As guerras diárias dentro das 4 paredes de uma sala de aula - O dia da saia é hoje, 21h30. IPJ.

A primeira sugestão é esquecer as comparações à "Turma" de Laurent Cantet: o filme de Jean-Paul Lilienfeld não é tanto um olhar sobre a escola, mas sim uma sátira negríssima gerida em ritmo de série B, cheia de bílis mais ou menos gaullista sobre o estado das coisas em França.
A partir de um "fait-divers" que podia ter sido tirado das manchetes dos jornais levado ao extremo, Lilienfeld arrasa todo o edifício social como uma mera fachada benevolente que vem abaixo ao mínimo sinal de problema (símbolo e sintoma de uma sociedade que quer ser tudo para toda a gente?), mas sem nunca perder de vista o absurdo da situação central.



E é esse absurdo, a sensação de "contado ninguém acredita" desta história rocambolesca (que o episódio da aluna portuguesa que agrediu a professora por causa do telemóvel torna assustadoramente plausível...), a par da genica despachada com que o filme segue em frente sem demasiado tempo em explicações profundas, que salva "O Dia da Saia" do mero polemismo reaccionário. Isso, e a interpretação de uma irreconhecível Isabelle Adjani, centro de gravidade de um filme que não tem ambições extraordinárias mas que levanta questões nas quais vale a pena pensar.

Jorge Mourinha, Público

"O Dia da Saia" possui a vantagem de passar pelo estereótipo do filme de professores a braços com alunos difíceis (dos clássicos "Sementes de Violência ou "To Sir with Love" ao moderno "A Turma") com a noção de que o território se encontra esgotado e de que se torna necessário dar uma volta de 360º ao politicamente correcto.


Num ambiente claustrofóbico, em que os problemas de raça e de inserção social acabam por se diluir numa violência sem sentido, nem saídas, com uma Isabelle Adjani de rosto angustiado e perdido, o filme constrói uma pequena tragédia de contornos indistintos, em que a "mise-en-scène" se sobrepõe a quaisquer dados conteudísticos. Claro que há perplexidades no modo desnecessário como se inscreve a personagem da professora no contexto magrebino: o diálogo em árabe com os pais faz perder força ao seu retrato desesperado. Claro que há pontos mortos numa narrativa que vive do ritmo de peripécias sem grandes oscilações, repleta de repetições e de pleonasmos.


No entanto, a própria ideia de instaurar um discurso do feminino numa história de tonalidades políticas de outra índole confere uma inesperada originalidade ao que poderia não passar da ilustração de um "fait divers", de mais uma fábula de subúrbio enquadrada no ódio racial e na impotência de ensinar a quem mais precisa de aprender. Interessante resulta o facto de tudo aparecer desencadeado por uma aula sobre Molière, enquanto cá fora avultam as rivalidades entre o pessoal docente, a humanização do polícia face ao desmembramento familiar, a incompreensão do poder representado pela ministra, incapaz de entender a reivindicação do uso da saia como marca de feminilidade quando parece ir ao contrário das conquistas duramente conquistadas pela mulher no passado recente.

A sequência final, no cemitério, tem uma compreensível contenção, mas não revela força representativa para culminar as trágicas ocorrências, funcionando sobretudo como um fecho algo precipitado e apaziguador. Não pedíamos uma exploração melodramática da morte, nem uma condenação formal dos métodos policiais. Mas esperaríamos um corte menos abrupto e mais consentâneo com a "morte em directo".

Mário Jorge Torres, Público

ENTREVISTA A ISABELLE ADJANI
François Truffaut disse que ela devia ser filmada durante todo o dia e mesmo ao domingo. Mas ela é uma das mais raras actrizes francesas. Para o seu primeiro filme em cinco anos, “O Dia da Saia”, surge-nos irreconhecível em professora de subúrbio que sequestra uma turma. Explicações em discurso directo.



A sua beleza serena tem vindo a atravessar, intocada, os últimos trinta anos do cinema francês, mas desde meados dos anos 1990 – e “A Rainha Margot”, de Patrice Chéreau – que as suas aparições no cinema se têm feito raras. Agora, cinco anos depois de “Boa Viagem”, de Jean-Paul Rappeneau, Isabelle Adjani regressa ao écrã com “O Dia da Saia”, filme de Jean-Paul Lilienfeld sobre uma professora de um liceu-problema que faz uma turma desordeira refém. Misto de “thriller”, sátira e drama social, o filme chega esta semana às salas portuguesas e causou o seu quê de celeuma em França. E, pelo meio, traz-nos uma Adjani quase irreconhecível, a sua beleza escondida por trás de uma personagem perdida, perturbada, quase histérica. Actriz que se resguarda ferozmente do olhar público, aceitou responder a uma dúzia de perguntas por e-mail.

O seu percurso no cinema francês é atípico, tem o seu quê de resguardado. Mas a sua ausência dos écrãs parece não afectar minimamente o seu estatuto de estrela...
O espantoso da ausência é o modo como ela se torna imediatamente notada quando voltamos a estar presentes. É essa contradição de origem que cria sem dúvida esse sentimento estranho... Mas no meu caso é algo de involuntário porque sempre escolhi privilegiar a minha vida pessoal. Talvez seja uma má escolha quando se tem a ambição de fazer uma grande carreira, mas é uma escolha íntima, mesmo que para mim esta profissão tenha desde o princípio sido uma verdadeira vocação. Deploro tudo o que existe hoje de artificial, de vulgar, de impostura, o comércio da imagem, a ascensão pelo “vazio e pelo abismo”, sem nenhum discernimento quanto ao talento...


Não é a primeira vez que faz longos intervalos entre filmes, mas há anos que se faz mais rara. É uma escolha sua, ou apenas uma ausência de projectos interessantes?
A vida é bem mais complicada que uma simples questão de escolhas — ela lança-nos acontecimentos inesperados e aquilo que prevemos nunca é o que acontece. Desde miúda que o amor, os pais e depois os filhos vieram sempre em primeiro lugar para mim, é uma prioridade deliberada e indiscutível. Só tenho pena de ter de desdizer François Truffaut [que a dirigiu em 1975 em “A História de Adèle H.”, que lhe valeu a primeira de duas nomeações para o Oscar de melhor actriz], que me havia escrito “sempre tive a convicção de que a deviam filmar durante todo o dia e mesmo ao domingo.” Sim, as pausas têm muito a ver com a vida e os seus acasos, mas também com a espera pelo realizador ou pelo argumento que acorde o meu desejo de filmar.

Entre a vida e o seu trabalho de actriz, parece que prefere sempre a vida...
Sim e não. Sim porque tomar conta da minha família sempre foi mais importante que subir as escadarias do Palácio dos Festivais em Cannes ou ganhar um prémio... Sempre preferi estar presente nas situações da vida que exigem força ou responsabilidade. Mas não pense que não gosto de trabalhar na sublimação da vida! Quando me sinto habitada, inspirada, não há nada de mais belo do que estar em palco ou num plateau de rodagem. Para mim, as verdadeiras cartas de nobreza estão em ser reconhecida como actriz e não como a estrela que aparece nas capas de revista.

Recusa muitos projectos?

Qualquer actriz se engana às vezes, recusa bons projectos ou embarca em aventuras que acabam por ser experiências inúteis. Qualquer projecto artístico tem uma quota parte de mistério e de risco. Acontece-me intelectualizar excessivamente quando levo tempo a decidir. Muitas vezes é uma falta de confiança em mim própria ou uma dúvida sobre a qualidade do projecto... Ou então lanço-me imediatamente, é algo que não se explica, o meu instinto toma as rédeas. E quando as coisas são assim fortes sei que não me estou a enganar.


O que é que a seduziu em “O Dia da Saia”?
Vários aspectos. O lado urgente, do tipo murro no estômago. A falta de diplomacia social no tratamento do tema. A ausência de ingenuidade. A semelhança com aqueles “faits-divers” que vemos nos telejornais, com professores a serem agredidos pelos alunos no meio da aula. E, depois, o modo como fala das consequências da ignorância, tanto mais que essa ignorância começa pela ignorância da cultura do outro, à qual nos opomos porque não a compreendemos. Porque não queremos saber dela. Isso leva a um bloqueio social alarmante.


O realizador Jean-Paul Lilienfeld diz que o filme nasceu da sua vontade de falar dos valores que se têm vindo a perder na França contemporânea. Concorda?
O filme levanta questões relativamente à política da cidade e da educação: porque é que essa política é tão contraproducente nos subúrbios? Existe a vontade de compreender as origens do mal-estar, fazer o inventário, a análise e a autópsia da situação crítica em que nos encontramos. Sim, há valores a partilhar de novo, para lá das diferenças sociais e culturais. A pior discriminação que existe em França é social, abafa completamente as dimensões étnicas e raciais. Não é verdade que a França seja um país racista, xenófobo, etc. O que ninguém quer ver é o abismo cada vez maior entre os pobres e os ricos. Um pouco como na véspera da Revolução Francesa...


Foi um projecto difícil de montar, mesmo com a sua presença no elenco. A que atribui essa dificuldade?
Creio que o obstáculo foi o tema. É verdade que de início nenhuma produtora estava disposta a produzir o filme. Ficámos surpreendidos e claro que ninguém nos explicou as verdadeiras razões dessa recusa. Mas compreendemos que o tema do filme ainda era mais tabu do que imaginávamos e essa resistência acabou por reforçar a nossa vontade.

Sentiu-se desiludida por o filme ter acabado por ser produzido para TV?
Não, de todo! A ideia era de fazer um filme que pudesse ser visto pelo maior número de pessoas, era essa a sua vocação. E é preciso ser claro: hoje a fronteira entre cinema e televisão em termos de qualidade é muito ténue, muitos filmes que estreiam em sala poderiam bem estrear na televisão e vice-versa.

Numa entrevista, disse em tempos que gostava dos destinos de mulher, e que existe sempre uma tragédia na vida de uma mulher. Reconheceu isso em “O Dia da Saia”?
Atenção, não sou a favor da tragédia pela tragédia, para isso há Racine e a sua “Fedra”... Tem mais a ver com a necessidade de encontrar nesse lado trágico um motor emocional que permita inscrever a personagem na sua realidade, no seu tempo. E, a meu ver, essa possibilidade existia no “Dia da Saia”. Sonia Bergerac [a professora que interpreta no filme] vive na banalidade insuportável do quotidiano de uma zona escolar difícil. Esse quotidiano é quase um destino que se podia tornar uma fatalidade: Sonia quebra o círculo vicioso e o silêncio ao fazer uma demonstração de ultra-violência. Ao fazê-lo, ela invoca o castigo dos deuses, mas também revela e denuncia as leis da selva iníqua e sexista que regem o seu espaço social. Sim, apesar de tudo creio que tem a têmpera de uma verdadeira heroína trágica!

Sonia pode estar mais próxima de si do que outras personagens que interpretou antes? Partilha com a personagem uma origem [Adjani é natural dos subúrbios parisienses e tem ascendência argelina], o que vai direito ao coração da história...
A sua pergunta diverte-me porque, ao longo dos anos, através de papéis muito diferentes uns dos outros, sempre me compararam às personagens que representei. Como poderia eu ser tão parecida com cada um deles, quando são todos tão diferentes? Tomo isso como um elogio... Não, não há nenhuma confusão entre Sonia e Isabelle. Porque havia ela de estar mais próxima de mim do que outras personagens? Porque o pai dela é argelino? Sim, o meu também, mas a mãe de Sonia é argelina e a minha era alemã! Senti-me atraída pelo duplo desafio: por um lado, o assunto muito pouco consensual do filme, por outro a interpretação muito arriscada desta professora à beira de um ataque de nervos com acontecimentos que se desenrolam em tempo real.


“O Dia da Saia” corta com a sua imagem pública glamour. É uma escolha deliberada?
Quando fiz Maria Stuart em palco [na peça “La Piège de la dernière nuit de Maria Stuart”, do dramaturgo Wolfgang Hildesheimer, que representou em 2006 em Paris] eu não estava nada glamour. Cabelos sujos, vestida de farrapos, possessa e desengraçada, voz rouca... Quando o papel o propõe, e quando isso pode enriquecer a interpretação, não tenho problemas em destruir a minha imagem. A degradação física na última parte da “Paixão de Camille Claudel” [1989, nomeação para o Óscar de melhor actriz] é levada ao limite – Camille tornara-se numa matrona devastada pela vida, pela dor, pelas dificuldades materiais... E eu já estava disposta a aceitar o desafio. Mas é verdade que esquecemos muitas vezes a audácia do trabalho de actriz para apenas recordarmos a poeira para os olhos da aparência. É um fenómeno da nossa sociedade de imagem a todo o custo... Mas garanto-lhe que também gosto de me sentir bonita. E qualquer mulher, mesmo que não seja actriz, lho dirá!

Jorge Mourinha, Público

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