O Laço Branco de Michael Haneke ou a 1ª - esplêndida - escolha dos sócios - 2ªf, IPJ, 21h30.

A Palma de Ouro em Cannes 2009 é uma alegoria rigorosa, ascética, que fala da culpa com um virtuosismo formal quase ofensivo.

Se há um cineasta europeu contemporâneo que temos tido a oportunidade (rara hoje em dia) de acompanhar continuamente, esse cineasta é o austríaco Michael Haneke - desde as Brincadeiras Perigosas originais (1997) que o revelaram internacionalmente, toda a sua obra chegou às nossas salas, o que é tanto mais peculiar quanto se trata de um dos autores menos unânimes e mais divisivos da actualidade. O Laço Branco, Palma de Ouro em Cannes 2009, não é excepção à regra - Haneke continua a perseguir os mesmos temas de sempre com os mesmos métodos clínicos e austeros de sempre, embora aqui com uma diferença de base por comparação com os seus filmes anteriores. Trata-se de um filme de época, ambientado na Alemanha rural nos meses anteriores ao eclodir da I Guerra, e essa transposição para o passado parece permitir ao espectador um outro distanciamento. E tal como em Nada a Esconder (2004), há um semblante de género: o fio condutor da história é uma espécie de mistério policial, à volta de uma série de incidentes estranhos que perturbam uma pequena aldeia alemã.





Ou seja: e se O Laço Branco, que começou vida como uma ideia para uma mini-série televisiva e acabou por ser feito para cinema, confirmasse definitivamente Haneke como um cineasta rigoroso e inteligente, cujos evidentes talentos de contador e organizador tivessem sido obscurecidos pelas estratégias narrativas provocadoras dos seus filmes? Sobretudo num filme onde a destilação precisa e segura, quase virtuosa, das suas "marcas registadas" dentro de um universo mais acessível impõe aqui um outro respeito, força uma outra atenção?



É, no entanto, não contar com a típica perversidade Hanekiana. Apesar das inclemências das duas Brincadeiras Perigosas (1997 e 2007) ou da Pianista (2001), nunca o seu cinema foi tão teatro da crueldade como em O Laço Branco - e a expressão "teatro" é perfeitamente adequada a um filme que denuncia o teatro social de uma comunidade onde os códigos feudais patriarcais ainda resistem e onde a liberdade pessoal de nada conta face à lei do pai ou de Deus (no caso, vai dar ao mesmo, porque aqui o pai é Deus, como explica a personagem do pastor).



Toda a gente neste filme representa um papel dentro de uma estrutura rígida onde até os pecados dos pais parecem estar predestinados - e isso leva-nos ao tema da culpa, que Haneke explora elegantemente através da sua elisão. Numa comunidade temente a Deus e às leis divinas, a culpa é impensável porque isso implicaria que ninguém é quem diz ser e que todos têm algo a esconder - e, contudo, a própria paz de Eichwald depende de ninguém ter nada a esconder. Tal como as video-cassetes de Nada a Esconder serviam como impulso revelador, os misteriosos incidentes de Eichwald trazem à superfície uma verdade que todos reprimem ou escondem mas que ninguém confessa ou assume.



É da culpa do nazismo que persegue a memória alemã e austríaca que Haneke fala? Provavelmente - mas isso é fixar uma interpretação que o realizador, que gosta de lançar enigmas mas não de desvendar as respostas, dificilmente aceitaria como única ou exclusiva. O que é certo é que é de pais e filhos que ele fala, do modo como os pecados ou as graças dos pais marcam os homens e mulheres que os seus filhos e filhas virão a ser. E pelo meio das inferências, elipses, sugestões e possibilidades que o filme lança, a única certeza é que o "ontem" de Haneke tem muito a ver com o "hoje" em que vivemos, é um espelho distorcido que o austríaco levanta com o seu ar rígido e professoral. À medida que os mistérios de Eichwald se vão adensando, que a crueldade dos adultos e das crianças se vai revelando, o austríaco sublinha por empatia as semelhanças desta comunidadezinha com o mundo em que vivemos, o modo como a história e o contexto tecem laços e teias de causalidade no que pode não passar de coincidência. Fá-lo num rigoroso preto e branco de um ascetismo quase calvinista, subvertendo continuamente os códigos e as regras do género que respeita à superfície.



O Laço Branco é um filme que, tal como as suas personagens, não é bem aquilo que parece ser. Mas isso, vindo de Michael Haneke, já não devia surpreender ninguém - tal como não surpreenderá ninguém que este seja, muito provavelmente, o seu melhor filme de sempre.

Jorge Mourinha, Público


Elas são loiríssimas e de uma beleza cândida, submissa, respeitadora. Têm também um brilho frio no olhar, tão frio como o preto e branco sem retórica em que O Laço Branco é filmado, como se as crianças soubessem algo que nos estivesse vedado, um sabor secreto, um pacto com qualquer coisa de inconfessável - pesadelos postos em acto pelo espaço de um rasgão fátuo no quotidiano.



Naquela aldeia alemã, nas vésperas da I Guerra Mundial, tudo está em boa ordem. O barão, na sua mansão, vigia para que os trabalhos nas propriedades decorram em paz: é dele que depende a sobrevivência de quase todos os aldeões. Na outra ponta do povoado, por seu turno, o pastor vela pelos preceitos morais e pela lei divina, fazendo-os cumprir, antes de mais, na sua própria família, que governa com desapiedado rigorismo luterano. O terceiro vértice do polígono de notáveis do povoado é o professor da escola, a testemunha, o narrador dos extraordinários eventos daquele ano em que estranhas violências vieram quebrar o ramerrão da existência. O quadrilátero fecha-se com o médico da aldeia - mas esse, desaparecido no primeiro plano em que um fio estendido entre duas árvores faz cair o cavalo e manda o cavaleiro para o hospital por longas semanas, é sobretudo aquele que mais nitidamente primeiro se afigura merecedor de castigo, em vez de entidade socialmente enquadradora.



O Laço Branco é o desenho minucioso deste quadrilátero e dos que gravitam em tomo, relações sociais e de poder, afectos, raivas, esperanças, ciclos vitais - tudo pontuado por pontuais assomos de uma brutalidade inexplicada que, deveras, há que atribuir mais à violência surda que aquela ordem social estrutura do que a este ou àquele agente. Daí que, constantemente, estejamos à espera que o plano seguinte de cada um dos planos deste filme seja bárbaro, o que cria uma tensão irremível que, de verdade, nem o desfecho acalma. É que Haneke, que já nos deu a mais insustentável das violências em cinema, faz aqui uma fita que mostra a placidez e induz o inominável. Ou seja, a nossa imaginação trabalha. Isto é um facto tão pouco comum no cinema dominante que muita gente se deve ter esquecido que é possível um plano durar para lá do que comummente se chama 'acção', deixando divagar o olhar e o entendimento do espectador. E aí o que cada um de nós vê está, muito provavelmente, além da materialidade do que lá está. Por exemplo - há quem tenha visto nesta fita o embrião da impiedade nazi, daquilo que sucedeu à hecatombe da I Guerra Mundial, que, na realidade histórica, dizimou o mundo que Michael Haneke reconstitui tão meticulosamente.



Não creio, todavia, que seja necessário ir tão longe. Pela minha parte preferiria enquadrar O Laço Branco como uma ficção de medo, sem lobisomens, sem serial killers, sem vampiros, nem zombies, nem extraterrestres. Mais medonha por isso, já que, mesmo que acabemos por saber a face oculta daquela realidade e daquela gente, mesmo que acabemos por perceber onde estão os germes para a punição ou a vingança, não acharemos humana a malícia necessária para as perpetrar. Mas é - e é nossa.

Jorge Leitão Ramos, Expresso


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ENTREVISTAS AO REALIZADOR

Com a aparente frieza do seu cinema, relata agora uma crescente explosão de violência e rebeldia; acto em que demonstra claramente que há alguém a castigar a população. Quem são os responsáveis?

É um filme sobre as raízes do mal, sobre a perversão da natureza humana. O meu propósito era mostrar como aqueles que erguem os princípios de maneira absoluta se convertem em verdadeiros monstros. Naquela época, o Protestantismo religioso era muito rígido e a educação muito austera. As autoridades eclesiásticas e os pais incutiam às crianças um rigor moral que não aplicavam aos seus próprios actos. As crianças tornaram-se justiceiras porque acreditavam ser a mão direita de Deus. Aconteceu na Alemanha. E esta geração 20 anos mais tarde concebeu o Nazismo. Este filme não é apenas relativo às origens desse movimento, mas relativo a todos os terrorismos ideológicos, políticos ou religiosos. É um problema que afecta a humanidade. Pode acontecer em qualquer parte do planeta e em qualquer época histórica.





O seu cinema alimenta-se sempre do pior da sociedade.

No meu cinema foco sempre a violência, porque é impossível evitá-la na sociedade em que vivemos. Gostaria que me considerassem um especialista na representação da violência. Além disso, a nossa cultura está marcada pelo Judaísmo e pelo Cristianismo e isso faz com que o sentimento de culpa seja levado até ao mais ínfimo. Não sou viciado na culpabilidade, mas a ideia de filmá-la obcecou-me. Durante uma década enchi a minha biblioteca de manuais de educação dos séculos XVIII, XIX e XX que serviram de inspiração e suporte a esta história, sobretudo aos diálogos.




Em pequeno recebeu uma educação muito mais liberal. De que maneira ela influenciou a sua vida e as suas crenças?

Os meus pais não eram protestantes. Eram actores e divorciaram-se quando eu ainda era pequeno. O meu pai foi compositor e concertista, mas nunca inclui as suas peças nos meus filmes, porque amo demasiado a música para utilizá-la no realce dos defeitos da humanidade.



Considera-se um mestre da manipulação?

A manipulação é inevitável. Subordino-a ao meu objectivo principal: provocar as consciências e remexer nelas.

É também isso que pretende obter com os grandes planos fixos a preto e branco em O LAÇO BRANCO?

Sempre gostei de criar no cinema o tipo de liberdade que se tem quando se lê um livro, onde há infinitas possibilidades imaginárias. Nos grandes planos do filme metade dos espectadores vê que acontece alguma coisa, a outra metade não percebe nada. Ambas as formas funcionam. Enchemos sempre o ecrã com as nossas próprias vivências. O que vemos provém do nosso próprio interior.



As crianças têm rostos frágeis e, às vezes, duríssimos. São vítimas e os culpados. Como é que as escolheu e como conseguiu adaptá-las à mentalidade severa e intransigente daquela época?

Investimos muito tempo e esforço para encontrar as crianças ideais. Foram mais de 6 meses de provas das quais fizeram parte sete mil candidatos. Elegemos aqueles que mais se aproximavam dos rostos que apareciam nas fotos da época. A parte mais difícil foi dirigir os mais pequenos: exigia muita paciência lidar com a sua capacidade de concentração. Mas valeu a pena.

Daniela Cramer, El País


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No início de O LAÇO BRANCO, o narrador adverte o espectador e avança as suas dúvidas acerca da veracidade da história que vai contar. Porque escolhe desde logo falsear o espectador?

Não gosto de filmes históricos que pretendam dar a ilusão da verdade. É um chamariz, porque os factos são contados a posteriori. Assumir a mentira é, paradoxalmente, o único meio de aproximar a verdade à história. O narrador em O Laço Branco permite-me criar um distanciamento. Suponho que é velho o suficiente. Tem a experiência do século. Imagino que sofreu o Nazismo, mesmo que a sua origem não me interesse mais do que isso. A propósito, o professor diz ter deixado o seu lugar de professor. Pode-se imaginar que não aderiu à ordem vigente em 1933.

A escolha de filmar a preto e branco, e portanto de estilizar, quebra também esta pretensão de conhecer a verdade.

O preto e branco dá mais facilmente acesso a esta época, à invenção da fotografia. O preto e branco indica que O Laço Branco não é uma história naturalista. Ao mesmo tempo que dá uma conotação realista ao filme.



Porque escolheu situar o seu filme em 1913 e não depois da Primeira Guerra Mundial, onde se acredita que o Nazismo pôde encontrar o seu território?

A Alemanha antes de 1914 não parecia ser um paraíso perdido devastado pelo Nazismo. A falta de humanismo e a barbaridade já fazem parte deste mundo. 1913 constitui a primeira grande ruptura cultural. Eu queria fazer um filme acerca das raízes do mal. O antigo sistema com Deus e autoridade funcionava ainda, se bem que começava a quebrar. A pequena aldeia de O Laço Branco aparece como um modelo de sociedade desta época, com as suas hierarquias. Tudo se passa às escondidas, atrás das portas. O nível intelectual desta população não é muito elevado, mas mesmo assim há um sentimento de desconforto inexplicável. Quando o filme termina, o narrador diz “tudo vai mudar”. Exprime o desejo consciente das pessoas. Elas não sabem o que mudar, mas querem mudar. Ora, esta mudança sem objectivo é perigosa. O sofrimento e a humilhação preparam terreno a uma ideia perversa. A ideia transforma-se progressivamente em ideologia e a ideologia para se justificar deverá encontrar os seus emissários. Esta ideologia é visível na educação das crianças. O pastor pode parecer-vos sádico junto das crianças, mas era uma coisa completamente normal naquele contexto histórico. Pensa, de facto, agir para o bem das crianças.
O seu filme dá assim uma resposta. Essas crianças humilhadas serão aquelas que levarão, vinte anos mais tarde, Hitler ao poder.Queria quebrar o estereótipo inerente à inocência da criança. A responsabilidade colectiva, mais do que a culpabilidade individual, interessa-me. Acredito num ambiente que permitiu a possibilidade dos crimes cometidos durante o Nazismo. Penso também que este ambiente poderia aplicar-se a uma sociedade muçulmana fundamentalista que produz terroristas e candidatos aos atentados suicidas. Observo sempre o mesmo processo: uma humilhação, uma ideologia que se retira deste sofrimento e a esperança de que a ideologia meterá fim a isso. O Laço Branco é um filme sobre todos os extremistas, de direita ou de esquerda.



Quando pensou pela primeira vez na ligação entre o Protestantismo rigoroso e o Nazismo?

No reencontro com Ulrike Meinhoff. Conhecia-a muito bem quando trabalhava em televisão. Ela escreveu-nos o argumento de um filme, antes de escolher a luta armada. Era uma mulher extraordinária, impressionante, inteligente, empenhada socialmente. O seu argumento desenrolava-se numa casa de reabilitação social feminina. Tinha muito interesse por esta causa, acolher as raparigas na casa dela. No entanto, parecia cada vez mais deprimida, convencida de que a sua acção não tinha nenhum efeito em prol de um sistema corrompido. Ela própria provinha de uma família protestante, rigorosa.

Samuel Blumenfeld, Le Monde



Título original: Das weisse Band
Realização e Argumento: Michael Haneke
Interpretação: Christian Friedel, Ernst Jacobi, Leonie Benesch, Ulrich Tukur, Ursina Lardi, Fion Mutert
Direcção de Fotografia: Christian Berger
Montagem: Monika Willi
Origem: Alemanha/Áustria/ França/ Itália
Ano de estreia: 2009
Duração: 144’


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