entrar os pais, são uma presença assarapantada na sequência de um momento traumático, e continuam sem ver ou perceber coisa alguma. O que não impede, e pelo contrário reforça, que o pesadelo lá esteja (e não só como força de expressão: o filme acaba com uma "interrupção" mais do com um "fim", abruptamente como nos pesadelos que ficam a fracções de segundo de um clímax horroroso). Tem é que ser visto dos dois lados: o que os miúdos andam a fazer é inquietante, mas não o é menos o que se anda a fazer aos miúdos. "Depois das Aulas" também é, e de que maneira, um filme sobre esta inquietação.



Larry Clark ("Kids"), pela franqueza, ou os filmes de adolescentes de Gus van Sant, mais pela cadência (ou pela dormência), são lembranças que fazem pelo menos algum sentido, mas que se diluem na atmosfera rigorosamente definida do colégio interno em que se passa a acção de "Depois das Aulas". Começa-se a pensar mais em ficção científica, e naquele colégio como uma nave espacial em missão sideral, como uma cápsula sem nada à volta. Campos gosta especialmente de Kubrick e de Haneke, e isso nota-se: há algo de "kubrickiano" no tratamento do espaço, há algo de "hanekiano" na maneira de gerir a duração e a tensão de cada plano. Há até um pouco mais de Haneke, visto que o protagonista de "Depois da Escola" é um parente não muito distante do protagonista do "Benny''s Vídeo" do realizador austríaco, "videófilo" e "videasta" amador como ele, e como ele surpreendido pela materialidade, pelo peso, que não existe nas imagens mas existe nas coisas e nos corpos verdadeiros. É outra questão que atravessa o filme, onde entramos através dos "clips" tipicamente YouTube que o rapaz vê no computador, a execução de Saddam, duas raparigas à bulha captadas por uma câmara de segurança, e (o que já não é tipicamente YouTube mas é tipicamente Internet) um excerto de um porno. Estas imagens vão ser rimadas ao longo do filme, mais notoriamente as do porno (modelo de comportamento sexual que quando finalmente se concretiza é o seu oposto: trapalhão e sem espectáculo) mas mesmo as da execução de Saddam, porque a certa altura (depois do "trauma": a morte de um par de gémeas por "overdose" decocaína adulterada, numa cena magistralmente filmada e mais tarde revista e recomposta noutras perspectivas) o ambiente no colégio se torna securitário e restritivo e porque esse tipo de reacção ao "trauma" nos reenvia para o contexto da morte de Saddam (o pós-11 de Setembro), que não é nada seguro que Campos não tenha querido glosar. Até porque esse momento corresponde ao ganho de proeminência da figura que assume a autoridade paternal (o director da escola), e porque o seu discurso justificativo, vago e redondo, ecoa os discursos justificativos, vagos e redondos, que tipicamente se ouvem da boca dos lideres políticos (de direita e de esquerda) desta nossa era tão rica em democracias paternalistas.

Neste mundo codificado, o colégio é a expressão de um universo onde tudo (do porno à política) se orienta porcritérios que definem bem o que é "apropriado" e o que não é. Ao associar explicitamente o vídeo (um "tributo" às gémeas mortas) feito pelo protagonista mas rejeitado pelo colégio ("nem sequer tem música", dizem-lhe, e também não a há em "Depois das Aulas") ao seu próprio filme, Campos transforma esta sua primeira longa numa profissão de fé no poder subversivo do cinema e, o que vai dar ao mesmo, num elogio do "inapropriado".
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Luís Miguel Oliveira, Público

ENTREVISTA
Antonio Campos, 26 anos, nova-iorquino. Filma desde os 13. Vem documentando a adolescência, o que é isso de crescer com a Net. Encontrámo-lo agora que ele é grande. Cineasta. "Depois das Aulas" /"Afterschool" é um filme muito deste tempo: o presente parece o futuro.
Voltamos sempre ao local onde julgamos que fomos felizes, e a nostalgia pousa aqui, em Pigalle, Paris. Podia ser uma residência para estudantes, e de alguma forma é isso o local onde vivem os bolseiros do programa da Cinéfondation do Festival de Cannes que ali desenvolvem, durante cinco meses, o argumento da que virá a ser a sua primeira-obra. Nas portas dos quartos uma placa assinala quem por ali já passou - serão os novos cineastas deste mundo. Na porta do frigorífico reactivam-se rituais desta leva, certamente iguais ao das anteriores. Quem chega do cinema - que pode ser o computador do quarto ao lado - diz ali o que pensa. As listas já vão compostas: mais canónicas ("Classical films" são os de Murnau, é "Fargo", "Deserto Vermelho" "A Vida e a Morte do Coronel Blimp" ou "Persona"), mais desobedientes ("Evil films" são "todos" os de Ron Howard - é verdade... -, é "Forrest Gump", "O Resgate do Soldado Ryan" ou "Million Dollar Baby" de Eastwood) ou a disparar à procura de alvo: nos "filmes masturbatórios" estão "L'Humanité", de Bruno Dumont, "As Horas", de Stephen Daldry ou "Batalha no Céu" de Carlos Reygadas.

Nostálgico?
Um pouco...

O nome de Antonio Campos está inscrito na placa da porta de um dos quartos. Em 2006, depois de ter ganho um prémio em Cannes no ano anterior - tinha 21 anos - com a curta "Buy it Now", foi seleccionado para a residência da Cinéfondation. Chegou a Paris com uma história de adolescência e morte que começou a escrever no final do liceu, aos 18 anos, em Setembro de 2001. O pai de um amigo morrera nas Torres Gémeas. (Na mesma altura, um amigo morrera de desastre em Amesterdão.) O envolvimento e a distância, sentimentos de perda e culpa, ficaram a trabalhar nele e começou a escrever sobre um adolescente, Robert, e a morte no colégio - duas gémeas.
Paris deu fôlego à coisa. O andar, sem saber para onde ir, por cafés, a ansiedade do "outsider", por estar separado da família, abriram uma "ferida" e isso "alimentou". Tudo à volta alimentou - por exemplo, uma retrospectiva na Cinemateca dedicada ao documentarista Robert Wiseman. E foi em Paris que entrou o vídeo em "Afterschool"/ "Depois das Aulas".
Foi numa sessão nocturna de "brainstorming" que o vídeo apareceu. Algures nos meus rascunhos tinha escrito que Rob tinha aulas de vídeo; até aí não tinha estabelecido ligação com a personagem. Estamos ambos interessados em observar as pessoas. Em procurar a verdade das imagens...

Mas as imagens podem mentir...
Sim, mas acreditamos que elas dizem a verdade.

Um adolescente e as imagens. O cenário é um colégio nova-iorquino para privilegiados. Robert (Ezra Miller) será então como Antonio: envolvido com os sentimentos e afastado deles. É uma questão de identidade por completar que une a adolescência e o hoje já não adolescente Campos, 26 anos, um nova-iorquino com sangue brasileiro e italiano. ("O que é que sou? Mas será que isso interessa? Brasileiro? Não me sinto brasileiro. Americano? Não me sinto americano, sou nova-iorquino").

Robert está obcecado pelas erupções de "realidade" no YouTube (Campos poderá dizer isso sobre ele próprio, pelo menos num momento da sua vida): são os "clips", de um gato a tocar piano ou de Saddam Hussein enforcado, que dão a sensação de âncora quando tudo à volta parece liquefazer-se. Sempre ligado e desligado, tantas imagens! O que é que elas fazem sentir? Tanto, que não se consegue dizer? Nada?

Rob é visitante do site porno nastycumholes.com. Quando o conhecemos está em plena masturbação. O momento em que uma mão pressiona a garganta da actriz, preliminar de humilhação antes do coito, Robert também o reproduz, tacteando o pescoço da namorada.

Para o trabalho de vídeo, a classe é dividida em grupo, Rob fica encarregue dos planos gerais da escola. E é quando filma um corredor que capta acidentalmente a "overdose" de duas gémeas. A morte tem sangue, odor, fluidos, não é como as imagens.

O espectador está como Rob: toca o ecrã embora sem a certeza de descrutinar as emoções. É superfície reflectora, obsessiva, mas resiste. Em "Afterschool" somos levados ao sabor de uma hierarquia: do esplendor da composição dos planos em ecrã grande - desenrolar observacional, como num documentário - à velocidade dos pequenos rectângulos do Youtube (que aqui se chama ClipUs). Tocamos algo, não sabemos o quê.

Antes que se comece a pensar em Gus Van Sant, por causa dos adolescentes e da morte na escola, diga-se que se o realizador de "Elephant" trabalha a partir de uma imagem, de uma iconografia da juventude (isso é verdade também para Larry Clark), a Antonio Campos não interessa(m) a(s) imagem(ns) do adolescente; interessam o adolescente e as imagens. Isto somos nós hoje e é como um susto: o futuro.

Todas as ficções são documentários de uma época. "Afterschool" tem essa dimensão. Mas tem algo de ficção científica. O presente já como futuro, como em "2001-Odisseia no Espaço", de Kubrick, e "Deserto Vermelho", de Antonioni. E a tecnologia. Faz sentido esta associação?
Sim. Foi interessante perceber que "Afterschool" é um pouco filme de ficção científica. Mas hoje todos os dias vivo num filme de ficção científica: sempre que estou no Skype, no computador, a falar com alguém que me vê e que eu vejo. Queria que as personagens pertencessem a este tempo, mas que quanto mais me focalizasse nisso mais parecessem estar no futuro. O lado "clean", as paredes brancas, o barulho das salas - há sempre um rumor no "Deserto Vermelho" -, um som que existe sempre nos lugares mesmo que nos tenhamos tornado imunes a ele. Não foi algo que forçasse: pus a câmara no topo de um computador e imediatamente pareceu que Hal [o computador de "2001..."] estava a olhar. É o mundo em que vivemos.

As personagens parecem estar sempre a ser olhadas por alguém. Os corpos são objectificados: separa-os, corta-os com o enquadramento...
Há várias coisas. Alguns planos podem ser vistos como planos de câmara de segurança, que é uma câmara que não se controla. Por outro lado, quando se vê uma parte do olho, ou da boca ou de uma mão de alguém, isso é tudo o que se tem de uma personagem e o nosso cérebro cria um "close up". É um plano geral que se torna grande plano, o que dá intensidade a um gesto ou a um momento sem ter de fazer "close up". É como estar numa sala com um grupo de pessoas, fazer um "scan" e focalizarmo-nos numa pessoa, naquilo que ela está a fazer.

É claro: "Afterschool" não é um filme Youtube. As imagens têm peso. Nem a identidade do cineasta Campos é absorvida por uma imagem típica do "indie" americano e seu "marketing". Aqui o mundo novo coabita com algo de antigo, tão antigo que já pode ter desaparecido, pelo menos na forma que o conhecíamos: o cinema. É coisa de descoberta, de interdito. Era assim que se passava. E Campos continua a preferir os filmes em sala. Culpa da "babysitter". A palavra, então, ao relato biográfico deste filho do jornalista brasileiro Lucas Mendes, correspondente da Globo em Nova Iorque e hoje editor e apresentador do programa "Manhattan Connection", e da produtora Rose Ganguzza.
Não havia "babysitter", a minha mãe levava-me a ver tudo o que ela queria. Lembro-me de "Black Rain" [Ridley Scott, 1989], terei dito no meio do filme que nenhuma mãe deveria levar uma criança a ver um filme daqueles. Mas o meu pai achava que estávamos a ver demasiados filmes de Hollywood. "Vamos ver filmes estrangeiros todas as semanas".
Passámos a ir ao Angelika [sala vocacionada para o cinema de autor, americano e estrangeiro, em Nova Iorque]. Vi "Johnny Stecchino" [Roberto Benigni, 1991], o filme mais divertido que tinha visto... E um dia fomos ver "Jogo de Lágrimas" [Neil Jordan, 1992]. O cinema estava cheio, tivemos de nos sentar separados, eu num lado e os meus pais no outro. Sempre soube que havia algo de errado com a personagem. Acho que sabia que [a suposta personagem feminina] era um homem. Quando chegou o momento de revelação, o pénis, fiquei excitadíssimo porque tinha adivinhado, e virei-me para os meus pais, e eles envergonhadíssimos. Depois, numa semana vi "8 ½" [Fellini, 1963], "Os Sete Samurais" [Kurosawa, 1954] e "Os 400 Golpes" [Truffaut, 1959]. Vi "Pulp Fiction" [1994] aos 11 anos. E "Trainspotting" [1996]. Lembro-me que num "trailer" de "Trainspotting" se dizia que era "a 'Laranja Mecânica' desta geração" e fiquei excitadíssimo, tinha que ver essa "Laranja Mecânica" [Stanley Kubrick, 1971]. E vi, aos 13 anos. E foi aí que decidi que queria ser realizador.
Diz-me que filmes viste - e como os viste - e dir-te-ei que cineasta és? Campos fala maravilhado de um plano-sequência de "The Prefab People" (1982), de Béla Tarr; trouxe de Nova Iorque DVDs, o de "Caught", de Max Ophuls. Anda a ver Fuller. E, pela primeira vez, "Os Inadaptados", de Huston. Refere Wiseman, Bruno Dumont, "Jeanne Diellman" de Chantal Akerman, Michael Haneke...

Não fala do cinema americano de que muitos novos cineastas hoje falam: o dos anos 70...
Mas há um filme crucial, dessa época, para "Afterschool": "The Conversation" [1974], de Coppola. Gene Hackman chega ao apartamento, sai do enquadramento, a câmara fica parada como se não se desse conta que o Hackman não estivesse ali e só depois é que se vira para o enquadrar.

Como se a câmara começasse a pensar...
Ou como se o operador se tivesse esquecido. É importante ter a consciência que estamos a olhar para alguma coisa. Que há alguém a olhar para alguém...

Se avançamos pelos filmes é para regressar à biografia. A "brazilian connection" é coisa em que os jornalistas brasileiros insistem mas o rapaz não pode fazer nada: do que viu não ficaram marcas. Apesar da família, da música, de Caetano, de Gilberto Gil, da colectânea "Beleza Tropical" (1989), de David Byrne, que o pai ouvia no carro e ele ainda hoje ouve.
Ele tem de perceber: é estranho Antonio Campos ser o nome de um nova-iorquino. É o vício de etiquetar, de imobilizar alguém no retrato, ou ele é que se esconde? Sempre pode responder que a dificuldade de pertença é ele mesmo. É isso que o faz ser Antonio Campos. É assim desde a escola. E a de "Afterschool" é igual à que ele frequentou, a Dwight School.
Foi estranho, não tinha amigos, por isso não tinha nada para fazer depois das aulas e decidi concentrar-me na escola. Tornei-me bom aluno e comecei a ser incomodado por ser bom aluno. Não sabia o que fazer e comecei a criar uma identidade para mim próprio, a identidade do bom aluno. Foi nessa altura que me interessei por filmes.

História clássica de cinefilia...
Sim, os filmes foram um escape. E uma forma de me encontrar. Estava infeliz e para lidar com isso comecei a escrever sobre tudo o que acontecia como se estivesse a acontecer a outra pessoa. Essencialmente escrevia cenas para filmes. Foi uma transição infeliz, mas foi isso que me fez fazer filmes. Precisava de expressar a minha confusão.
A escola era muito cara. Era difícil para os meus pais pagarem, os meus pais são classe média. Tinha boas notas, por isso podia ter bolsa. Mas foi a primeira vez que percebi que havia pessoas com dinheiro e pessoas sem dinheiro. Muito do que Robert sente tem a ver com o que senti. Ia ter com a minha mãe à noite a dizer que ninguém gostava de mim [como no filme].

Realizou um teledisco para os Shins, "Sleeping Lessons". O que anda a ouvir?
Julian Casablancas ["Phrazes of the Young"]. Que frequentou a minha escola. No meu último ano do liceu foi quando os Strokes explodiram. E isso encheu-nos de orgulho. Julian liricamente é muito inteligente, os arranjos lembram-me coisas da soul, são peças muito bem orquestradas. Quando oiço os Strokes lembro-me das coisas melhores da escola.
Voltamos sempre ao lugar onde julgamos que fomos felizes.
Vasco Câmara, Público



Título Original: Afterschool
Realização: Antonio Campos
Argumento: Antonio Campos
Interpretação: Ezra Miller, Jeremy White, Emory Cohen, Michael Stuhlbarg, Addison Timlin, Rosemarie Dewitt
Direcção de Fotografia: Jody Lee Lipes
Música: Rakotondrabe Gaël
Montagem: Antonio Campos
Origem: EUA
Ano de Estreia: 2009
Duração: 106’


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